quarta-feira, 19 de dezembro de 2018

A Ação Popular no Contencioso Administrativo


A Ação Popular no Contencioso Administrativo

Inês Pereira Lopes

SUMÁRIO: I. Introdução; II. Legitimidade Ativa no CPTA; III. Interesses Difusos no Procedimento Administrativo; IV. Ação Popular; V. Conclusão; VI. Bibliografia


I.                     Introdução
A “actio popularis”, figura que remonta ao Direito Romano, resultado de uma conceção primária e ainda confusa da apropriação de Direitos, renasce com a Revolução Francesa, que influenciou os ordenamentos jurídicos seus vizinhos na esteira do Liberalismo Político, como um um meio de atuar, ao nível procedimental, inicialmente, e depois em juízo, na defesa do interesse público e da legalidade.
Atualmente,  consagrada no nº3 do artigo 52.º da CRP como um direito fundamental, de intervenção política e corolário do Estado de Direito Democrático, assenta na defesa de Interesses Difusos, como um meio de participação no procedimento administrativo e meio de participação jurisdicional, que pode integrar a Ação Administrativa aparentemente única no nosso ordenamento.
A Ação Popular é tida como um instrumento jurídico de complementaridade da legitimidade processual ativa, servindo a defesa dos interesses difusos, conferido a determinadas entidades ou pessoas singulares para defesa, como um verdadeiro direito que concretiza a democracia participativa. Porém, cabe atentar do seu âmbito objetivo e subjetivo, de forma a testar da sua abrangência efetiva como instrumento legitimador em juízo.

II.                 A Legitimidade Ativa no CPTA de 2015

A par da sua consagração no âmbito do procedimento administrativo, que consta dos artigos 67º e 68° do CPA, também resulta do Código de Processo dos Tribunais Administrativos, revisto em 2015 (doravante CPTA), que esta é prevista como ação popular genérica, como resulta do nº2 do artigo 9º, CPTA e como ação popular corretiva, nos termos do nº2 do artigo 55º, CPTA. Conferindo legitimidade para que, na defesa de Interesses Difusos, no  primeiro caso, e da legalidade, no segundo, possam os particulares estar em juízo. Porém, no entendimento do professor Vasco Pereira da Silva, a ação popular tida como genérica, prevista na parte geral do CPTA, incorporou a ação popular correctiva quanto ao contencioso autárquico, consagrado para o Meio Processual de Impugnação dos Atos Administrativos.
Cabe então analisar da legitimidade ativa como pressuposto processual que incorpora a defesa dos Interesses Difusos, por via da ação popular. Na lógica clássica do contencioso administrativo, originária no modelo francês, era este objetivo por natureza, «destinado à mera verificação da legalidade de uma atuação administrativa»(1), não sendo reconhecido qualquer direito subjetivo às partes, que estariam em juízo unicamente para colaborar, num «”impulso altruísta” de defesa»(2) da legalidade e do interesse público e não para que obtivessem a tutela de interesses próprios. Esta lógica que o Professor Vasco Pereira da Silva classifica como um dos “traumas de infância” do Contencioso Administrativo veio a ser superada, atribuindo-se a qualidade de partes processuais aos “administrados”, agora particulares, titulares de verdadeiros direitos e interesses tuteláveis, numa relação jurídica determinada com a Administração Pública, paritária ainda que com uma natureza específica, e não de poder. Esta realidade, a par do reconhecimento da entidade Administrativa como parte, distinta do Juiz, foi entre nós constitucionalmente consagrada na Constituição de 1976, nomeadamente nos seus artigos 20º/1 e 268º/4 e 5. Verificamos então um contencioso de plena jurisdição (2º CPTA) e de natureza subjetiva (2º/2 CPTA), no qual os particulares intervém «em defesa de suas posições jurídicas de vantagem substantivas»(3), em situação processual idêntica, pelo princípio da igualdade efetiva da participação processual (6º e 8º do CPTA), determinada pelo seu objeto, a relação administrativa (4º/1 ETAF).
Esta conceção processual espelha-se no pressuposto da legitimidade – constante dos artigos 9º e 10º, como regras comuns para a generalidade das ações administrativas, consagrada em relação principal e estreita com a relação jurídica que sustenta a ação – o mesmo se verifica em diversas outras disposições, designadamente no artigo 55º, que adapta este pressuposto à ação de impugnação de atos administrativos, em torno de uma posição subjetiva do particular em face da Administração Pública. Porém, verificamos reminiscências da lógica anterior ao se atribuir objetivamente legitimidade a entidades como o Ministério Público, associações e fundações, etc (9º/2), não obstante verificar-se um interesse pessoal na demanda.
A consagração da legitimidade do «ator popular»(4) teve origem precisamente no modelo francês de negação da posição subjetiva dos particulares como partes no processo, por se verificar a necessidade prática de delimitar a legitimidade na impugnação, delimitada pelo juiz em função do interesse, direto, pessoal e legítimo dos particulares, que Vasco Pereira da Silva qualifica de “paradoxo da conceção clássica do Contencioso Administrativo”, por verificarmos por um lado uma conceção objetiva de legitimidade e, por outro, critérios para aferir da mesma, por ser incomportável que qualquer pessoa pudesse ser considerada legitima para o recurso, de cariz subjetivo. Assim, procedeu-se, e bem, no CPTA, a uma desconsideração devida da legitimidade, pressuposto que visa garantir uma ligação entre a relação material, o objeto, e a relação processual, sendo o autor parte legítima quando se verifique uma posição jurídica de vantagem - como um direito subjetivo ou um interesse legalmente protegido - a tutelar, que o legitima a recorrer a qualquer via processual adequada e necessária.
O Professor Vasco Pereira da Silva defende ainda, hoje, não se justificar, no que diz respeito à densificação da posição jurídica de vantagem no âmbito da relação controvertida, a distinção entre direitos subjetivos, interesses legalmente protegidos e interesses difusos, distinção essa que «encontra as suas raízes no período da “infância difícil” do Direito Administrativo», resultado da teorização do interesse que era exigido ao «administrado» no Contencioso Administrativo. Assim, no atual estado evolutivo do Direito Administrativo, devem antes todas as posições substantivas de vantagem dos particulares em face à Administração Pública ser considerados de forma unitária, verificando-se um direito subjetivo sempre que «de uma norma jurídica que não vise apenas a satisfação do interesse público mas também a proteção dos interesses dos particulares, resulte uma situação de vantagem objetiva, concedida de forma intencional, ou ainda quando dela resulte a concessão de um mero benefício de facto»(5). Assim, são sujeitos ativos os reconhecidos nos termos do artigo 9º/2 do CPTA – «o ator público e o ator popular», desempenhando o Contencioso Administrativo uma função também objetiva de tutela da legalidade e do interesse público, passível de ser realizada de forma imediata pela via processual.
Centrando-nos nos “atores populares”, estes vêm a sua legitimidade reconhecida no artigo 9º/2, a complementar com a Lei nº 83/95(6), corrigindo o legislador, para o Professor, a confusão patente neste diploma entre uma legitimidade de cariz objetivista e subjetivista, sendo que o artigo 2º consagra uma situação de legitimidade indissociável de determinado interesse, e não independente de um interesse direto na demanda, algo que o artigo 9º/2 do CPTA vem a estabelecer, como manifestação de uma tutela objetiva de bens e valores constitucionalmente protegidos, abrangendo a legitimidade numa perspetiva dos sujeitos, mas restringindo-a na sua incidência aos domínios: “saúde pública, consumo, urbanismo e ordenamento do território, ambiente e património cultural, designadamente”, visando complementar a legitimidade subjetivamente orientada que consagra o artigo 9º/1 do articulado, a par de um alargamento da relação administrativa para além da relação estritamente bipolar, atendendo à sua inevitável multipolaridade, de que é exemplo o estatuto de contra-interessado que o CPTA hoje consagra.

III.              Os Interesses Difusos no Procedimento Administrativo
Na atual sociedade técnica de massas, a par da atual vigência da democracia no plano político e de um certo amadurecimento cívico dos cidadãos, a emergência dos interesses difusos ganha novo relevo. Isto devido à incapacidade do Estado Pós-Social em arbitrar os conflitos entre o poder e a sociedade, assim como à crise da representatividade política numa conjuntura em que proliferam os interesses pluri-individuais. Neste contexto, surge o interesse difuso como expressão de uma exigência de participação nas decisões que digam respeito aos mesmos, nomeadamente no âmbito do Direito Administrativo, cuja finalidade consiste na concretização dos fins almejados pelo Estado, traduzindo estes o interesse público, à luz do princípio da legalidade. Em 1989, Luís Filipe Colaço Antunes procede à análise da relevância da legitimação da intervenção no procedimento e processo por via da defesa destes interesses, concluindo que esta surge como manifestação da crise quanto à separação entre direito subjetivo e interesse legítimo, por não corresponder a nenhuma destas situações substancialmente individuais, constituindo uma categoria unitária aplicável praticamente a todos os domínios do direito, e em especial no Direito Administrativo, atendendo ao confronto entre o poder público que detém e a sociedade, assim como às relações jurídicas dentro própria, sendo que a Administração, ao atuar por qualquer via perante determinado cidadão, pode prejudicar ou influenciar a coletividade.
O Professor Luís Filipe Colaço defende ainda ser a sua teorização o resultado da insuficiência da bipartição entre interesse Público e Direito Subjetivo, como um intermédio que reflete a própria evolução do Contencioso Administrativo, espelho do Interesse que era atribuído ao “administrado” no seio de uma conceção objetivista do mesmo, na prossecução do interesse público. Cabe então concretizar este conceito, como um interesse tido como supra individual, que extravasa a concepção tradicional dos direitos subjetivos. A sua densificação é complexa, pois são fluidos e flexíveis à sociedade em que se manifestam. Estes são concretizados de forma tripartida na doutrina como interesses difusos strictu sensu, de natureza indivisível cujos titulares são os membros da comunidade, indeterminados; interesses colectivos, de natureza supra-individual e indivisível, mas cuja titularidade é delimitada; e interesses individuais homogéneos, como origem no Reino Unido, de cariz individual e de titularidade exclusiva, contudo com uma origem comum que possibilita o seu tratamento de forma conjunta. Como o Professor Mário Aroso de Almeida, o tratamento unitário que o CPTA apresenta, porém, permite superar a grande complexidade na aferição deste conceito, da mesma forma que o Professor Vasco Pereira da Silva defende ser este um verdadeiro Direito Subjetivo, uma posição jurídica de vantagem, como o são os interesses legalmente protegidos e os direitos subjetivos ss.

IV.              A Ação Popular
Cumpre, porém, analisar o âmbito e alcance subjetivo e objetivo da ação popular. Vimos já que esta tem como objeto a defesa de interesses difusos, no sentido amplo já adotado, de um cariz hibrido, entre o interesse privado e interesse público, interesses que pertencem a cada um e a todos os membros de uma comunidade. Assim, verificamos que o ator popular intenta uma ação no interesse geral coletivo representando assim a coletividade sem que lhe seja exigido qualquer mandato ou autorização. Porém, a norma programática constitucional faz ainda depender da sua concretização a LAP, que traça as condições essenciais para que possam os legitimados – não os particulares -, possam desencadear o mecanismo da Ação Popular em juízo, verificando-se então limitações ao mesmo, a título de exemplo: as associações, limitadas à verificação do princípio da especialidade, pelo artigo 7º da LAP. Por sua vez, o Professor Vasco Pereira da Silva vem a criticar a inserção desta legitimidade aberta em alguns meios processuais, nomeadamente o contratual (77º) ou, no caso de condenação à prática do ato devido, a isenção de exigência de requerimento do Ministério Público (68º/1/b), por considerar excessiva a inserção de um meio objetivista e não subjetivista, nas relações em causa, indevida.
Quanto ao âmbito subjetivo, serão aqueles constitucionalmente protegidos,  elencados no preceito: a saúde pública, o ambiente, o urbanismo, o ordenamento do território, a qualidade de vida, o património cultural e os bens do Estado, das Regiões Autónomas e das Autarquias Locais. Alguns destes interesses coincidem com os interesses fixados na Constituição (52º/3), outros foram acrescentados pelo legislador ao CPTA, sendo meramente enunciativos e não taxativos, como o defendem Jorge Miranda e Rui Medeiros, pela sua volatilidade já mencionada.
Verificamos ainda aquilo a que o Professor Mário Aroso de Almeida denomina de «duplo alcance da remissão» do 9º/2 do CPTA, pois para além de concretizar a LAP a legitimidade ativa no Contencioso Administrativo, vem ainda a ter implicações e adaptações processuais à tramitação da ação (13º e ss). A Ação Popular não consiste, contra o Professor Vieira de Andrade, numa nova forma de processo Administrativo, antes um regime especial que atende às exigências deste alargamento da legitimidade.

V.                  Conclusão
O artigo n.º2 do artigo 9.º do CPTA concretiza o comando constitucional e efetiva a participação dos cidadãos na direção da vida político-administrativa do Estado e no exercício de um controlo da legalidade e oportunidade das decisões administrativas, democratizando o processo, como garantia dos cidadãos. Reflete, ainda uma transposição para a realidade e relação processual, daquela que se verifica ao nível substancial, no referente ao objeto da ação – assim, é reflexo da abertura à defesa de interesses difusos no âmbito do Processo Administrativo. É uma exigência de um Estado de Direito Democrático, uma forma de justificação paramétrica do controlo da atividade administrativa, porque a limita e condiciona. Ainda que a articular com os princípios processuais da economia processual, e atendendo ao risco de um número excessivo de ações propostas, compreendem-se as limitações do alcance subjetivo e objetivo analisadas, que não deixam de atender à natureza e conteúdo dos Interesses Difusos e à sua mutabilidade e flexibilidade. Em concordância com a posição do Professor Vasco Pereira da Silva, considero ser devida uma conceção subjetiva desta ação, que não aparenta constar do artigo 9º2 – porém, tal não traz consequências práticas.
«A defesa dos interesses difusos, em especial do ambiente e do consumidor, pode e deve ser encarada também, e segundo a sugestiva imagem de Jhering, como um momento singular de luta pelo Direito, na medida e, que diz respeito ao destino de todo o ser humano, ao seu desenvolvimento ético e intelectual e ainda à salvaguarda da sua integridade física e biológica”».

(1) ob sit. pág. 255, Vasco Pereira da Silva;
(2) ob sit. pág. 256, Vasco Pereira da Silva;
(3) ob sit. pág. 258, Vasco Pereira da Silva;
(4) ob sit. pág. 261, Vasco Pereira da Silva;
(5) ob sit. pág. 265, Vasco Pereira da Silva;
(7) ob cit pág. 57, Luís Filipe Colaço.

VI. Bibliografia
- DE ALMEIDA, Mário Aroso, Manual de Processo Administrativo, Livraria Almedina, 2014;
- ANTUNES, Luís Filipe Colaço, A Tutela dos interesses difusos em direito administrativo para uma legitimação procedimental, Livraria Almedina, 1989;
- FARINHO, Domingos Soares, Fundações e Interesse Público, Livraria Almedina, 2014;
- PEREIRA DA SILVA, Vasco, O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise, Reimpressão da 2° Edição, Livraria Almedina, 2016.