A Ação Popular no
Contencioso Administrativo
Inês Pereira Lopes
SUMÁRIO:
I. Introdução; II. Legitimidade Ativa no CPTA; III. Interesses Difusos no
Procedimento Administrativo; IV. Ação Popular; V. Conclusão; VI. Bibliografia
I.
Introdução
A “actio popularis”,
figura que remonta ao Direito Romano, resultado de uma conceção primária e
ainda confusa da apropriação de Direitos, renasce com a Revolução Francesa, que
influenciou os ordenamentos jurídicos seus vizinhos na esteira do Liberalismo
Político, como um um meio de atuar, ao nível procedimental, inicialmente, e
depois em juízo, na defesa do interesse público e da legalidade.
Atualmente,
consagrada no nº3 do artigo 52.º da CRP
como um direito fundamental, de intervenção política e corolário do Estado de
Direito Democrático, assenta na defesa de Interesses Difusos, como um meio de
participação no procedimento administrativo e meio de participação
jurisdicional, que pode integrar a Ação Administrativa aparentemente única no
nosso ordenamento.
A Ação
Popular é tida como um instrumento jurídico de complementaridade da
legitimidade processual ativa, servindo a defesa dos interesses difusos, conferido
a determinadas entidades ou pessoas singulares para defesa, como um verdadeiro
direito que concretiza a democracia participativa. Porém, cabe atentar do seu
âmbito objetivo e subjetivo, de forma a testar da sua abrangência efetiva como
instrumento legitimador em juízo.
II.
A Legitimidade Ativa no CPTA de 2015
A par da
sua consagração no âmbito do procedimento administrativo, que consta dos artigos
67º e 68° do CPA, também resulta do Código de Processo dos Tribunais
Administrativos, revisto em 2015 (doravante CPTA), que esta é prevista como ação
popular genérica, como resulta do nº2 do artigo 9º, CPTA e como ação popular
corretiva, nos termos do nº2 do artigo 55º, CPTA. Conferindo legitimidade para
que, na defesa de Interesses Difusos, no
primeiro caso, e da legalidade, no segundo, possam os particulares estar
em juízo. Porém, no entendimento do professor Vasco Pereira da Silva, a ação
popular tida como genérica, prevista na parte geral do CPTA, incorporou a ação
popular correctiva quanto ao contencioso autárquico, consagrado para o Meio
Processual de Impugnação dos Atos Administrativos.
Cabe
então analisar da legitimidade ativa como pressuposto processual que incorpora
a defesa dos Interesses Difusos, por via da ação popular. Na lógica clássica do
contencioso administrativo, originária no modelo francês, era este objetivo por
natureza, «destinado à mera verificação da legalidade de uma atuação
administrativa»(1), não sendo reconhecido qualquer direito subjetivo
às partes, que estariam em juízo unicamente para colaborar, num «”impulso
altruísta” de defesa»(2) da legalidade e do interesse público e não
para que obtivessem a tutela de interesses próprios. Esta lógica que o
Professor Vasco Pereira da Silva classifica como um dos “traumas de infância” do
Contencioso Administrativo veio a ser superada, atribuindo-se a qualidade de
partes processuais aos “administrados”, agora particulares, titulares de
verdadeiros direitos e interesses tuteláveis, numa relação jurídica determinada
com a Administração Pública, paritária ainda que com uma natureza específica, e
não de poder. Esta realidade, a par do reconhecimento da entidade
Administrativa como parte, distinta do Juiz, foi entre nós constitucionalmente
consagrada na Constituição de 1976, nomeadamente nos seus artigos 20º/1 e
268º/4 e 5. Verificamos então um contencioso de plena jurisdição (2º CPTA) e de
natureza subjetiva (2º/2 CPTA), no qual os particulares intervém «em defesa de
suas posições jurídicas de vantagem substantivas»(3), em situação
processual idêntica, pelo princípio da igualdade efetiva da participação
processual (6º e 8º do CPTA), determinada pelo seu objeto, a relação
administrativa (4º/1 ETAF).
Esta
conceção processual espelha-se no pressuposto da legitimidade – constante dos
artigos 9º e 10º, como regras comuns para a generalidade das ações
administrativas, consagrada em relação principal e estreita com a relação
jurídica que sustenta a ação – o mesmo se verifica em diversas outras
disposições, designadamente no artigo 55º, que adapta este pressuposto à ação
de impugnação de atos administrativos, em torno de uma posição subjetiva do
particular em face da Administração Pública. Porém, verificamos reminiscências
da lógica anterior ao se atribuir objetivamente legitimidade a entidades como o
Ministério Público, associações e fundações, etc (9º/2), não obstante
verificar-se um interesse pessoal na demanda.
A
consagração da legitimidade do «ator popular»(4) teve origem
precisamente no modelo francês de negação da posição subjetiva dos particulares
como partes no processo, por se verificar a necessidade prática de delimitar a
legitimidade na impugnação, delimitada pelo juiz em função do interesse,
direto, pessoal e legítimo dos particulares, que Vasco Pereira da Silva
qualifica de “paradoxo da conceção clássica do Contencioso Administrativo”, por
verificarmos por um lado uma conceção objetiva de legitimidade e, por outro,
critérios para aferir da mesma, por ser incomportável que qualquer pessoa
pudesse ser considerada legitima para o recurso, de cariz subjetivo. Assim,
procedeu-se, e bem, no CPTA, a uma desconsideração devida da legitimidade,
pressuposto que visa garantir uma ligação entre a relação material, o objeto, e
a relação processual, sendo o autor parte legítima quando se verifique uma
posição jurídica de vantagem - como um direito subjetivo ou um interesse
legalmente protegido - a tutelar, que o legitima a recorrer a qualquer via
processual adequada e necessária.
O
Professor Vasco Pereira da Silva defende ainda, hoje, não se justificar, no que
diz respeito à densificação da posição jurídica de vantagem no âmbito da
relação controvertida, a distinção entre direitos subjetivos, interesses
legalmente protegidos e interesses difusos, distinção essa que «encontra as
suas raízes no período da “infância difícil” do Direito Administrativo»,
resultado da teorização do interesse que era exigido ao «administrado» no
Contencioso Administrativo. Assim, no atual estado evolutivo do Direito
Administrativo, devem antes todas as posições substantivas de vantagem dos
particulares em face à Administração Pública ser considerados de forma
unitária, verificando-se um direito subjetivo sempre que «de uma norma jurídica
que não vise apenas a satisfação do interesse público mas também a proteção dos
interesses dos particulares, resulte uma situação de vantagem objetiva,
concedida de forma intencional, ou ainda quando dela resulte a concessão de um
mero benefício de facto»(5). Assim, são sujeitos ativos os
reconhecidos nos termos do artigo 9º/2 do CPTA – «o ator público e o ator
popular», desempenhando o Contencioso Administrativo uma função também objetiva
de tutela da legalidade e do interesse público, passível de ser realizada de
forma imediata pela via processual.
Centrando-nos
nos “atores populares”, estes vêm a sua legitimidade reconhecida no artigo
9º/2, a complementar com a Lei nº 83/95(6), corrigindo o legislador,
para o Professor, a confusão patente neste diploma entre uma legitimidade de
cariz objetivista e subjetivista, sendo que o artigo 2º consagra uma situação
de legitimidade indissociável de determinado interesse, e não independente de
um interesse direto na demanda, algo que o artigo 9º/2 do CPTA vem a
estabelecer, como manifestação de uma tutela objetiva de bens e valores
constitucionalmente protegidos, abrangendo a legitimidade numa perspetiva dos
sujeitos, mas restringindo-a na sua incidência aos domínios: “saúde pública,
consumo, urbanismo e ordenamento do território, ambiente e património cultural,
designadamente”, visando complementar a legitimidade subjetivamente orientada
que consagra o artigo 9º/1 do articulado, a par de um alargamento da relação
administrativa para além da relação estritamente bipolar, atendendo à sua
inevitável multipolaridade, de que é exemplo o estatuto de contra-interessado
que o CPTA hoje consagra.
III.
Os Interesses Difusos no
Procedimento Administrativo
Na atual sociedade técnica de
massas, a par da atual vigência da democracia no plano político e de um certo
amadurecimento cívico dos cidadãos, a emergência dos interesses difusos ganha
novo relevo. Isto devido à incapacidade do Estado Pós-Social em arbitrar os
conflitos entre o poder e a sociedade, assim como à crise da representatividade
política numa conjuntura em que proliferam os interesses pluri-individuais.
Neste contexto, surge o interesse difuso como expressão de uma exigência de
participação nas decisões que digam respeito aos mesmos, nomeadamente no âmbito
do Direito Administrativo, cuja finalidade consiste na concretização dos fins
almejados pelo Estado, traduzindo estes o interesse público, à luz do princípio
da legalidade. Em 1989, Luís Filipe Colaço Antunes procede à análise da
relevância da legitimação da intervenção no procedimento e processo por via da
defesa destes interesses, concluindo que esta surge como manifestação da crise
quanto à separação entre direito subjetivo e interesse legítimo, por não
corresponder a nenhuma destas situações substancialmente individuais,
constituindo uma categoria unitária aplicável praticamente a todos os domínios
do direito, e em especial no Direito Administrativo, atendendo ao confronto
entre o poder público que detém e a sociedade, assim como às relações jurídicas
dentro própria, sendo que a Administração, ao atuar por qualquer via perante
determinado cidadão, pode prejudicar ou influenciar a coletividade.
O Professor Luís Filipe Colaço defende ainda ser a sua
teorização o resultado da insuficiência da bipartição entre interesse Público e
Direito Subjetivo, como um intermédio que reflete a própria evolução do
Contencioso Administrativo, espelho do Interesse que era atribuído ao
“administrado” no seio de uma conceção objetivista do mesmo, na prossecução do
interesse público. Cabe então
concretizar este conceito, como um interesse tido como supra individual, que
extravasa a concepção tradicional dos direitos subjetivos. A sua densificação é
complexa, pois são fluidos e flexíveis à sociedade em que se manifestam. Estes
são concretizados de forma tripartida na doutrina como interesses difusos
strictu sensu, de natureza indivisível cujos titulares são os membros da
comunidade, indeterminados; interesses colectivos, de natureza supra-individual
e indivisível, mas cuja titularidade é delimitada; e interesses individuais
homogéneos, como origem no Reino Unido, de cariz individual e de titularidade
exclusiva, contudo com uma origem comum que possibilita o seu tratamento de
forma conjunta. Como o Professor Mário Aroso de Almeida, o tratamento unitário
que o CPTA apresenta, porém, permite superar a grande complexidade na aferição
deste conceito, da mesma forma que o Professor Vasco Pereira da Silva defende
ser este um verdadeiro Direito Subjetivo, uma posição jurídica de vantagem,
como o são os interesses legalmente protegidos e os direitos subjetivos ss.
IV.
A Ação Popular
Cumpre, porém, analisar o âmbito e alcance subjetivo e
objetivo da ação popular. Vimos já que esta tem como objeto a defesa de
interesses difusos, no sentido amplo já adotado, de um cariz hibrido, entre o
interesse privado e interesse público, interesses que pertencem a cada um e a
todos os membros de uma comunidade. Assim, verificamos que o ator popular
intenta uma ação no interesse geral coletivo representando assim a coletividade
sem que lhe seja exigido qualquer mandato ou autorização. Porém, a norma
programática constitucional faz ainda depender da sua concretização a LAP, que
traça as condições essenciais para que possam os legitimados – não os particulares
-, possam desencadear o mecanismo da Ação Popular em juízo, verificando-se
então limitações ao mesmo, a título de exemplo: as associações, limitadas à
verificação do princípio da especialidade, pelo artigo 7º da LAP. Por sua vez,
o Professor Vasco Pereira da Silva vem a criticar a inserção desta legitimidade
aberta em alguns meios processuais, nomeadamente o contratual (77º) ou, no caso
de condenação à prática do ato devido, a isenção de exigência de requerimento
do Ministério Público (68º/1/b), por considerar excessiva a inserção de um meio
objetivista e não subjetivista, nas relações em causa, indevida.
Quanto ao
âmbito subjetivo, serão aqueles constitucionalmente protegidos, elencados no preceito: a saúde pública, o
ambiente, o urbanismo, o ordenamento do território, a qualidade de vida, o
património cultural e os bens do Estado, das Regiões Autónomas e das Autarquias
Locais. Alguns destes interesses coincidem com os interesses fixados na
Constituição (52º/3), outros foram acrescentados pelo legislador ao CPTA, sendo
meramente enunciativos e não taxativos, como o defendem Jorge Miranda e Rui
Medeiros, pela sua volatilidade já mencionada.
Verificamos ainda aquilo a que o Professor Mário Aroso
de Almeida denomina de «duplo alcance da remissão» do 9º/2 do CPTA, pois para
além de concretizar a LAP a legitimidade ativa no Contencioso Administrativo,
vem ainda a ter implicações e adaptações processuais à tramitação da ação (13º
e ss). A Ação Popular não consiste, contra o Professor Vieira de Andrade, numa
nova forma de processo Administrativo, antes um regime especial que atende às
exigências deste alargamento da legitimidade.
V.
Conclusão
O artigo n.º2
do artigo 9.º do CPTA concretiza o comando constitucional e efetiva a participação
dos cidadãos na direção da vida político-administrativa do Estado e no
exercício de um controlo da legalidade e oportunidade das decisões
administrativas, democratizando o
processo, como garantia dos cidadãos. Reflete, ainda uma transposição para a
realidade e relação processual, daquela que se verifica ao nível substancial,
no referente ao objeto da ação – assim, é reflexo da abertura à defesa de
interesses difusos no âmbito do Processo Administrativo. É uma exigência de um
Estado de Direito Democrático, uma forma de justificação paramétrica do
controlo da atividade administrativa, porque a limita e condiciona. Ainda
que a articular com os princípios processuais da economia processual, e
atendendo ao risco de um número excessivo de ações propostas, compreendem-se as
limitações do alcance subjetivo e objetivo analisadas, que não deixam de
atender à natureza e conteúdo dos Interesses Difusos e à sua mutabilidade e
flexibilidade. Em concordância com a posição do Professor Vasco Pereira da
Silva, considero ser devida uma conceção subjetiva desta ação, que não aparenta
constar do artigo 9º2 – porém, tal não traz consequências práticas.
«A defesa dos interesses difusos,
em especial do ambiente e do consumidor, pode e deve ser encarada também, e
segundo a sugestiva imagem de Jhering, como um momento singular de luta pelo
Direito, na medida e, que diz respeito ao destino de todo o ser humano, ao seu
desenvolvimento ético e intelectual e ainda à salvaguarda da sua integridade
física e biológica”».
(1) ob sit. pág. 255, Vasco Pereira
da Silva;
(2) ob sit. pág. 256, Vasco Pereira
da Silva;
(3) ob sit. pág. 258, Vasco Pereira
da Silva;
(4) ob sit. pág. 261, Vasco Pereira
da Silva;
(5) ob sit. pág. 265, Vasco Pereira
da Silva;
(7) ob cit pág. 57, Luís Filipe
Colaço.
VI.
Bibliografia
- DE ALMEIDA, Mário Aroso, Manual de Processo Administrativo, Livraria
Almedina, 2014;
- ANTUNES, Luís
Filipe Colaço, A Tutela dos interesses difusos
em direito administrativo para uma legitimação procedimental, Livraria Almedina,
1989;
- FARINHO, Domingos
Soares, Fundações e Interesse Público, Livraria Almedina,
2014;
- PEREIRA DA SILVA,
Vasco, O Contencioso Administrativo no
Divã da Psicanálise, Reimpressão da 2° Edição, Livraria Almedina, 2016.