O problema que se coloca passa por apurar se é
processualmente admissível, impugnação jurisdicional autónoma junto dos
tribunais administrativos por parte do destinatário de actos praticados pelas
autoridades administrativas, em ordem a dar cumprimento ao dever que lhes
incumbe por força do disposto do art 128º, nº2 do Código de Processo nos Tribunais
Administrativos (CPTA). De acordo
com o estabelecido no art. 128/1 do CPTA, “quando seja requerida a suspensão da
eficácia de um acto administrativo a autoridade administrativa, recebido o
duplicado do requerimento, não pode iniciar ou prosseguir a execução, salvo se
mediante resolução fundamentada, reconhecer no prazo de 15 dias, que o
diferimento da execução seria gravemente prejudicial para o interesse público”. Estamos, assim, perante uma
disposição legal que surge com um claro intuito de tutelar com maior a
brevidade possível uma determinada posição jurídica de um particular,
consagrando um dever legal da Administração, de quando seja requerida a
suspensão da eficácia de um acto administrativo de não dar início ou suspender
a execução do acto, a lesão do seu direito ou interesse.
Por sua vez, o nº2 do mesmo
artigo prevê, que sem “prejuízo do previsto na parte final do número anterior,
deve a autoridade que receba o duplicado impedir, com urgência que os serviços
competentes ou os interessados procedam ou continuem a proceder à execução do
acto”. Da sua leitura, retira-se, que
as autoridades administrativas requeridas no contexto de providências
cautelares de suspensão da eficácia de actos administrativos, ficam incumbidas
de impedir, com urgência, que os serviços competentes ou os interessados o
façam. O que releva para o caso é, sobretudo,
este segundo dever que se consubstancia, na obrigação de impedir que o acto
suspendendo seja objecto de “ execução” por um qualquer terceiro interessado. Com
efeito, o que está em causa é, após requerida a suspensão de eficácia de um
acto administrativo, a adopção “de operações de execução” do referido acto
administrativo por parte do respectivo destinatário, como por exemplo, a construção
de uma casa ao abrigo de uma licença urbanística, a destruição de árvores na
sequência de autorização de corte ou arranque, etc.
Suponha-se então, que um terceiro, em relação
a qualquer um desses actos, requer a suspensão de respectiva eficácia e que a
autoridade competente (por iniciativa espontânea ou após determinação judicial),
notifica o destinatário do acto, a determinar-lhe o cumprimento do dever
previsto no art 128º nº do CPTA, emitindo por exemplo, uma ordem de embargo da
obra ou uma proibição do abate de árvores. A questão que se coloca, consiste em
apurar se o destinatário se encontra em condições de impugnar esses actos que
as autoridades competentes praticam, em ordem a garantir a observância do
dever, que lhes é incumbido, de impedir a “execução” do acto administrativo
cuja suspensão de eficácia foi requerida. Podemos, portanto, denomina-los de “
segundos actos” que se revelam “contrários” aos actos anteriores da mesma
autoridade administrativa. Embora, em bom rigor, a actuação desenvolvida “ ao
abrigo” de um acto administrativo favorável, pelo respectivo beneficiário, não
representa uma execução desse acto administrativo. A actividade de construção
de uma casa não corresponde à execução do acto administrativo de licenciamento,
nem, tão pouco a prática de actos médicos se traduz na execução do acto de
inscrição na ordem profissional. No entanto, exige-se uma interpretação do art.
128/2, de modo a considerar a execução do acto pelo interessado, como
referindo-se, a toda e qualquer actuação exercida ou desenvolvida pelo
interessado “ ao abrigo” ou “com fundamento” num acto administrativo, pois parece
ser a única forma de acautelar o fim da norma. Pelo que, seguindo o raciocínio
exposto, estes “segundos actos”, praticados ao abrigo do art 128, nº2, do CPTA,
devem ser entendidos como actos administrativos em sentido estrito
autonomamente lesivos da esfera jurídica dos respectivos destinatários.
Caracterizam-se por ser secundários, por encerrarem em si mesmos a virtualidade
de, na prática, suspenderem a eficácia dos “primeiros actos”. Na verdade, por
força dos mesmos, o respectivo destinatário vê-se efectivamente privado do
direito de beneficiar da eficácia jurídica favorável dos “primeiros actos”
(licença, concessão, autorização, inscrição, etc.), exemplificando: a decisão
de uma autoridade administrativa que impede, o beneficiário de uma concessão,
licença ou autorização de desenvolver a actividade concedida, licenciada ou
autorizada corresponde inequivocamente, a um acto administrativo desfavorável
de carácter impositivo cujos efeitos se repercutem na esfera jurídica do
beneficiário daqueles “primeiros actos”.
Cumpre referir que, até ao
momento de notificação dos “segundos actos”, a situação jurídica criada pelos
“primeiros” mantém-se intocada, uma vez que, é de vital importância, a
apresentação do requerimento para decretamento da suspensão da eficácia de
actos administrativos, mais que implica, é o dever automático, imediatamente
decorrente da lei, para a autoridade administrativa requerida, de não iniciar
ou prosseguir com a execução do acto, e, além disso, a obrigação de impedir que
terceiros (contra–interessados) o façam.
Estes actos – “segundos actos” -, ainda que produzidos em aplicação directa
de uma norma jurídico-processual, vão desencadear uma severa influência na
esfera jurídica dos respectivos destinatários, conformando-a unilateral
imperativa inovatoriamente. Tudo isto necessariamente determina que nos
confrontemos com actos dotados de efeitos externos e autonomamente lesivos dos
direitos e interesses dos destinatários.
Com o que se quer dizer que o que está verdadeiramente em questão não são
actos da Administração praticados em “execução de uma decisão judicial”, mas,
antes e em contrapartida, decisões administrativas de carácter autoritário,
unilateral e inovatório ditadas “ em directa e imediata execução da lei” que
por se tratar de decisões administrativas revestidas de efeitos externos,
decisórios e dotados de uma capacidade lesiva autónoma dos direitos e
interesses legalmente protegidos dos seus destinatários, se devem ter como
passíveis de impugnação junto da jurisdição administrativa em actuação da
respectiva função processual ou contensiosa.1
Da
inconstitucionalidade do art 128, nº2 do CPTA.
Na linha do professor
Pedro Gonçalves os actos praticados ao abrigo do art. 128/2. do CPTA parece ser
inconstitucional pela violação dos art. 20 e 268 da CRP. Estes últimos, consagram o princípio da tutela da jurisdicional
efectiva, e mais concretamente, pela violação da sua densificação constitucional
em tutela efectiva jurisdicional dos particulares perante a Administração.2
Cumpre, antes de mais, densificar as normas constitucionais aqui em
causa. Assim, do princípio da tutela jurisdicional efectiva retiram-se
múltiplas vertentes específicas, nomeadamente: a garantia de acesso aos
tribunais enquanto modo de tutela de direitos e interesse; o direito à
informação, representação jurídica e ao contraditório; o direito a uma decisão,
num prazo célere e como fruto de um processo equitativo. Tudo isto pode ser
extraído do art. 20. Da CRP, sendo posteriormente expressamente estendido à
ordem jurisdicional administrativa, por via do art. 268/4. Ora face ao exposto o art. 128/2., padece de uma uma ponderação equitativa
entre os interesses contrastantes dos requerentes e requeridos (aí incluídos os
contra-interessados), pois sofre de um défice manifesto de consideração dos
interesses dos contra-interessados, que aí são, completamente ignorados ou
desprezados. O regime da tutela
cautelar moldado pelo CPTA (neste segmento específico) não concede qualquer
protecção mínima aos contra-interessados, “ visto que não toma em consideração
os seus interesses na execução imediata do acto que podem ser comparativamente
mais relevantes e merecedores de tutela do que os do requerente”. A
administração complexificou-se, deixando de se apresentar como uma estrutura
simples, muitas vezes desempenhando funções de Administração agressiva, para
adquirir maior densidade, complexidade e assumindo dessa forma uma natureza de cariz
mais prestadora. Desta forma, surgiram as relações administrativas poligonais e
multipolares, nas quais se observa não a típica relação jurídica simples
Administração-particular, mas sim uma relação de natureza muito mais complexa,
entre Administração e os particulares e os seus múltiplos interesses,
interesses esses que podem, por vezes, ser afectados por uma relação a que são terceiros
entre a Administração e um determinado particular. Do exposto, resulta o legislador
parece se ter esquecido, dos problemas específicos e especialmente complexos,
verificados sobretudo no contexto das relações jurídico-administrativas de
natureza urbanística, ambiental e concorrencial, levantados pela existência de
relações multipolares, em que em jogo não estão apenas os interesses
bilaterais, mas igualmente os de terceiros (contra-interessados), que podem vir
a ser directamente afectados pela decisão tomada pela Administração. A solução legal deveria prever uma ponderação de
prejuízos ou de danos, devendo privilegiar-se a posição dos requerentes do qual
os direitos ou interesses fossem em concreto os mais prejudicados da execução
imediata do acto ou, em alternativa, conferir prevalência à posição dos
requeridos (aí incluídos os contra-interessados) se caso fossem os seus
direitos ou interesses legalmente protegidos a sofrer maior dano por força da
não execução imediata do acto. Ao
invés, o legislador optou por conferir prevalência ao interesse do requerente,
sem qualquer ponderação de justiça material no caso concreto, podendo assim
resultar da aplicação desse preceito o sacrifício de interesses afectos a contra-interessados. Confrontamo-nos,
deste modo com um claro tratamento discriminatório injustificado, onde os contra-interessados,
nem sequer, têm o direito de ser ouvidos ou de exercer o contraditório
Em síntese, temos uma
situação em que a lei confere aos requerentes de providências cautelates um
poder soberano de veto sobre o exercício de actividades privadas devidamente concedidas
(licenças, concessões) ficando, por sua vez, os titulares das respectivas
concessões e licenças inteiramente presos às providências cautelares – ainda
que dispondo de um título jurídico plenamente válido e eficaz. E a situação de total
sujeição de uma das partes ao poder de veto da outra vale mesmo que a providência
cautelar se revele abusiva e carecida, de qualquer fundamento legal sério ou
juridicamente relevante. De todo este enquadramento, retira-se que o art. 128.
não teve, em devida conta os direitos e interesses legalmente protegidos dos
contra–interessados em matéria de proibição da execução do acto administrativo devido
à mera apresentação de uma providência cautelar suspensiva, não tendo em conta
nem procedendo à verificação de qualquer consistência material ou densidade, os
interesses em jogo, sendo o único mecanismo capaz de contornar essa proibição a
resolução fundamentada das entidades administrativas requeridas, deixando-se os
contra-interessados numa situação de total desprotecção. Como tal e em
consonância com vários autores3, deve a norma que foi objecto destas
linhas ser tida como materialmente inconstitucional por infracção daquilo que
vem consagrado nos art. 20. E 268. da CRP. Pois nos termos em que se encontra
redigida, não é dela possível (tal como foi supra referido) retirar a adequada
tutela a que têm direito os contra-interessados, exercendo o contraditório e
tendo assim a possibilidade de demonstrar serem os seus interesses
prevalecentes na situação em causa, devendo, portanto, não ser aplicada a
proibição de execução do acto administrativo nesse caso concreto.
O professor Mário Aroso
de Almeida, quanto ao art. 128. critica a excessiva jurisdicionalização do
artigo em questão pelos tribunais administrativos. Para o professor, o efeito
suspensivo é automático, sem ser necessário (nem permitido) que o juiz se
pronuncie sobre se o efeito se produz ou não, assim como o levantamento dessa
proibição por via da resolução fundamentada é um efeito que se produz
extrajudicialmente, sem intervenção do juiz, é uma manifestação unilateral da
Admnistração. Não concordo muito com esta posição do professor, porque me
parece errado deixar à Administração o poder de unilateralmente e sem qualquer
controlo por parte do juiz decidir quando é que não quer que o efeito se
produza. Choca-me muito mais admitir que a Administração é que controla a
produção de um efeito legal, do que sero juíza fazê-lo. Assim deverá caber ao
juiz o dever de controlar a fundamentação utilizada na resolução, e a
existência ou não de um interesse público efectivo.
A professora Elizabeth
Fernandes, critica a teoria defendida pelos autores referidos supra, pois
afirma que este dever da Administração não existe com os moldes que a doutrina
lhe vem dando. Se se admitir que a Administração tem um verdadeiro dever de
impedir a realização de actos de execução do acto suspendendo, então isso seria
o equivalentea dizer que a citação da providência cautelar de suspensão de
eficácia do acto administrativo tem o mesmo efeito que o seu decretamento
efectivo.
Cumpre referir, que o
anteprojecto do novo CPTA, não parece trazer alterações relevantes quanto ao
entendimento jurisprudencial do art. 128. apenas determina a suspensão dos
efeitos de actos pré contratuais e não de actos de execução do contrato, como
foi decidido pelo Acórdão do TCA Norte de 28/02/2014. Segundo as palavras do
STA “a aplicação do art. 128. Do CPTA às providências cautelares de suspensão
de eficácia dos actos administrativos surgidos na formação de um contrato
apenas suspende a eficácia de actos administrativos, não se aplicando aos actos
de execução do contrato, os quais serão declarados ineficazes (por força do
art. 128.) apenas se o próprio contrato tenha sido celebrado na pendência da
suspensão automática decorrente do nº1 do mesmo preceito legal, pois nessa
situação é o próprio contrato que é celebrado através de uma declaração de
vontade ineficaz”
(1)
Por fim uma nota complementar para
sublinhar a natureza avinculada do acto
praticado ao abrigo do art 128, nº2. A letra da lei é esclarecedora quanto a
este ponto: “deve a autoridade… impedir (…)”. Uma inacção correspondente neste
caso, ao incumprimento de um dever legal. Vale isso por dizer que o acto a
praticar configura um acto administrativo
devido de conteúdo vinculado; na
verdade, além de impor à autoridade a adopção de um acto administrativo, a lei
indica o conteúdo que esse acto deve de assumir: “impedir que os interessados
procedam ou continuem a proceder à execução do (primeiro) acto”
(2)
Por relação ao princípio da tutela
jurisdicional efectiva, nas suas variadas projecções, Gomes Canotilho
(3)
Inclinando-se definitivamente neste
sentido, Gomes Canotilho
Bibliografia
GONÇALVES
Pedro, Impugnabilidade dos actos praticados ao abrigo do art.128, n.2, do CPTA
e da inconstitucionalidade da norma habilitante, in da Cadernos de Justiça
Administrativa, nº90, 2011
MARQUES,Francisco
Paes, “As relações jurídicas
multipolares, contributo para a sua compreensão substantiva”, Almedina,2011
ALMEDINA,
Mário Aroso de, “Manual de Processo
Administrativo”, Almedina, 2010
FERNANDEZ
Elizabeth, Revisitanto o art. 128, n.2, do CPTA agora na perspectiva dos
interessados, in Cadernos de Justiça Administrativa, nº90, 2011
Eliana Martins nº21912
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