quinta-feira, 18 de dezembro de 2014

A Impugnabilidade dos actos praticados ao abrigo do art. 128/2 do CPTA e inconstitucionalidade da norma habilitante

 O problema que se coloca passa por apurar se é processualmente admissível, impugnação jurisdicional autónoma junto dos tribunais administrativos por parte do destinatário de actos praticados pelas autoridades administrativas, em ordem a dar cumprimento ao dever que lhes incumbe por força do disposto do art 128º, nº2 do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (CPTA). De acordo com o estabelecido no art. 128/1 do CPTA, “quando seja requerida a suspensão da eficácia de um acto administrativo a autoridade administrativa, recebido o duplicado do requerimento, não pode iniciar ou prosseguir a execução, salvo se mediante resolução fundamentada, reconhecer no prazo de 15 dias, que o diferimento da execução seria gravemente prejudicial para o interesse público”. Estamos, assim, perante uma disposição legal que surge com um claro intuito de tutelar com maior a brevidade possível uma determinada posição jurídica de um particular, consagrando um dever legal da Administração, de quando seja requerida a suspensão da eficácia de um acto administrativo de não dar início ou suspender a execução do acto, a lesão do seu direito ou interesse.
Por sua vez, o nº2 do mesmo artigo prevê, que sem “prejuízo do previsto na parte final do número anterior, deve a autoridade que receba o duplicado impedir, com urgência que os serviços competentes ou os interessados procedam ou continuem a proceder à execução do acto”. Da sua leitura, retira-se, que as autoridades administrativas requeridas no contexto de providências cautelares de suspensão da eficácia de actos administrativos, ficam incumbidas de impedir, com urgência, que os serviços competentes ou os interessados o façam. O que releva para o caso é, sobretudo, este segundo dever que se consubstancia, na obrigação de impedir que o acto suspendendo seja objecto de “ execução” por um qualquer terceiro interessado. Com efeito, o que está em causa é, após requerida a suspensão de eficácia de um acto administrativo, a adopção “de operações de execução” do referido acto administrativo por parte do respectivo destinatário, como por exemplo, a construção de uma casa ao abrigo de uma licença urbanística, a destruição de árvores na sequência de autorização de corte ou arranque, etc.
 Suponha-se então, que um terceiro, em relação a qualquer um desses actos, requer a suspensão de respectiva eficácia e que a autoridade competente (por iniciativa espontânea ou após determinação judicial), notifica o destinatário do acto, a determinar-lhe o cumprimento do dever previsto no art 128º nº do CPTA, emitindo por exemplo, uma ordem de embargo da obra ou uma proibição do abate de árvores. A questão que se coloca, consiste em apurar se o destinatário se encontra em condições de impugnar esses actos que as autoridades competentes praticam, em ordem a garantir a observância do dever, que lhes é incumbido, de impedir a “execução” do acto administrativo cuja suspensão de eficácia foi requerida. Podemos, portanto, denomina-los de “ segundos actos” que se revelam “contrários” aos actos anteriores da mesma autoridade administrativa. Embora, em bom rigor, a actuação desenvolvida “ ao abrigo” de um acto administrativo favorável, pelo respectivo beneficiário, não representa uma execução desse acto administrativo. A actividade de construção de uma casa não corresponde à execução do acto administrativo de licenciamento, nem, tão pouco a prática de actos médicos se traduz na execução do acto de inscrição na ordem profissional. No entanto, exige-se uma interpretação do art. 128/2, de modo a considerar a execução do acto pelo interessado, como referindo-se, a toda e qualquer actuação exercida ou desenvolvida pelo interessado “ ao abrigo” ou “com fundamento” num acto administrativo, pois parece ser a única forma de acautelar o fim da norma. Pelo que, seguindo o raciocínio exposto, estes “segundos actos”, praticados ao abrigo do art 128, nº2, do CPTA, devem ser entendidos como actos administrativos em sentido estrito autonomamente lesivos da esfera jurídica dos respectivos destinatários. Caracterizam-se por ser secundários, por encerrarem em si mesmos a virtualidade de, na prática, suspenderem a eficácia dos “primeiros actos”. Na verdade, por força dos mesmos, o respectivo destinatário vê-se efectivamente privado do direito de beneficiar da eficácia jurídica favorável dos “primeiros actos” (licença, concessão, autorização, inscrição, etc.), exemplificando: a decisão de uma autoridade administrativa que impede, o beneficiário de uma concessão, licença ou autorização de desenvolver a actividade concedida, licenciada ou autorizada corresponde inequivocamente, a um acto administrativo desfavorável de carácter impositivo cujos efeitos se repercutem na esfera jurídica do beneficiário daqueles “primeiros actos”. Cumpre referir que, até ao momento de notificação dos “segundos actos”, a situação jurídica criada pelos “primeiros” mantém-se intocada, uma vez que, é de vital importância, a apresentação do requerimento para decretamento da suspensão da eficácia de actos administrativos, mais que implica, é o dever automático, imediatamente decorrente da lei, para a autoridade administrativa requerida, de não iniciar ou prosseguir com a execução do acto, e, além disso, a obrigação de impedir que terceiros (contra–interessados) o façam. Estes actos – “segundos actos” -, ainda que produzidos em aplicação directa de uma norma jurídico-processual, vão desencadear uma severa influência na esfera jurídica dos respectivos destinatários, conformando-a unilateral imperativa inovatoriamente. Tudo isto necessariamente determina que nos confrontemos com actos dotados de efeitos externos e autonomamente lesivos dos direitos e interesses dos destinatários. Com o que se quer dizer que o que está verdadeiramente em questão não são actos da Administração praticados em “execução de uma decisão judicial”, mas, antes e em contrapartida, decisões administrativas de carácter autoritário, unilateral e inovatório ditadas “ em directa e imediata execução da lei” que por se tratar de decisões administrativas revestidas de efeitos externos, decisórios e dotados de uma capacidade lesiva autónoma dos direitos e interesses legalmente protegidos dos seus destinatários, se devem ter como passíveis de impugnação junto da jurisdição administrativa em actuação da respectiva função processual ou contensiosa.1
Da inconstitucionalidade do art 128, nº2 do CPTA.
Na linha do professor Pedro Gonçalves os actos praticados ao abrigo do art. 128/2. do CPTA parece ser inconstitucional pela violação dos art. 20 e 268 da CRP. Estes últimos, consagram o princípio da tutela da jurisdicional efectiva, e mais concretamente, pela violação da sua densificação constitucional em tutela efectiva jurisdicional dos particulares perante a Administração.2 Cumpre, antes de mais, densificar as normas constitucionais aqui em causa. Assim, do princípio da tutela jurisdicional efectiva retiram-se múltiplas vertentes específicas, nomeadamente: a garantia de acesso aos tribunais enquanto modo de tutela de direitos e interesse; o direito à informação, representação jurídica e ao contraditório; o direito a uma decisão, num prazo célere e como fruto de um processo equitativo. Tudo isto pode ser extraído do art. 20. Da CRP, sendo posteriormente expressamente estendido à ordem jurisdicional administrativa, por via do art. 268/4. Ora face ao exposto o art. 128/2., padece de uma uma ponderação equitativa entre os interesses contrastantes dos requerentes e requeridos (aí incluídos os contra-interessados), pois sofre de um défice manifesto de consideração dos interesses dos contra-interessados, que aí são, completamente ignorados ou desprezados. O regime da tutela cautelar moldado pelo CPTA (neste segmento específico) não concede qualquer protecção mínima aos contra-interessados, “ visto que não toma em consideração os seus interesses na execução imediata do acto que podem ser comparativamente mais relevantes e merecedores de tutela do que os do requerente”. A administração complexificou-se, deixando de se apresentar como uma estrutura simples, muitas vezes desempenhando funções de Administração agressiva, para adquirir maior densidade, complexidade e assumindo dessa forma uma natureza de cariz mais prestadora. Desta forma, surgiram as relações administrativas poligonais e multipolares, nas quais se observa não a típica relação jurídica simples Administração-particular, mas sim uma relação de natureza muito mais complexa, entre Administração e os particulares e os seus múltiplos interesses, interesses esses que podem, por vezes, ser afectados por uma relação a que são terceiros entre a Administração e um determinado particular. Do exposto, resulta o legislador parece se ter esquecido, dos problemas específicos e especialmente complexos, verificados sobretudo no contexto das relações jurídico-administrativas de natureza urbanística, ambiental e concorrencial, levantados pela existência de relações multipolares, em que em jogo não estão apenas os interesses bilaterais, mas igualmente os de terceiros (contra-interessados), que podem vir a ser directamente afectados pela decisão tomada pela Administração. A  solução legal deveria prever uma ponderação de prejuízos ou de danos, devendo privilegiar-se a posição dos requerentes do qual os direitos ou interesses fossem em concreto os mais prejudicados da execução imediata do acto ou, em alternativa, conferir prevalência à posição dos requeridos (aí incluídos os contra-interessados) se caso fossem os seus direitos ou interesses legalmente protegidos a sofrer maior dano por força da não execução imediata do acto. Ao invés, o legislador optou por conferir prevalência ao interesse do requerente, sem qualquer ponderação de justiça material no caso concreto, podendo assim resultar da aplicação desse preceito o sacrifício de interesses afectos a contra-interessados. Confrontamo-nos, deste modo com um claro tratamento discriminatório injustificado, onde os contra-interessados, nem sequer, têm o direito de ser ouvidos ou de exercer o contraditório
Em síntese, temos uma situação em que a lei confere aos requerentes de providências cautelates um poder soberano de veto sobre o exercício de actividades privadas devidamente concedidas (licenças, concessões) ficando, por sua vez, os titulares das respectivas concessões e licenças inteiramente presos às providências cautelares – ainda que dispondo de um título jurídico plenamente válido e eficaz. E a situação de total sujeição de uma das partes ao poder de veto da outra vale mesmo que a providência cautelar se revele abusiva e carecida, de qualquer fundamento legal sério ou juridicamente relevante. De todo este enquadramento, retira-se que o art. 128. não teve, em devida conta os direitos e interesses legalmente protegidos dos contra–interessados em matéria de proibição da execução do acto administrativo devido à mera apresentação de uma providência cautelar suspensiva, não tendo em conta nem procedendo à verificação de qualquer consistência material ou densidade, os interesses em jogo, sendo o único mecanismo capaz de contornar essa proibição a resolução fundamentada das entidades administrativas requeridas, deixando-se os contra-interessados numa situação de total desprotecção. Como tal e em consonância com vários autores3, deve a norma que foi objecto destas linhas ser tida como materialmente inconstitucional por infracção daquilo que vem consagrado nos art. 20. E 268. da CRP. Pois nos termos em que se encontra redigida, não é dela possível (tal como foi supra referido) retirar a adequada tutela a que têm direito os contra-interessados, exercendo o contraditório e tendo assim a possibilidade de demonstrar serem os seus interesses prevalecentes na situação em causa, devendo, portanto, não ser aplicada a proibição de execução do acto administrativo nesse caso concreto.
O professor Mário Aroso de Almeida, quanto ao art. 128. critica a excessiva jurisdicionalização do artigo em questão pelos tribunais administrativos. Para o professor, o efeito suspensivo é automático, sem ser necessário (nem permitido) que o juiz se pronuncie sobre se o efeito se produz ou não, assim como o levantamento dessa proibição por via da resolução fundamentada é um efeito que se produz extrajudicialmente, sem intervenção do juiz, é uma manifestação unilateral da Admnistração. Não concordo muito com esta posição do professor, porque me parece errado deixar à Administração o poder de unilateralmente e sem qualquer controlo por parte do juiz decidir quando é que não quer que o efeito se produza. Choca-me muito mais admitir que a Administração é que controla a produção de um efeito legal, do que sero juíza fazê-lo. Assim deverá caber ao juiz o dever de controlar a fundamentação utilizada na resolução, e a existência ou não de um interesse público efectivo.
A professora Elizabeth Fernandes, critica a teoria defendida pelos autores referidos supra, pois afirma que este dever da Administração não existe com os moldes que a doutrina lhe vem dando. Se se admitir que a Administração tem um verdadeiro dever de impedir a realização de actos de execução do acto suspendendo, então isso seria o equivalentea dizer que a citação da providência cautelar de suspensão de eficácia do acto administrativo tem o mesmo efeito que o seu decretamento efectivo.
Cumpre referir, que o anteprojecto do novo CPTA, não parece trazer alterações relevantes quanto ao entendimento jurisprudencial do art. 128. apenas determina a suspensão dos efeitos de actos pré contratuais e não de actos de execução do contrato, como foi decidido pelo Acórdão do TCA Norte de 28/02/2014. Segundo as palavras do STA “a aplicação do art. 128. Do CPTA às providências cautelares de suspensão de eficácia dos actos administrativos surgidos na formação de um contrato apenas suspende a eficácia de actos administrativos, não se aplicando aos actos de execução do contrato, os quais serão declarados ineficazes (por força do art. 128.) apenas se o próprio contrato tenha sido celebrado na pendência da suspensão automática decorrente do nº1 do mesmo preceito legal, pois nessa situação é o próprio contrato que é celebrado através de uma declaração de vontade ineficaz”

(1)     Por fim uma nota complementar para sublinhar a natureza avinculada do acto praticado ao abrigo do art 128, nº2. A letra da lei é esclarecedora quanto a este ponto: “deve a autoridade… impedir (…)”. Uma inacção correspondente neste caso, ao incumprimento de um dever legal. Vale isso por dizer que o acto a praticar configura um acto administrativo devido de conteúdo vinculado; na verdade, além de impor à autoridade a adopção de um acto administrativo, a lei indica o conteúdo que esse acto deve de assumir: “impedir que os interessados procedam ou continuem a proceder à execução do (primeiro) acto”
(2)     Por relação ao princípio da tutela jurisdicional efectiva, nas suas variadas projecções, Gomes Canotilho
(3)     Inclinando-se definitivamente neste sentido, Gomes Canotilho

Bibliografia

GONÇALVES Pedro, Impugnabilidade dos actos praticados ao abrigo do art.128, n.2, do CPTA e da inconstitucionalidade da norma habilitante, in da Cadernos de Justiça Administrativa, nº90, 2011
MARQUES,Francisco Paes, “As relações jurídicas multipolares, contributo para a sua compreensão substantiva”, Almedina,2011
ALMEDINA, Mário Aroso de, “Manual de Processo Administrativo”, Almedina, 2010

FERNANDEZ Elizabeth, Revisitanto o art. 128, n.2, do CPTA agora na perspectiva dos interessados, in Cadernos de Justiça Administrativa, nº90, 2011

Eliana Martins nº21912

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