quinta-feira, 18 de dezembro de 2014

Convolação do Processo Cautelar em Processo Principal – Art. 121.º do CPTA



Introdução

A reforma do contencioso administrativo, operada em 2002, trouxe grandes inovações no que se refere ao plano processual. Procurando dar cumprimento ao direito fundamental a uma tutela jurisdicional efetiva, consagrado na nossa constituição no art. 268.º nº4, a reforma visou assegurar o direito ao processo efetivo e temporalmente justo, através da criação de novos meios processuais e uma dinamização profunda dos meios existentes, com um evidente reforço dos poderes dos tribunais  nos vários planos de tutela[i]. No plano da tutela cautelar, esta reforma fez-se sentir profundamente com a consagração de meios de tutela urgente de caracter provisório e instrumental.
O CPTA estabelece o regime aplicável aos processos cautelares no Título V, artigos 112.º a 134.º. Depende da causa que tem por objeto a decisão sobre o mérito, podendo ser intentado como preliminar ou como incidente do processo respetivo. O processo cautelar visa assegurar a utilidade da sentença que venha a ser proferida. Em virtude da sua função de prevenção contra a demora, as providências apresentam as seguintes características:
a)      Instrumentalidade (em relação a um processo declarativo principal) -  dependem na função e na estrutura de uma ação principal, cuja utilidade se visa assegurar;
b)      Provisoriedade – a função da providência cautelar é a antecipação transitória do efeito pretendido no processo principal, mas sem que esse ganho provisório represente a própria aquisição do que só a título definitivo poderia vir a ser jurisdicionalmente determinado (art. 124.º nº1 do CPTA);
c)      Sumariedade – trata-se da característica mais importante das providências cautelares, uma vez que, o que aqui está em causa, é obviar, em tempo útil, ocorrências que possam comprometer a utilidade do processo principal, para decidir  se confere ou não a tutela, o juiz deve proceder apenas a apreciações superficiais, baseadas num juízo sumário sobre os factos a apreciar.  
As providências cautelares assumem outra função para além da referida em cima,  a de em situações dotadas de pontual urgência estas se substituírem à própria tutela definitiva, ou seja, a de consumirem a necessidade da propositura de uma ação principal destinada a confirmar a tutela provisória.
O art. 121.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, veio consagrar de forma inovadora, o instituto da antecipação do juízo sobre a causa principal na pendência de processo cautelar. Ao consagrar esta possibilidade o legislador propõe uma solução equilibrada para situações atípicas de urgência, trata-se portanto de uma espécie de complemento aos processos cautelares urgentes[ii]. Este artigo demonstra assim o reconhecimento por parte do legislador, da sua limitação quanto à impossibilidade de previsão de todas as situações típicas de urgência[iii]. Nas situações que não se encontrem cobertas por estes processos, o máximo que o código pode fazer é permitir a antecipação em sede cautelar, de decisões a proferir em processos principais não urgentes, quando seja de reconhecer a necessidade de rápida tutela de mérito. Em suma com o acionamento deste instituto dá-se uma antecipação do juízo principal no processo cautelar  e portanto, uma convolação da tutela cautelar em tutela urgente definitiva.

Requisitos

A possibilidade de antecipação do julgamento sobre o fundo da causa depende, segundo Dora Lucas Neto[iv],  do preenchimento de três requisitos cumulativos:
1.      A manifesta urgência na resolução definitiva do caso, atendendo à natureza das questões colocadas e à gravidade dos interesses envolvidos;
2.      A situação em presença não se compadeça com a adoção de uma simples providência cautelar; e
3.      Terem sido trazidos ao processo todos os elementos necessários para o efeito.
Marlene Sennewald defende que os dois primeiros requisitos referidos por Dora lucas Neto, são na verdade apenas um requisito substantivo, na medida em que o segundo aspeto constitui um mero critério para se aferir a manifesta urgência na resolução definitiva do caso, ou seja, se o caso manifesta urgência em ser resolvido de forma definitiva, é, precisamente , porque a situação em causa não se compadece com a adoção de uma simples providência cautelar. Esta autora diz ainda que um dos requisitos deste instituto é a audiência dos interessados, analisaremos este requisito em detalhe mais à frente.
1. Quanto ao primeiro requisito, este trata-se de um requisito substantivo a ser aferido caso a caso, tendo em conta a natureza das questões e a gravidade dos interesses envolvidos. Segundo Marlene Sennewald entende-se que uma questão carece de uma decisão definitiva urgente se se verificam dois fatores: por um lado, quando haja um prazo temporal durante o qual o exercício do direito em causa poderá produzir efeitos úteis e após o qual se torna, consequentemente inútil qualquer pretensão de tutela por outro lado, quando estiver em causa uma questão que exija uma tutela que, pelas suas características, uma vez concedida produz efeitos irreversíveis[v]. TIAGO ANTUNES entende que os interesses em causa têm de estar previstos na Lei (exemplificando com o art. 112º/7 do CPTA), defendendo que “só faz sentido aplicar o art. 121º com base na gravidade dos interesses envolvidos se existir habilitação normativa para esse efeito”.[vi]
Segundo Isabel Fonseca[vii], a situação de manifesta urgência pressupõe o perigo de dano com relevância jurídica, falando-se de irreparabilidade, de irreversibilidade ou de prejuízos graves e irreparáveis, sendo certo que dano é relevante se for adequado a causa a perda da efetividade do próprio processo. A situação de urgência pressupõe a existência de uma pretensão jurídica ameaçada de lesão, num quadro temporal imediato ou muito próximo, sendo que a atuação jurisdicional que necessariamente se requer para obstar à consumação da ameaça deve concretizar-se necessariamente num quadro temporal curto, sob pena  de perda de efetividade do processo da decisão jurisdicional que vier posteriormente a ser proferida no processo.
A supra referida “situação de urgência” só se torna evidente quando se verificam ambos os pressupostos, não se bastando com a solução cautelar, intrinsecamente provisória e instrumental, e por isso mesmo, apenas concedida quando se verifique o requisito da sua reversibilidade.
O requisito da gravidade dos interesses envolvidos torna evidente a necessidade de estar em causa um direito ou interesse legalmente protegido de tal importância que justifique uma protecção especial.
Neste ponto, e para melhor concretização e delimitação do conceito, devemos ter em conta não apenas a intensidade do dano ou da lesão a que os interesses públicos ou privados em causa ficam expostos com a não antecipação da decisão da causa principal, mas também deve ser feito um juízo de ponderação, tendo em conta a importância, seriedade e valor dos interesses em presença, no sentido de perceber se a lesão destes é superior à lesão do interesse público, resultante da antecipação da causa principal. Nesta ponderação será, certamente, relevante a natureza dificilmente reparável dos bens e valores subjacentes aos interesses envolvidos.
É, no entanto,  de referir que ficam fora desta ponderação de valores para definição do conceito de urgência os direitos, liberdades e garantias, cuja tutela já está devida assegurada pelo processo urgente de intimação para protecção de direitos liberdades e garantias, consagrado nos artigos 109º e 110º.
Assim sendo, os interesses envolvidos terão de ser, forçosamente, outros direitos e valores importantes, nomeadamente, os consagrados no n.º2 do artigo 9º do CPTA.
É a provisoriedade da tutela cautelar que faz dela inapta para a defesa de interesses cuja lesão seja irreversível ou demasiado onerosa. Este facto permite-nos concluir que o campo de aplicação, por excelência, do instituto da inversão do contencioso serão os processos relativos a providências cautelares de natureza antecipatória.
Este juízo substantivo e, necessariamente, cauteloso sobre a manifesta urgência na resolução definitiva do caso tem levado a doutrina e a jurisprudência referir-se a uma “urgência qualificada”. 
2. Quanto ao segundo requisito autonomizado por Dora Lucas Neto, este está relacionado com a insuficiência da tutela cautelar e não com a sua impossibilidade, segundo esta autora a ideia de que a tutela cautelar é insuficiente, reside, essencialmente, no fato de existirem situações em que não, estando em perigo o exercício em tempo útil de um direito, liberdade ou garantia o que permitiria o recurso à intimação urgente prevista no art. 109.º do CPTA, existe uma similar necessidade urgente de uma decisão de fundo e é esta necessidade que torna a tutela cautelar insuficiente. Portanto o regime previsto no art. 121.º do CPTA deve ser aplicado nas situações em que a tutelar cautelar, ainda que possível, não seja a tutela adequada.
3. Em relação serem trazidos ao processo todos os elementos necessários, terceiro requisito em cima referido, este requisito é de difícil preenchimento antes de ação principal estar proposta, isto porque apenas neste momento é possível aferir se as partes trouxeram ao processo principal todos os elementos relevantes para a decisão da questão de mérito, para além daqueles que já contam do processo cautelar.
Mas compreende-se a exigência deste requisito, dado que estamos perante um antecipação do juízo da causa principal, esta não pode significar uma diminuição inadmissível das garantias de defesa, pelo que é necessário justificar a decisão em causa, nomeadamente quanto à essencialidade dos fatos assentes, assim como a inexistência de matéria controvertida relevante no processo cautelar e a desnecessidade de realização de quaisquer outras diligências de prova. Caso a decisão a proferir recaia especificamente sobre matéria de direito, fica facilitada a conclusão de que resultam já do processo cautelar todos os elementos necessários para que se antecipe a decisão da causa principal.
Quando faltem as condições processuais, sempre haverá possibilidade de, uma vez identificada a existência da situação substantiva de urgência, sem imprimir ainda que informalmente, um ritmo mais acelerado ao andamento do processo principal, a exemplo do que é formalmente admitido no Direito italiano[viii].
4. Por fim quanto ao último requisito referido por Marlene Sennewal, a audição da partes, O legislador determina, na parte final do artigo 121.º n.º1 que as partes devem ser ouvidas no prazo de 10 dias, este requisito prende-se essencialmente com a preocupação do legislador em assegurar o princípio do contraditório[ix], daí a importância deste requisito. È neste momento que o juiz pode ouvir as eventuais objeções que as partes formulem acerca da verificação do primeiro e terceiro requisitos supra referidos.
Verificados os requisitos exigidos, o juízo de mérito sobre a causa principal é proferido no âmbito do processo cautelar, operando-se uma verdadeira transformação da decisão principal, no processo cautelar.
Segundo o professor Vieira de Andrade, deve haver uma interpretação exigente dos pressupostos legais e uma grande prudência por parte do tribunal, que só excecionalmente deve decidir-se pela convolação quando os interesses envolvidos sejam de grande relevo e esteja seguro de possuir todos os elementos de fato relevantes para a decisão, situação que poderá ocorrer mais facilmente quando esteja em causa apenas uma questão do direito, como supra referido ou quando a providência tenha sido requerida como incidente do processo principal.


Iniciativa
A antecipação do juízo de mérito no processo cautelar pode ser promovida por iniciativa oficiosa do tribunal ou suscitada pelas partes, tem sido esta a solução praticada nos nossos tribunais. Quanto à iniciativa por parte do tribunal, nada obsta ao decretamento oficioso deste instituto, atente-se quanto a isto o que diz Isabel Fonseca[x], a realização da tutela judicial das pretensões-de-urgência é vulgarmente realizada por um juiz detentor de amplos poderes, um sujeito-jurisdicional-de-urgência que é um verdadeiro administrador da justiça, quer do ponto de vista da gestão procedimental do processo, quer do ponto de vista dos poderes de pronúncia”. 
È importante referir que no caso da iniciativa ser da parte, a decisão do tribunal no sentido de não proceder à convolação, não é passível de recurso. Tem sido este o entendimento maioritário da doutrina e da jurisprudência.

A impugnação da decisão
É expressamente prevista no n.º2  do artigo 121.º do CPTA, a possibilidade de impugnação da decisão de antecipar o juízo sobre a causa principal, em concordância com o em cima referido, é de referir que apenas é suscetível de recurso a decisão de antecipar o juízo positivo sobre a causa principal. Esta impugnação deve seguir os “termos gerais”, conforme resulta do n.º2 in fine,ou seja, deve seguir-se o regime do artigo 142.º e seguintes do CPTA. Assim de acordo com o nº2 do artigo 121.º do CPTA, a parte que discorde da decisão de antecipação pode recorrer, fundamentando a sua decisão, na alegação da não verificação dos pressupostos exigidos, por este mesmo artigo.
Quanto aos efeitos deste recurso, como refere o professor Mário Aroso de Almeida, o requerido estará a respristinar o processo cautelar, como esta decisão não pode deixar de ser qualificada como uma decisão respeitante à adoção de providências cautelares, para efeitos do disposto no art. 143.º nº2 do CPTA, deve entender-se que o eventual recurso que seja interposto da decisão, não tem efeito suspensivo mas apenas meramente devolutivo. No mesmo sentido vai Marlene Sennewald, que refere que a atribuição de mero efeito suspensivo ao recurso, acarretaria consequências injustas, na medida em que o interessado ficaria sem providência e, ao mesmo tempo sem uma decisão final que produza efeitos imediatos.

Fundamentos da antecipação da decisão principal
 No âmbito de um contencioso subjetivo como o nosso ou seja um contencioso de pretensões, o instituto em discussão tem como principal fundamento o principio da tutela jurisdicional efetiva dos titulares de interesses legalmente protegidos, tendo em vista assegurar o direito ao processo efetivo e temporalmente justo. Este mecanismo como refere Dora Lucas Neto[xi], está aqui em causa um mecanismo que se destina a fazer face a situações a situações dilemáticas, em que esteja em perigo a realização do principio da tutela jurisdicional efetiva, porquanto muito embora se verifique urgência na resolução definitiva do caso, a tutela cautelar não é apta a oferecer uma resposta satisfatória. Outro fundamento deste instituto que tem sido apontado pela doutrina e jurisprudência, é o principio da economia processual. Estando reunidos todos os elementos necessários para decidir a questão de mérito, deve o tribunal antecipar essa decisão, por razões de economia processual, ficando resolvida definitivamente a questão de fundo e sendo desnecessário prosseguir com uma ação principal.

Natureza
O instituto da antecipação da decisão de mérito trata-se de um instituto com natureza excecional. Isto porque este instituto aplicado de forma irrefletida, poderia pôr em causa as garantias dos particulares, pois permite como em cima referido a emanação de juízo de mérito definitivo sobre uma questão, quando o conhecimento do juiz é meramente sumário. Por isso  segundo o professor Vieira de Andrade[xii], deve haver uma interpretação exigente dos pressupostos legais e uma grande prudência por parte do tribunal, que só excecionalmente deve decidir-se pela convolação quando os interesses envolvidos sejam de grande relevo e esteja seguro de possuir todos os elementos de fato relevantes para a decisão, situação que poderá ocorrer mais facilmente quando esteja em causa apenas uma questão do direito, como supra referido ou quando a providência tenha sido requerida como incidente do processo principal.
Conclusão
Este instituto que constitui umas das maiores novidades da reforma do contencioso administrativa, como supra referido. È sem dúvida uma importante forma de garantia dos interesses e direitos do particulares e consequentemente do cumprimento do princípio do direito a uma tutela jurisdicional efetiva e temporalmente justa, contudo é importante haver cautela na sua aplicação, este deve ser aplicado restritiva e prudentemente, repita-se estamos perante um instituto de caracter excecional, uma saída de emergência a utilizar exclusivamente em casos de emergência. Sempre que possível o tribunal deve recorrer a um juízo meramente cautelar e não ao juízo de mérito previsto no art. 121.º do CPTA.

Bibliografia:
  •   ANDRADE, José Vieira de, A Justiça Administrativa, almedina 2012, 12ª edição;
  •  ANTUNES, Tiago, O Triângulo das Bermudas» no Novo Contencioso Administrativo, Estudos em Homenagem ao Prof. Marcello Caetano, Vol. II, Coimbra Editora, 2006;
  •   ALMEIDA, Mário Aroso de, Manual de Processo Administrativo, Almedina 2010;
  • FONSECA, Isabel, Processo Temporalmente Justo e Urgência, Coimbra editora, 2009,
  • NETO, Dora Lucas, Notas sobre a antecipação do juízo sobre a causa principal (um comentário ao artigo 121.º do CPTA), Revista de Direito Público e Regulação, nº1;
  • SENNEWALD, Marlene, “O instituto da convolação da tutela final urgente consagrado no art. 121º do CPTA,  Revista de Direito Público e Regulação, nº5, Março de 2010.






[i] SENNEWALD, Marlene, “O instituto da convolação da tutela final urgente consagrado no art. 121º do CPTA,  Revista de Direito Público e Regulação, nº5, Março de 2010;
[ii] ALMEIDA, Mário Aroso de, Manual de Processo Administrativo, Almedina 2010 , “(…)través destes processos procura-se dar resposta a situações de urgência na obtenção de uma pronúncia sobre o mérito da causa, designadamente para a proteção direito liberdades e garantias.”;
[iii]  No CPTA encontram-se consagrados quatro tipos de processos urgentes principais nominados, são eles: o contencioso eleitoral, o contencioso pré-contratual, a intimação para a prestação de informações, consulta de processos ou passagem de certidões e a intimação para a proteção de direitos liberdades e garantias;
[iv] NETO, Dora Lucas, Notas sobre a antecipação do juízo sobre a causa principal (um comentário ao artigo 121.º do CPTA), Revista de Direito Público e Regulação, nº1;
[v] SENEWAALD, Marlene, op.cit., pag. 67 e ss;
[vi] ANTUNES, Tiago, O Triângulo das Bermudas» no Novo Contencioso Administrativo, Estudos em Homenagem ao Prof. Marcello Caetano, Vol. II, Coimbra Editora, 2006, pag 728;
[vii]  FONSECA, Isabel, Processo Temporalmente Justo e Urgência, Coimbra editora, 2009, pag. 1033;
[viii] ALMEIDA, Mário Aroso de, op.cit., pag 495;
[ix]  O princípio do contraditório, é uma decorrência do princípio da igualdade das partes, de acordo com este princípio  a parte tem não só direito ao conhecimento de que contra ele foi proposta uma ação ou requerida uma providência e, portanto, um direito à audição antes de ser tomada qualquer decisão, mas também um direito a conhecer todas as condutas assumidas pela contraparte e a tomar posição sobre elas, ou seja um direito de resposta;
[x] FONSECA, Isabel, op.cit., 1056 e ss;
[xi] NETO, Dora, op. Cit., pag. 56
[xii]  ANDRADE, José Vieira de, A Justiça Administrativa, almedina 2012, 12ª edição, pag.370 e ss.



Patrícia dos Santos
Número: 20804

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