sexta-feira, 31 de outubro de 2014

Da distinção entre direitos subjectivos, interesses legítimos e interesses difusos

Da distinção entre direitos subjectivos, interesses legítimos e interesses difusos

            Esta distinção remonta ao período do “trauma de infância”, usando a expressão do Prof. Vasco Pereira da Silva, em que a Administração actuava numa lógica de agressividade para impor a ordem pública, em nome do princípio da legalidade, estabelecendo relações de poder com os particulares. Os particulares eram então vistos como “súbditos” da Administração, não possuindo quaisquer direitos subjectivos, mas um mero interesse à legalidade, semelhante ao da Administração. E com o evoluir do contencioso administrativo, esta noção de interesse deu origem a uma ideia de diversidade de posições jurídicas subjectivas no seio da Administração.   Esta distinção foi muito difundida na ordem jurídica italiana, tendo uma enorme relevância prática, uma vez que o âmbito de jurisdição administrativa apenas cobria as situações em que estivesse presente um interesse legítimo do particular,  ao passo que se estivesse um direito subjectivo em causa eram competentes para dirimir o litígio os tribunais judiciais (ou comuns, como resultava da ideia de especialidade do contencioso administrativo face aos tribunais judiciais).

            Em Portugal, a distinção foi recebida por Marcello Caetano (seguida depois pela doutrina maioritária, pela jurisprudência, e estando também consagrada na lei), apesar de nunca ter tido a relevância prática do Direito italiano. Como se disse, a distinção assenta na questão da natureza das situações jurídicas subjectivas. Em Portugal, de acordo com a doutrina tradicional, as situações jurídicas subjectivas podem ser divididas em duas modalidades: a dos direitos subjectivos e dos interesses legítimos (ou legalmente protegidos).

De acordo com esta concepção, estamos perante um direito subjectivo se existe um interesse próprio do particular reconhecido de forma imediata e intencionalmente da norma e cuja protecção é plena; um interesse legítimo se o interesse em causa é o interesse público, tendo o particular apenas um interesse na legalidade das decisões que recaiam sobre o seu interesse próprio, protegendo-o então de forma mitigada, mediata ou reflexamente.

            Utilizando o exemplo referido por Freitas do Amaral, terá um direito subjectivo o funcionário ao qual a lei estabelece que, ao fim de cinco anos de serviço, terá direito a uma diuturnidade. O particular pode exigir o pagamento dessa diuturnidade, e caso a Administração não cumpra a norma, o particular pode intentar uma acção especial de condenação à prática do pagamento. Por outro lado, num concurso para preenchimento de um lugar de professor catedrático, os concorrentes apenas têm interesse legítimo relativamente à Administração, porque o “interesse em ser nomeado” não está directamente protegido por lei, e caso ocorra alguma ilegalidade, os particulares só podem remover os obstáculos ilegais à satisfação do seu interesse (através de  uma acção especial de impugnação ou anulação do acto administrativo praticado). Ao invés dos dois primeiros casos, o particular interessado no concurso não pode exigir ao tribunal que a Administração o aceite para o cargo; apenas pode pedir a eliminação do acto ilegal, e tenta uma nova oportunidade para a satisfação do seu interesse.

            Ao lado das correntes que defendem que a multiplicidade de situações jurídicas, existe uma corrente, defendida pelo Professor Vasco Pereira da Silva e por Pedro Machete,  que agrupa as situações jurídicas dos particulares numa única categoria – a dos direitos subjectivos. Para esta doutrina, todas as situações de vantagem dos particulares perante a Administração são direitos subjectivos, “o indivíduo é titular de um direito subjectivo em relação à Administração sempre que de uma norma jurídica que não vise apenas a satisfação do interesse público, mas também a protecção dos interesses dos particulares, resulte uma situação de vantagem objectiva, concedida de forma intencional ou, ainda, quando dela resulte a concessão de um mero benefício de facto (...)” Contrariando a tese anterior, o que está em causa não são posições de vantagem de natureza diferente, mas direitos subjectivos de conteúdo diferentes, formas diferentes de atribuir posições jurídicas substantivas. Por isso, todas se reportariam à defesa das posições individuais dos particulares, e não sobre o interesse público.

            As diferentes teorias não têm relevância prática, pois trata-se de uma questão meramente dogmática e teórica. Analisando o mesmo caso prático, para os autores que defendem a unidade das situações jurídicas subjectivas, os particulares em causa não podem exigir outras pretensões aos tribunais administrativos,  mas as mesmas com um fundamento diferente – o do conteúdo do seu direito, prevista na lei. Enquanto que no caso das diuturnidades, a Administração deve pagar ao particular a respectiva contribuição, no segundo a Administração tem apenas o dever de cumprir todos os requisitos legais, determinados para a protecção do interesse público e dos interesses dos particulares. E isto porque a existência de diferentes deveres origina direitos subjectivos de conteúdo diferentes. No segundo caso não é correcto dizer que o interesse material não é plenamente protegido, porque o interesse protegido pela norma não é o de ser professor catedrático, mas um interesse que a Administração cumpra todos os deveres legais a que está vinculada. Há uma contradição que resulta da definição de interesses legítimos como uma protecção ocasional por uma norma.

            Ao lado da bipartição entre direitos subjectivos e interesses legítimos, a doutrina tradicional formula ainda outra categoria de posições dos particulares: os interesses difusos. Estes interesses reportam-se aos interesses que um grupo indeterminado de pessoas tem sobre um bem público, insusceptível de divisão e apropriação individual.

            Esta distinção foi tão difundida no nosso país que em 1976 foi constitucionalizada. A constituição preocupou-se com esta distinção quanto à legitimidade activa de acesso aos tribunais. Refere de um modo geral que “A todos é assegurado o acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos(...)” e de um modo especial, no âmbito da Administração, “É garantido aos administrados tutela jurisdicional efectiva dos seus direitos ou interesses legalmente protegidos(...)”. Os interesses difusos não eram tutelados.

             Deste modo, a revisão constitucional de 1989 consagrou o direito de acção popular aos particulares e associações para a defesa dos seus interesses (acção popular que o texto constitucional só previa para o direito de petição, pelo que se pode falar de um alargamento de legitimidade para a defesa destes interesses). A constituição dá como exemplo, interesses à saúde pública, dos consumidores, qualidade de vida, ambiente e património cultural.

            A distinção entre a figura da acção popular e das acções administrativas caracteriza-se pelo facto da primeira se dedicar à defesa objectiva da legalidade e do interesse público, enquanto que a segunda consagra uma tutela subjectiva, destinada à defesa de direitos ou interesses próprios dos particulares. Desta forma, pela maneira como a doutrina tradicional configura os interesses difusos, estes estão incluídos na menção “interesses” que o artigo em causa faz, beneficiando então de uma tutela objectiva.  

            Por outras palavras, se a posição lesada se tratar de um direito subjectivo ou de um interesse legítimo, o particular tem à sua disposição as acções administrativas necessárias à reconstituição da sua posição; por outro lado, se apenas for lesado um interesse difuso, o particular apenas pode propor uma acção popular.

            A este entendimento vêm-se opor os Professores Vasco Pereira da Silva e Colaço Antunes, que referem que quanto aos interesses difusos o particular tem uma posição de vantagem que decorre do aproveitamento individual de um bem jurídico constitucionalmente protegido. Por outro lado, os direitos referidos pela disposição constitucional que consagra a acção popular são direitos fundamentais, pois estão inseridos na Parte I da Constituição relativa aos direitos e deveres fundamentais, que consagram poderes e deveres do Estado para a sua prossecução Desta forma, para estes autores os supostos “interesses difusos” mais não são do que direitos subjectivos, de acordo com a tese da natureza unitária das posições jurídicas dos particulares. Atenta-se que a distinção entre estes autores e a doutrina tradicional entre considerar o interesse difuso como um interesse objectivo ou direito subjectivo resulta da diferente caracterização que os autores fazem do interesse difuso.

            Tomemos como exemplo o direito do ambiente. Segundo a doutrina tradicional, este direito concebe um aproveito colectivo de um bem público, insusceptível de apropriação individual, pelo que não pode ser directamente defendido através da legitimidade singular, mas sim através do mecanismo de acção popular.

            De acordo com o Professor Vasco Pereira da Silva, o que está em causa é a existência de relações jurídicas que resulta da fruição individual do bem ambiente, que contém direitos e deveres específicos. E como refere também o Professor Miguel Teixeira de Sousa (apesar deste autor não seguir a tese da natureza unitária das posições jurídicas subjectivas e atribuir a protecção dos interesses difusos à acção popular), é necessário distinguir entre a tutela subjectiva que decorre da protecção constitucional da fruição individual do ambiente (assegurada pela legitimidade individual para propor acções administrativas) e a tutela objectiva do ambiente (protegido através do mecanismo da acção popular). O direito ao ambiente é protegido de forma subjectiva através da sua consagração como direito fundamental, e a sua protecção e promoção é também tarefa estatal, pois também é um bem jurídico necessitado de tutela no quadro das relações humanas.

            E por isso, na senda do Professor Vasco Pereira da Silva, o direito ao ambiente, integra-se também na categoria de direitos subjectivos, pois trata-se de uma posição de vantagem, que tem a mesma natureza que os restantes direitos subjectivos e interesses legalmente protegidos. Daí a tradicional crítica que o Professor faz que não faz sentido distinguir entre direitos de primeira (direitos subjectivos), direitos de segunda (interesses legítimos) e direitos de terceira (interesses difusos). A distinção ainda é criticada pelos factos de:

- um direito subjectivo pode ser atribuído através de várias técnicas legislativas. Pode ser conferido expressamente, ou se estabelece um dever para a Administração actuar no interesse do particular, no qual surge, como no Direito Privado, um direito do particular correlativo desse dever;


- não há quaisquer razões para se ter importado a distinção entre direitos subjectivos e interesses legítimos de Itália, uma vez que esta distinção justificava-se no ordenamento jurídico italiano por razões históricas, que não se verificaram no nosso ordenamento jurídico.

Duarte Filipe Rodrigues, nº 22035

A PRÁTICA JURISPRUDENCIAL ADMINISTRATIVA E O DIREITO CONSTITUCIONAL: VISÃO FACE AO ACORDÃO DO STA Nº 0279/14

    I. O Direito Administrativo e o Direito Constitucional estão, inevitavelmente, de braços dados.  
         Já Vedel defendia esta dependência recíproca como indispensável, apesar de a ele se opor Eiseman que defendia a autonomia do Direito Administrativo.
Hoje em dia é indiscutível que ambas as disciplinas estão interligadas também numa perspectiva processual. Diz-se que o Direito Administrativo é “Direito Constitucional concretizado”[1].
     Por um lado, podemos afirmar que o Direito Administrativo necessita do Direito Constitucional.
Demostrativo de que assim o é são as modernas constituições do Estado de Direito. Para além de estabelecerem “as opções fundamentais em matéria de organização, de funcionamento, de procedimento, ou de actuação da Administração Pública (…), passaram a incluir também as regras quanto à natureza e à organização dos tribunais competentes para o julgamento de litígios administrativos quanto aos direitos fundamentais dos cidadãos (…), em matéria de processo, quanto à função e estrutura dos processos, quanto aos poderes do juiz…”[2]. Significa isto que a própria constituição dos Estados passou a consagrar um contencioso administrativo “subjectivo e de plena jurisdição”[3], uma vez que consagra a garantia de  protecção plena e efectiva dos particulares.
    Mas por outro lado, o Direito Constitucional depende também do Direito Administrativo, na medida em que é este último que trata de efectivar/ garantir os direitos fundamentais postulados pela Constituição por via de meios contenciosos adequados. 

    II. A Constituição da República Portuguesa[4] como constituição de um Estado de Direito Democrático consagra princípios e regras fundamentais do Contencioso Administrativo.
    Os seus artigos 202º e ss. reflectem um contencioso de plena jurisdição. Anteriormente (antes da versão constitucional de 1989[5]), a existência dos tribunais administrativos e fiscais era facultativa. Hoje em dia, como não podia deixar de ser, a sua obrigatoriedade decorre da CRP, tal como é evidente no seu artigo 212º e transposta para o ETAF no seu artigo 1º/1. Os tribunais administrativos e fiscais aparecem hoje configurados no seio de uma “dualidade de jurisdições”[6] na ordem jurídica portuguesa ao lado dos Tribunais Judiciais (art. 209º/1 al. a) e b) e arts. 210º e 212º da CRP). Assim, hoje, estão bem delimitadas as funções administrativa e jurisdicional, que não mais se confundem.
      Os números 4 e 5 do artigo 268º da CRP dão conta de um contencioso que, para além de jurisdicionalizado, é destinado à tutela plena e efectiva dos direitos dos particulares. Aos administrados é garantido tutela jurisdicional efectiva dos seus direitos ou interesses legalmente protegidos (reconhecimento desses direitos ou interesses, impugnação de actos administrativos, condenação à pratica de actos administrativos devidos, recurso a procedimentos cautelares) – como é patente no nº 4 do referido preceito. O nº 5 confere eficácia externa à impugnação de normas administrativas que violem os direitos ou interesses legalmente protegidos dos cidadãos.
   Assim, o contemporâneo contencioso administrativo gravita, agora, em torno da tutela jurisdicional efectiva dos direitos dos particulares e que deve coadunar com a importantíssima e tão falada prática constitucional que depende em larga medida da prática administrativa.

           III. A jurisprudência administrativa tem por isso um “papel decisivo na concretização do Direito Constitucional”[7].
            Mas estará a jurisprudência administrativa a cumprir este seu papel?
            A polémica está instalada no que respeita a um Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo que tem invadido a comunicação social. O acórdão[8] é referente a uma mulher de 50 anos que devido a uma intervenção ginecológica num hospital público ficou “com muita dificuldade” em ter relações sexuais[9], entre outros danos que a incapacitaram permanentemente em 73%[10]. A questão é que o tribunal argumentou que a autora “já tinha 50 anos e dois filhos (…) idade em que a sexualidade já não tem a importância que assuma em idades mais jovens”. E não se trata apenas de uma “observação” uma vez que o “juízo de valor” acabou por influenciar a decisão de baixar a indeminização.
            Parece que este argumento preserva, ainda, algum conservadorismo dos Juízes dos Tribunais Administrativos o que coloca em aberto a seguinte questão: estarão, já, os juízes administrativos cientes/ instruídos para enfrentar os desafios que a nova moldura administrativa impõe? Ou estarão, ainda, distanciados da realidade jurídica que os rodeia, ancorados numa perspectiva objectiva e limitada do Contencioso?
            Esta justificação revela um juízo de valor sobre a matéria de facto “cuja emissão apela essencialmente para a sensibilidade ou intuição do jurista”[11]. Contudo, a justificação parece ter implícito um tratamento desigual e discriminatório da sexualidade em função da idade, pois não se trata de uma “verdade absoluta” que aos 50 anos a importância sexual diminua. O acórdão acrescenta que a autora “ tinha (…) dois filhos”[12], expressão que faz memorar a antiga concepção social de que o papel da mulher na família é o da procriação. Tal concepção mostra-se até, “na minha óptica”, atentatória da dignidade da pessoa humana (artigo 1º da CRP) na medida em que esta envolve um livre desenvolvimento da personalidade.

            IV. Nas palavras de VASCO PEREIRA DA SILVA, “a garantia de um processo por um tribunal independente e imparcial (…) constitui, assim, simultaneamente, uma condição de realização e uma dimensão essencial dos direitos fundamentais”.
            Não pode o tribunal, deste modo, encabeçar uma atitude atentatória da dignidade da pessoa humana negando aquilo que hoje em dia se denomina de “direito à igualdade sexual”, que não permite um tratamento desigual em matéria de sexualidade em função da idade, como decorrência do princípio da igualdade do artigo 13º da CRP.
            Há, por isso, uma necessidade de melhorar a prática jurisprudencial de modo a que os tribunais administrativos ultrapassem como diria Vasco Pereira da Silva os seus “traumas.”
                         

  
Bibliografia

- SILVA, Vasco Pereira da, “O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise”, 2009, 2ª Edição, Almedina.

- ALMEIDA, Mário Aroso de - “Manual de Processo Administrativo”, Almedina, 2010;

- ANDRADE, José Carlos Vieira – “A Justiça Administrativa (Lições), Almedina, 2009, 10ª edição;

- FERREIR, Moutinho De Almeida - Revista n.º 1816/03 - 2.ª Secção Santos Bernardino (Relator)

Jurisprudência

- Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça nº 0279/14 de 09 de Outubro de 2014




[1] FRITZ WENER, 1969 apud VASCO PEREIRA DA SILVA, O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise, 2009, pág. 175.
[2] VASCO PEREIRA DA SILVA, O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise, 2009, pág. 175
[3] VASCO PEREIRA DA SILVA, O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise, 2009, pág. 176
[4] Doravante CRP
[5] A redacção da Constituição de 1982 dispunha “Podem existir tribunais administrativos e fiscais (…)”
[6]
[7] OTTO BACOF, 1963 apud VASCO PEREIRA DA SILVA, O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise, 2009, pág. 177
[8] Ac. STA nº 0279/14 de 09 de Outubro de 2014
[9] Facto XX) dado como provado no Ac. STA nº 0279/14.
[10] Facto L) dado como provado no Ac. STA nº 0279/14.
[11] MOUTINHO DE ALMEIDA FERREIRA in Revista n.º 1816/03 - 2.ª Secção Santos Bernardino (Relator).
[12]   Ac. STA nº 0279/14 de 09 de Outubro de 2014, destaque nosso.




Carolina Marques dos Santos Palha Ruivo, 
nº20775
Da Pertinência do Deferimento Tácito face ao Novo Contencioso Administrativo

I - Enquadramento Histórico

No ordenamento jurídico português, o Contencioso Administrativo era fortemente influenciado pelo sistema francês, pelo que se impunha uma lógica assente no princípio de separação de poderes e de não subordinação jurídica da Administração Pública ao poder judicial.
 
Assim, o principal meio processual como forma de reacção perante a passividade ou inércia da Administração era o recurso directo de anulação, que apenas permitia anular decisões da Administração e, limitadamente, no domínio das acções em matéria de contratos e responsabilidade, era admissível a sua condenação.
 
De modo que, o meio jurídico mais “eficiente” para reagir contra uma omissão administrativa seria ficcionar a existência de um acto tácito de indeferimento (art. 109º CPA), isto é, decorrido o prazo legal para que o órgão administrativo se pronunciasse, e perante o silêncio do mesmo, a lei atribuía à inércia da AP um sentido negativo, considerando-se indeferida a pretensão do particular, para que, deste modo, pudesse ter um “acto de indeferimento ficcionado” para poder impugnar através do recurso de anulação.
 
Para casos excepcionais, previstos no nº3/ art. 108º CPA, a lei atribuía (e ainda atribuí) ao silêncio da Administração, um conteúdo favorável, presumindo-se o deferimento tácito das pretensões dos particulares.
 
Todavia, uma profunda mudança de paradigma na lógica do Contencioso Administrativo ocorreu com a introdução da acção de condenação da Administração à prática do acto devido, enquanto modalidade de acção administrativa especial, no nosso ordenamento jurídico, adoptando-se uma lógica de plena jurisdição dos Tribunais.
 
A par da consagração constitucional desta figura de matriz alemã na reforma de 1997, com a introdução do art. 268º/nº4 CRP, surge a sua consagração legislativa em 2004, com a inserção do art. 46º/2/b) e a secção II (art. 66º a 71º) no CPTA.
 
Assim, passa a estar prevista uma acção de condenação à prática de actos devidos, nas seguintes situações: 1) Em caso de omissão de pronúncia por parte da Administração (art. 67º/1/a); 2) Em caso de recusa ou indeferimento expresso da pretensão do particular (art. 67º/1/b); 3) Em caso de recusa da própria apreciação da pretensão dirigida à Administração (art. 67º/1/c)).
 

II – Indeferimento Tácito

A problemática sobre a qual irei debruçar-me envolve a primeira situação, prevista no art. 67º/1/a) CPTA, respeitante às omissões administrativas.
 
Já vimos que a figura do indeferimento tácito, prevista no art. 109º CPA, constitui uma ficção legal que atribui à passividade da Administração, caso a lei não a qualifique como uma situação de deferimento tácito, um sentido negativo de indeferimento, para que particular possa ter algo passível de impugnação.
 
Porém, com a introdução da acção de condenação à prática do acto devido, esvaziou-se a função e utilidade da figura do indeferimento tácito, isto porque, a previsão do art. 67º/1/a) engloba as situações de omissões ilegais da Administração, podendo o particular recorrer logo à acção de condenação, ao invés de ter de ficcionar um acto de indeferimento para depois poder impugná-lo, a fim de obter a satisfação do seu direito ou interesse legalmente protegido.
 
Como refere o Professor SÉRVULO CORREIA, num artigo dedicado ao incumprimento do dever de agir da Administração, o nº1 /art. 109º CPA considera-se revogado, por incompatibilidade com as novas disposições do CPTA, posição esta que é unânime na Doutrina, vejamos nas palavras do Professor:
 
“O artigo 51º/4 do CPTA, conjugado com os outros preceitos já citados [art. 66º e 67º/1/a)] deste diploma que definem o objecto da acção de condenação, veio vedar o emprego de meio impugnatório nas situações de violação de dever de decidir por força de uma recusa de pretensão e, por maioria de razão, de inércia perante o requerimento. Sendo pois, o nº1 do art. 109º CPA incompatível com estes novos preceitos deve ser considerado revogado por eles.” (1)
 

III – Deferimento Tácito

Questão distinta é saber se, para os casos em que a lei atribui à omissão administrativa um sentido de deferimento tácito, também poderá haver lugar a uma acção de condenação à prática de acto devido, e se, continua a justificar-se a aplicação do art. 108º CPA, ou se, também ele se encontra, ou deveria estar, revogado tacitamente.
 
MÁRIO AROSO DE ALMEIDA – defende que nas situações de deferimento tácito, previstas no nº3 do art.º 108 CPA, a lei associa ao silêncio da Administração uma presunção legal de aprovação da pretensão do particular, isto porque, as situações legalmente previstas para o deferimento tácito, são normalmente alvo de aceitação por parte da mesma, como por exemplo o caso das licenças de construção e autorizações no domínio das relações entre órgãos da Administração Pública.
 
Desta presunção legal resulta que o deferimento tácito é, na verdade, um acto administrativo que substitui na íntegra o acto administrativo de conteúdo positivo ilegalmente omitido.
 
Como tal, “não há lugar para a propositura de uma acção de condenação à prática do acto omitido, pelo simples motivo de que a produção desse acto já resultou da lei.” (2)
 
Assim, o Professor esvazia o sentido da acção especial de condenação à prática de actos devidos, no caso dos actos tacitamente deferidos, embora admita a pertinência de uma acção de simples apreciação positiva, destinada ao reconhecimento da existência do acto tácito, nos termos de uma acção administrativa comum, nas situações em que o interesse processual o justifique (39º CPTA).
 
VASCO PEREIRA DA SILVA – Contrariamente ao defendido pelo Prof. Mário Aroso de Almeida, o Professor não considera o deferimento tácito como um acto administrativo, uma vez que não existe uma actuação intencional e materializada com vista à emissão de um acto administrativo, por parte da Administração, posição que perfilho.
 
Considero que seria um acto de muito boa-fé tentar retirar deste acto de “ficção legal”, algo que se assemelhasse a uma conduta intencional e direccionada à prossecução de efeitos jurídicos numa situação individual e concreta, que no fundo é a definição de acto administrativo prevista no art. 120º CPA.
 
O Professor considera que o deferimento tácito é uma “ficção legal” de efeitos positivos, não sendo logo à partida de excluir a possibilidade de uma acção de condenação à prática do acto devido, isto porque, independentemente de estarmos ou não perante um acto administrativo, existe um pressuposto essencial que pode justificar o interesse processual do particular, que se prende com a existência de efeitos desfavoráveis ao mesmo.
 
Assim, no seguimento do exposto, o Professor defende, pelo menos, duas situações em que há um interesse processual que legitima uma acção de condenação: 
 
1) “A hipótese do deferimento tácito, formado nos termos da lei, não corresponder integralmente às pretensões do particular, pelo que, nessa medida, pode ser considerado como parcialmente desfavorável”;
2) “A hipótese do deferimento tácito, numa relação jurídica multilateral, ser favorável em relação a um ou alguns dos sujeitos, mas não no que respeita aos demais, os quais se vêm confrontados com uma omissão administrativa geradora de efeitos desfavoráveis”. (3)
 
MARCELO REBELO DE SOUSA e ANDRÉ SALGADO DE MATOS defendem que o acto tácito constitui uma "omissão juridicamente relevante" (4) , que resulta da não adopção do acto devido e que viola o dever legal de decisão da Administração.
 
Assim, fruto deste entendimento de que os actos tácitos são na realidade verdadeiras omissões da Administração, os Professores consideram que o particular tem legitimidade para fazer uso de uma acção especial de condenação à prática do acto devido, integrando as situações de deferimento tácito nos casos de omissão de conduta da Administração prevista nos artigos 66º/1 e 67ª/1/a) CPTA.
 
RITA CALÇADA PIRES – Vem defender que, à semelhança dos actos de indeferimento tácito, também os actos de deferimento tácito se englobam na categoria de omissões administrativas, estando portanto à mercê de uma acção de condenação à prática de actos devidos. 
 
A autora defende que o acto tácito acarreta enormes falhas na protecção do particular, não assegurando a sua função garantistica, daí a necessidade de um mecanismo mais eficaz como a acção especial de condenação, que irá contribuir de igual modo para a melhoria da eficiência do funcionamento da Administração.
 
Por último, a autora acaba por perfilhar a doutrina de CARLOS ALBERTO CADILHA (5) , no sentido de atribuir ao deferimento tácito um efeito meramente interno ou procedimental, não afectando a livre disponibilidade do particular de recorrer aos meios de tutela jurisdicionais adequados, como a acção de condenação a prática do acto devido. O Juiz do TC chega mesmo a afirmar que em sede de “direito a constituir”, deverá proceder-se à revogação dos artigos 108º e 109º CPA, instituindo a acção de condenação à prática do acto devido como o “único e eficaz meio processual de tutela jurisdicional das omissões administrativas”. (6)
 

IV - Posição Adoptada

No que concerne à natureza do acto de deferimento tácito, como já referi, considero que a razão está com o Prof. VASCO P. SILVA, pois não podemos designar uma “actuação” presumida ou ficcionada por lei como um acto materialmente dirigido à prossecução de uma pretensão do particular, quanto muito, seria uma omissão juridicamente relevante, na esteira dos Profs. MARCELO REBELO DE SOUSA e ANDRÉ SALGADO DE MATOS.
 
Não perfilhando assim da opinião dos Profs. SÉRVULO CORREIA e MÁRIO AROSO DE ALMEIDA que consideram o deferimento tácito como um acto administrativo.
 
Porém, independentemente da natureza atribuída ao deferimento tácito, considero que o meio jurisdicional mais eficiente e adequado a uma verdadeira tutela jurídica do particular, na medida em que haja interesse processual, é a acção especial de condenação à prática de actos devidos, previsto nos artigos 66º e ss. CPTA.
 
A verdade é que, a função garantística associada aos actos de deferimento e indeferimento tácitos face à passividade da Administração Pública perdeu grande parte da sua importância, desde que o ordenamento jurídico consagrou um meio próprio de tutela jurisdicional mais eficaz e imediato de satisfação das pretensões dos particulares, como argumentam os Profs. VASCO P. SILVA e o Juiz CARLOS ALBERTO CADILHA.
 
Considero que uma progressiva institucionalização das acções de condenação como meio processual de eleição para os casos de actos tácitos, seria uma forma de melhor assegurar a prossecução do Princípio de Interesse Público (art.4º CPA), e Princípio da Eficiência e Desburocratização dos serviços (267º CRP e 10º CPA).
 
Por outro lado, é importante ter em conta que estas acções especiais são uma forma de incentivar a Administração a uma mudança de paradigma de comportamentos, adoptando uma postura mais diligente para com os administrados, concedendo respostas expedientes aos requerimentos formulados, garantindo assim o bom funcionamento das relações jurídicas intersubjectivas entre Administração e administrados e evitando contínuas violações do dever legal de decidir, previsto no art.º 9 CPA.
 
Por último, perfilho da opinião do Prof. SÉRVULO CORREIA, na medida em que refere que já existem actualmente outros meios mais eficientes de tutelar as posições jurídicas subjectivas dos particulares, como, por exemplo, o recurso a providências cautelares antecipatórias e, posteriormente, a consequente acção de condenação à prática de actos devidos, pelo que se desvirtua um pouco o sentido e utilidade dos deferimentos tácitos.
 

Maria Alexandra Pereira Vieira
Nº 22017

 

Bibliografia Consultada:

  • ALMEIDA, Mário Aroso de, O Novo Regime do Processo nos Tribunais Administrativos, 4ª ed., Almedina, 2007;
  • ANDRADE, José Carlos Vieira de, Justiça Administrativa (Lições), 13ª ed., Almedina, 2014;
  • CADILHA, Carlos Alberto, O Silêncio Administrativo, in Cadernos de Justiça Administrativa, nº 28;
  • CORREIA, José Manuel Sérvulo, O Incumprimento do Dever de Decidir, in Cadernos de Justiça Administrativa, nº 54;
  • PIRES, Rita Calçada, O Pedido de Condenação à Prática do Acto Administrativo Legalmente Devido, Desafiar a Modernização Administrativa?, Almedina, 2004;
  • SILVA, Vasco Pereira da, O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise – Ensaio sobre as acções no novo processo administrativo, 2ª ed., Almedina, 2009;
  • SOUSA, Marcelo Rebelo de, e André Salgado de Matos, Direito Administrativo Geral, Tomo III, 1ª ed., Dom Quixote, 2007;
 

(1) Sérvulo Correia, O incumprimento do dever de decidir, in Cadernos de Justiça Administrativa, nº 54, p. 16
(2) Mário Aroso de Almeida – O Novo Regime do Processo nos Tribunais Administrativos, 3ª ad., 2004, p. 200;
 (3) Vasco Pereira da Silva – O Contencioso Administrativo no divã da psicanálise- Ensaio sobre as acções no novo processo administrativo, 2ª ed., 2009, pág. 400;
 (4) Marcelo Rebelo de Sousa e André Salgado de Matos - Direito Administrativo Geral, Tomo III, 1ª ed., Dom Quixote, 2007, P. 393;
 (5)Carlos Alberto Cadilha – Juiz do Tribunal Constitucional desde 2007
 (6) Carlos Alberto Cadilha, O silêncio administrativo, in Cadernos de Justiça Administrativa, nº28, p.36


Impugnabilidade de atos administrativos


Os artigos 50.º a 65.º do CPTA referem-se aos pressupostos processuais específicos de cujo preenchimento depende a dedução em juízo da impugnação dos actos.
A primeira das subsecções da secção I do capítulo II (artigos 51.º a 54.º), refere-se ao acto administrativo impugnável, sendo que o presente trabalho tem como escopo a análise deste primeiro pressuposto: a efetiva existência de um acto administrativo, susceptível de impugnação junto dos tribunais administrativos.
A esta luz, na impugnabilidade de atos administrativos há que proceder a uma distinção entre os vários aspetos a considerar para que se conclua que em determinado caso concreto existe efetivamente um ato administrativo, logo, passível de impugnação. Estes vários aspetos são os requisitos a ter em linha de conta para a análise desta temática.
No entanto, antes de avançar, cabe fazer um enquadramento geral, referente às várias modalidades de impugnação.
A impugnação de um ato administrativo dirige-se ou à sua anulação, ou declaração de nulidade, ou, por último, à declaração de inexistência.
Portanto, cumpre aqui distinguir estas diferentes realidades.
Assim, refira-se que apenas nas situações de invalidade (anulabilidade e nulidade) estamos na presença da impugnação de um acto administrativo. Pelo contrário, a declaração de inexistência refere-se a casos de reconhecimento pelo tribunal, de que apenas existe a aparência de um acto administrativo.
Sabe-se que um acto administrativo apenas existe quando preenche os requisitos de existência. Esses requisitos constam do artigo 120.º CPA. Se um ato não possui as características aí presentes, então ter-se-á de concluir que não estamos perante um ato administrativo, mas perante uma situação de inexistência de ato administrativo (1).
Feito este primeiro esclarecimento, avancemos para os requisitos de impugnabilidade.


1- Requisito do conteúdo decisório do ato

O conceito de acto administrativo consta do artigo 120.º CPA, no qual se faz menção às "decisões dos órgãos da Administração".
Nesta análise do requisito do conteúdo decisório do acto administrativo, do qual depende a sua existência enquanto tal, nos termos do artigo 120.º, cabe fazer referência à matéria dos actos meramente confirmativos. Estes são actos através dos quais a Administração se limita a confirmar situações jurídicas já existentes, introduzidas no ordenamento por actos administrativos anteriores. A regra que aqui vigora é a da inimpugnabilidade de tais actos meramente confirmativos, que o CPTA consagra no artigo 53.º. Como aqui não estamos perante decisões, logo não estamos perante atos administrativos, é esta a regra. No entanto repare-se que fora dos casos enunciados no artigo 53.º a impugnação de atos meramente confirmativos é possível (2)!
O acto administrativo é tradicionalmente definido como um ato jurídico praticado por um órgão pertencente à Administração (cfr. artigo 120.º CPA).
No entanto, tem-se sentido cada vez mais a necessidade de equiparar a atos administrativos outras realidades, outras manifestações de poder, emanadas por órgãos públicos que não pertencem à Administração Pública, ou de entidades privadas, mas que se pronunciaram ao abrigo de normas de Direito Administrativo. Tal equiparação está patente no n.º 2 do artigo 51.º CPTA.
Quanto ao primeiro aspecto, relativo às "decisões materialmente administrativas proferidas por autoridades não integradas na Administração Pública", refira-se como exemplos os actos em matéria administrativa de órgãos como o Presidente da República, da Assembleia da República, do Presidente do Tribunal Constitucional, entre outros (cfr. o artigo 24.º do ETAF). Quanto ao segundo aspecto, relativo às decisões de entidades privadas que tenham actuado ao abrigo de normas de Direito Administrativo, o que é determinante para que os tribunais administrativos tenham competência para a impugnação é que o sujeito privado tenha imposto normas de Direito Administrativo, ou seja, normas que atribuam prerrogativas ou imponham deveres. Pense-se, por exemplo, em actos praticados por sujeitos privados em procedimentos pré-contratuais, no âmbito da contratação pública (regime do CCP).
Por seu turno, o n.º 1 do artigo 51.º refere-se a "actos administrativos com eficácia externa". Pensar-se-ia então, sem mais, que para que pudesse haver impugnação seria necessário que os actos projectassem os seus efeitos para lá da entidade que o realizou. Ficariam assim de fora dos actos que podem ser impugnados por via contenciosa, todos aqueles actos que apenas têm um âmbito de aplicação interna, apenas com um alcance intra-administrativo, esgotando os seus efeitos na entidade que os emite.
Porém, não é assim que se processam as coisas. Basta atentar, por exemplo, na alínea d) do n.º 1 do artigo 55.º CPTA. Verifica-se assim que no ordenamento actual, é possível a impugnação de actos sem eficácia externa.
Um outro aspecto a realçar é o de que hoje em dia está afastada a concepção da essencialidade da definitividade horizontal de um acto para que possa ser impugnado.
Como resulta do n.º 1 do artigo 51.º, há a possibilidade de o acto a impugnar estar ainda inserido num procedimento administrativo. Portanto, está aqui patente a admissibilidade de um pedido de impugnação de um acto ainda não horizontalmente definitivo.
No mesmo sentido aponta o  n.º 3 do mesmo artigo.
Assim, há que concluir pela desnecessidade da eficácia externa e da definitividade horizontal de um acto administrativo para que possa ser impugnado (3).


2- Requisito do conteúdo positivo do acto

Neste ponto cumpre fazer a seguinte referência: apenas os actos administrativos de conteúdo positivo podem ser objecto de processo de impugnação, na medida em que se pretende a sua anulação ou declaração de nulidade. Por outro lado, a reação contenciosa contra os actos de conteúdo negativo passa pela dedução de um pedido de condenação à prática do acto administrativo devido pela Administração. Aqui não há efectivamente uma impugnação do acto. Aqui o regime é o do artigos 66.º e seguintes do CPTA.
Mas olhemos para o n.º 4 do artigo 51.º, do qual resulta que quando o autor faça um pedido de anulação de um acto administrativo de conteúdo negativo, o tribunal deverá convidar o autor a substituir a petição devido à inadequação do pedido, substituíndo o primeiro pedido pelo de condenação da Administração à pratica do acto.
Ainda no n.º 4 é de evidenciar um outro aspecto relevante. O preceito tem apenas em vista os casos em que se deduziu inicialmente um pedido de anulação do acto negativo (de indeferimento), apenas e só. É isto que significa a referência a "estrita anulação" no n.º 4 do artigo 51.º. Se o autor pelo contrário, tiver deduzido cumulativamente com o pedido de anulação um pedido de condenação à pratica do acto, aí já não haverá esta necessidade de substituição da petição (4).


3- Requisito da eficácia do acto

Em princípio um acto administrativo apenas pode ser impugnado quando estão reunidas as condições de que depende a sua capacidade para produzir efeitos (por exemplo, se está sujeito a publicação, esse acto tem de estar publicado para que possa ser impugnado).
Se o acto for nulo, não produz efeitos (n.º 1 do artigo 134.º CPA). Mas ainda assim, neste caso, tal acto é susceptível de impugnação contenciosa, uma vez que se pretende efectivamente uma declaração de nulidade. Ou seja, não é o critério da eficácia do acto que prepondera aqui. É sim a circunstância de, nos casos em que a produção de efeitos do acto está dependente do preenchimento de condições legais ou de condição ou termo, o acto não poder ser impugnado enquanto não estiverem preenchidas tais condições.
A nossa lei não consagra esta regra em termos absolutos, mas admite, no artigo 54.º CPTA, a constituição de situações em que se justifica admitir a faculdade da imediata impugnação de actos ineficazes.
A regra apontada bem como as excepções constantes do atigo 54.º têm subjacente a ideia de que um acto que seja ineficaz não introduz qualquer tipo de modificação na ordem jurídica, não sendo necessária, portanto, qualquer tipo de ação contenciosa. Há aqui subjacente a todo este pensamento a consideração do interesse processual em agir.


4- Requisito (eventual) da prévia utilização de impugnação administrativa necessária

Neste ponto debate-se a necessidade de esgotamento prévio das garantias administrativas ao dispor dos administrados, como requisito para uma posterior impugnação por via contenciosa. Falamos aqui então das impugnações administrativas necessárias.
O CPTA não exige que um acto administrativo tenha sido objecto de uma prévia impugnação administrativa para que se possa lançar mão da impugnação contenciosa. Disposições como o artigo 51.º e os nº 4 e 5 do artigo 59.º, evidenciam que não existe uma regra de prévia impugnação administrativa.
No entanto, existem leis avulsas que instituem impugnações administrativas necessárias. Estas deverão ter-se por legalmente impostas quando a lei diga de modo inequívoco que do acto em causa cabe tal impugnação (5). 
Mas na ausência de determinação legal nesse sentido a regra é a de que os actos administrativos com eficácia externa podem ser imediatamente impugnados pela via contenciosa, sem necessidade de uma prévia utilização das garantias graciosas.
A regra aqui exposta assenta no facto de o nosso legislador entender que não é necessária, para ter acesso à via contenciosa, uma demonstração por parte do autor de que tentou junto da Administração reverter a situação e impugnar o acto.



(1) Cfr. MÁRIO AROSO DE ALMEIDA, Manual de Processo Administrativo, 4ª reimpressão da edição de 2010, Almedina, 2014, p. 77.
(2) Cfr. autor cit., ob. cit., p. 272.
(3) Cfr. autor cit., ob. cit., pp. 270 e ss.
(4) Cfr. autor cit., ob. cit., p. 286.
(5) Cfr. autor cit., ob. cit., p. 304.



Bibliografia

ALMEIDA, Mário Aroso de - Manual de Processo Administrativo, 4ª reimpressão da ed. de 2010, Almedina, 2014.

AMARAL, Diogo Freitas do - Curso de Direito Administrativo, vol. II, 2ª ed., Almedina, 2012.

SILVA, Vasco Pereira da - O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise- Ensaio sobre as acções no novo processo administrativo, 2ª ed., Almedina, 2009.



Tiago Baptista, subturma 4
aluno n.º 22176
Tribunais Administrativos: Protecção Constitucional dos Cidadãos

A existência de uma categoria de Tribunais exclusiva do foro Administrativo é um princípio constitucional. Tem a sua expressão no artigo 209º da Constituição da República Portuguesa (doravante referida como “CRP”), e a sua hierarquia e organização é explicitada em artigos seguintes, sempre claramente separada dos tribunais judiciais. Há, assim, uma dualidade de jurisdições presente na ordem jurídica portuguesa, que marca fortemente não só a organização constitucional desta matéria, como, na prática, a organização dos juízes de ambas jurisdições.
            Deste modo, os tribunais judiciais são encimados hierarquicamente pelo Supremo Tribunal de Justiça (artigo 210º, nº1 CRP); e, simetricamente, os tribunais administrativos e fiscais são encimados pelo Supremo Tribunal Administrativo (artigo 212º, nº1 CRP). Também o artigo 215º CRP e o artigo 57º do ETAF demonstram esta simetria: o artigo 215º quanto aos juízes dos tribunais judiciais dispõe que estes formam um corpo único e se regem por um só estatuto; e o artigo 57º ETAF dispõe quantos aos juízes dos tribunais administrativos e fiscais que também estes formam um corpo único e se regem não só pelo ETAF, mas também pela Constituição e demais legislação aplicável. Assim se demonstra que estas duas categorias judiciais se desenvolvem paralelamente, e são, portanto, profundamente separadas. A própria carreira dos juízes administrativos e fiscais é especializada de tal forma que segue uma evolução separada dos demais juízes, de modo a garantir que a dualidade de jurisdições tenha o seu sentido pleno: não há assim uma livre circulação dos juízes administrativos pelos tribunais judiciais, e vice-versa, o que teria como consequência a colocação de juízes não especializados a julgarem matérias administrativas e fiscais para as quais não teriam competências.
             A razão principal para esta separação é, claro, o facto das duas categorias de tribunais terem competências muito distintas. No tocante aos tribunais administrativos e fiscais, o nosso ponto de interesse neste momento, a sua competência está definida no artigo 212º, nº3 CRP como “o julgamento das acções e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes de relações jurídicas e fiscais”; ou seja, de litígios cuja resolução implique o recurso a normas administrativas e fiscais.
            Esta protecção constitucional de um orgão exclusivamente competente para litígios do foro administrativo e fiscal (envolvendo sempre, portanto, poderes de autoridade pública), é essencial para um conceito de Estado de Direito. Protege a noção fundamental de que as entidades privadas têm um direito de agir contra a autoridade pública sempre que esta exercer os seus poderes incorrectamente, ou quando se virem na posse de um interesse legalmente protegido que não foi respeitado. O artigo 268º, nº 4 e nº 5 CRP consagra precisamente esse direito que todos têm de recorrer à justiça administrativa para fazer valer um seu direito ou interesse legalmente protegido, como um direito fundamental. Os tribunais administrativos e fiscais existem, portanto, para exercer um controlo último sobre a actuação das entidades que agiram com poderes de autoridade sobre privados. Mas não são só os privados os detentores de interesses legalmente protegidos: muitas vezes pode estar em causa um interesse público – como a função dos tribunais administrativos é fiscalizar a legalidade administrativa, o respeito pela legalidade é, em si mesmo, um interesse público.
            No entanto, existem limites à actuação judicial, expressos no artigo 3º, nº 1 do CPTA: a esta apenas compete julga “o cumprimento pela Administração das normas e princípios jurídicos que a vinculam, e não da conveniência e oportunidade da sua actuação”. Ou seja, o sistema judicial administrativo e tributário segue uma lógia de actuação tendo sempre em vista o princípio constitucional da separação do poderes e a sua interdependência, sem se inferir na actuação dos órgãos legitimados para proferirem os actos administrativos em apreço. Os tribunais apenas verificam se a questão em apreço é conforme a lei, e utilizam a sua sentença para, caso seja necessário, forçar a Administração regularizar a situação. Não têm, portanto, nenhum tipo de legitimidade para administrarem, mas apenas para julgar as questões de Direito.
            Tendo isto em mente, pretendo analisar a seguinte notícia:

“A lei de reorganização judiciária, que encerrará já em Setembro 20 tribunais e reduzirá 27 a secções de proximidade, é uma “opção política” tomada no âmbito do poder legislativo que os tribunais não podem suspender nem tão pouco escrutinar. Foi com esta argumentação que o Supremo Tribunal Administrativo (STA) rejeitou recentemente a providência cautelar interposta pela Comunidade Intermunicipal do Alentejo Litoral (CIMAL) por causa da extinção da comarca desta região.

Em causa, está a concretização de “opções políticas conformadoras da reforma judiciária desejada e planeada pelo legislador”, salientam os juízes, na decisão à qual o PÚBLICO teve acesso, para recusar a providência cautelar com pedido de decretamento provisório destinada à tutela de direitos, liberdades e garantias.

Com esta decisão, que é a primeira de uma instância superior relativa ao mapa judiciário, começa a cair por terra a esperança de sucesso de outras acções anunciadas por dezenas de municípios afectados. O STA considera-se “incompetente” para sequer avaliar a acção por estar em causa a pretensão da impugnação “de actos praticados no exercício da função política e legislativa”, e não administrativa.

(…)

O STA recorre à separação de poderes consagrada na Constituição da República e à polémica gerada com a extinção e junção de freguesias para exemplificar com esse caso concreto já apreciado que o poder judicial não pode imiscuir-se no poder legislativo.

(…)

Para o STA, fica claro que “aos tribunais administrativos não cabe qualquer impugnação de actos praticados ao abrigo da função legislativa”. Existe pois, dizem os juízes, uma “reserva relativa de competência legislativa”. Os juízes recordam que foi “o legislador” quem “quis dar uma nova configuração jurídica às comarcas”.

(…)

A acção pretendia “salvaguardar os direitos fundamentais dos cidadãos, nomeadamente do direito de acesso à justiça e ao Estado de Direito Democrático”. Com a reforma, os concelhos de Alcácer do Sal, Grândola, Santiago do Cacém e Sines ficam sob a alçada da Comarca de Setúbal, enquanto Odemira transita para a Comarca de Beja.

Alguns dos presidentes das autarquias visadas garantem que as populações não vão baixar os braços e que a contestação irá manter-se. O presidente da Câmara de Santiago do Cacém, Álvaro Beijinha, reconhece que a posição tomada pela CIMAL é “política” e lamenta que esta decisão, “que é infelizmente um facto”, vá “afectar os cidadãos e o acesso à justiça”. Já o presidente da Câmara de Odemira, José Alberto Guerreiro, diz que a decisão é uma “decepção” e vem “defraudar as expectativas das populações”. Aliás, o autarca lamenta que a reorganização venha a colocar a população “a mais de 100 quilómetros do Tribunal de Beja”. com Carlos Dias


06/08/2014

In http://www.publico.pt/sociedade/noticia/supremo-tribunal-administrativo-rejeita-providencia-cautelar-contra-fecho-de-tribunais-1665556”


           
            Esta notícia, que cita um acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, levanta uma questão importante: Se os tribunais administrativos são o mecanismo de reacção dos privados a decisões das autoridades públicas, o que deve pesar mais – o princípio da separação de poderes, ou a protecção dos cidadãos?
            Esta questão em si mesma pode ser falaciosa, é claro que os direitos, liberdades e garantias dos cidadãos são um pilar da nossa Constituição. O verdadeiro problema é se a interferência do sistema judicial na actuação da Administração na sua actividade política não será também uma violação constitucional dos princípios de Estado de Direito.
            Já vimos que a função os tribunais administrativos e fiscais se prende com a fiscalização da legalidade da actuação da Administração, mas nunca como uma substituição da própria Administração nas suas funções. Ao estabelecer no acórdão do STA mencionado na notícia que a decisão de fechar os tribunais era o resultado da reforma judiciária levada a cabo pelo poder legislativo, uma interferência do Supremo Tribunal Administrativo criaria um precedente de ingerência na competência legislativa, que, como consta dos artigos 164º e 165º CRP, apenas cabe à Assembleia e, por meio de autorização desta, ao Governo. Tal precedente seria inadmissível: é a separação de poderes que garante a legitimidade do Estado de Direito, e imparcialidade do sistema judicial. As decisões políticas, apesar de afectarem directamente os cidadãos, têm de ser observadas no panorama geral nacional, na situação de crise em que o país se encontra. Não cabe ao STA questionar o fecho dos tribunais, pese embora esta decisão faça parte da sua jurisdição, se este é conforme a lei.
Assim, neste caso, mesmo pesando na balança o “direito ao acesso à justiça” referido no artigo pelos presidentes das autarquias afectadas, o Supremo Tribunal Administrativo nada pode fazer. Não se trata de uma questão de falta de protecção dos cidadão, mas sim de uma questão de separação de poderes.


Bibliografia:
Manual do Processo Administrativo, de Mário Aroso de Almeida
Público, jornal online



Beatriz Pereira

Nº 22030

Poderá o parecer vinculante ser um acto recorrível?

Poderá o parecer vinculante ser um acto recorrível?

A garantia do recurso contencioso visa a invalidade de actos administrativos ilegais, que tenham eficácia externa0 e sejam lesivos de direitos e interesses legalmente protegidos do interessado, pressupõe, assim, o recurso a existência de um verdadeiro acto administrativo. Importa, pois, muito sucintamente definir acto administrativo, em que no sentido dado pelo art. 120 do CPA, são as decisões materialmente administrativas da autoridade que visem a produção de efeitos. É do ponto de vista estrutural decisivo para que os actos da administração possam ser objecto de reacção contenciosa, que eles possuam conteúdo decisório: que não se esgotem na emissão de uma declaração de ciência, um juízo, uma opinião, mas exprimam uma resolução que determine o rumo de acontecimentos ou de condutas a adoptar.
Ora os pareceres são habitualmente incluídos pela doutrina no domínio das diligências procedimentais, a que falta autonomia, pelo que apenas com a cumulação de um outro acto jurídico (acto final do procedimento) se produzirá efeitos jurídicos numa esfera externa ao órgão emitente.
Questão diferente coloca-se quanto aos pareceres vinculantes, e aqui tanto a doutrina e a jurisprudência têm se debatido e discordado, pois sucede que não desempenham a tal função  de instrutores ou auxiliares do procedimento, antes fixam um sentido para a resolução desse procedimento que o órgão com competência decisória não pode afastar. Desta forma questiona-se, se o parecer vinculante será ainda um parecer ou um acto administrativo, isto porque este último é requisito necessário conforme o art. 55/1 à admissibilidade da impugnação.
 Questão diversa é a de saber em que circunstâncias concretas é que cada acto administrativo pode ser efectivamente objecto de impugnação, atendendo às regras processuais da legitimidade1.
 Analisando alguma jurisprudência:
O acórdão do STA  (1ª secção) de 4/10/19952 vem defender a recorribilidade contenciosa directa de um acto administrativo realizado conforme um parecer vinculativo.. Refere que este tipo de actos, não obstante se incluírem num procedimento, contém em si mesmos uma decisão final relativamente a uma certa pessoa ou comprometem irreversivelmente a decisão a tomar, justificando desta forma a sua impugnabilidade contenciosa directa por parte do lesado. De notar, que não se está aqui perante um parecer emitido por entidade integrada na mesma pessoa colectiva que irá praticar o acto final ou a ela ligada por uma relação de natureza tutelar (mas sim perante uma relação inter-orgânica externa), pelo que o tribunal defende que não poderá proceder o argumento do carácter preparatório ou inter-orgânico, qualificando-o assim, como acto administrativo. Está se antes perante um acto prévio, emitido por uma autoridade da administração central ao abrigo de competências constitucionais e legais próprias, pelo que não vê aqui nenhum motivo para um desvio ao principio geral da recorribilidade contenciosa directa dos actos lesivos destacáveis. Fundamentou a decisão no facto de o parecer ter definido imediatamente a situação da requerente, que se viu impossibilitada de obter junto da Câmara a prentendida licença de loteamento, dado a lei considerar nulos os actos administrativos desconformes com pareceres vinculantes.

Criticas:
- Esta tese falha desde logo, pelo simples facto de o tribunal ao defender que o parecer vinculante define imediatamente a situação jurídica do requerente por uma razão que está associada à especificidade de o parecer recorrido, concretamente, ao facto de ele determinar a prática de um acto negativo, parecendo, nesse caso, notória a antecipação do efeito jurídico. Sucede que este efeito antecipativo é ilusório, tal como demonstram os pareceres que determinam a prática de um acto com efeitos positivos - onde é evidente que o efeito jurídico  do parecer original só toca o particular através de decisão conclusiva do procedimento.

O tribunal assume ainda determinante para a qualificação jurídica do parecer o facto de ele produzir ou não, os efeitos que tocam imediatamente a situação jurídica do particular; ora será então o parecer um acto administrativo, pois produz efeitos que se repercutam directamente na esfera jurídica do particular. Contudo parece-me aqui que o tribunal ao tomar esta posição que à primeira vista parece fazer sentido, se esqueceu dos pareceres vinculativos emitidos por um órgão do mesmo sujeito a que pertence o órgão decisor, não conseguindo entender a referência ao carácter externo ou interno da relação entre o órgão emitente e destinatário do parecer (ver 3) será que perante esta situação o tribunal seguiria a mesma posição sustentado que o parecer vinculante define imediatamente a situação jurídica? Ou se iria preocupar com o seu carácter puramente interno?

Diferente foi defendido no acórdão do pleno que indeferiu o recurso hierárquico do parecer vinculante por entender que se trata de um mero acto instrumental ou auxiliar da decisão - "o parecer teve apenas efeitos de um acto procedimental que só se torna decisório através do acto conclusivo do procedimento". O parecer não apresenta algumas características próprias de um acto administrativo, designadamente a produção de efeitos externos.
É contudo fácil de criticar este acórdão, pois a decisão que o tribunal chega assenta na premissa de que o parecer vinculante é um mero auxiliar ou instrumento da decisão conclusiva do procedimento, ora como já visto anteriormente, este ponto de vista é insustentável, já que o sentido do parecer vinculante é o de conformar ou preludiar o exercício do poder decisório.
O acórdão do STA (Pleno da 1ª.Secção) de 7/05/963
quanto à questão da recorribilidade do parecer vem decidir (no sentido da jurisprudência tradicional) em sentido negativo com o fundamento de que o acto contenciosamente impugnado, se insere no procedimento administrativo em vista à decisão final da Câmara Municipal acerca do deferimento ou não, do pedido de licenciamento, sendo esta decisão que tem efeitos externos (e define definitivamente a situação jurídica – época em que este requisito ainda era exigido) e que configura um verdadeiro acto administrativo, este sim susceptível de ser impugnado. O parecer teve apenas efeitos de um acto procedimental que só se torna decisório através do acto conclusivo do procedimento. Entende, que o parecer, per si, não idóneo para produzir efeitos imediatamente lesivos, isto porque se limita a apreciar tecnicamente a pretensão da recorrida.

No entanto, ocorreu uma inflexão da jurisprudência mais recente no sentido de admissibilidade, encontram- se os Acórdãos do Pleno de 16 Janeiro de 2001, Proc. 31317 e de 15 de Novembro de 2001, Proc. 37.811 que classificaram os pareceres vinculativos como verdadeiros actos administrativos contenciosamente recorríveis. Onde se escreveu: “Este parecer, de natureza desfavorável à recorrente, foi emitido, não no exercício de uma função de administração consultiva, mas consubstanciando antes, uma avaliação traduzida na emissão de um juízo crítico de um órgão que, por opção legal, tem um sentido determinante sobre o sentido da decisão procedimental, já que impõe mesmo o sentido desta (…). Assim, tal efeito desfavorável implica simultaneamente um efeito conformativo e preclusivo. Tal parecer realizou não apenas uma função definitória ou concretizadora do direito aplicável a uma relação jurídica que se constituíra entre dois órgãos da administração pertencentes a pessoas colectivas diferentes, mas também em relação aos próprios particulares requerentes. Assume, assim, no caso concreto, a natureza de um acto prejudicial do procedimento, cuja força jurídica é mais intensa do que a de um mero pressuposto, visto ter influência sobre os termos em que e exercido o poder decisório final, na medida em que define logo a posição jurídica dos interessados, ou seja compromete irreversivelmente o sentido da decisão final.”

Em suma - a Natureza Jurídica:
Começando por afastar argumentos que não permitem uma resposta satisfatória:

1- É irrelevante a existência ou não da possibilidade de o órgão principal recusar a prática do acto, que para além de não esclarecer a natureza dos pareceres, a vinculatividade dos pareceres é um facto, já que o seu conteúdo limita a liberdade do órgão que toma a decisão;

2- O professor Pedro Gonçalves afirma que a tese que sustenta que o parecer é um acto que directa e imediatamente define a situação jurídica do particular, depara-se com o problema, de a defender aquando o parecer respeitar à exigência de um acto com efeitos positivos, sejam eles favoráveis ou desfavoráveis. A acrescentar que esta tentativa de encontrar a natureza jurídica no modo como os efeitos se repercutem na esfera jurídica, traz o problema destes se destinarem e esgotarem no seio da administração (entre os dois órgãos em questão). Parece não situar o terceiro na posição correcta, que será a de terceiro na relação a que o parecer dá lugar.
Dito isto, pareço contradizer-me com tudo o que disse anteriormente, ora se defendi que o parecer vinculante compromete irreversivelmente o sentido da decisão, então define logo a posição jurídica do interessado, logo a recobilidade do parecer estaria fundada num interesse legítimo do particular em antecipar a tutela judicial contra a administração. Porém esta posição, segundo o professor, parece esquecer que o acto administrativo engloba uma função definitória e concretizadora do direito aplicável a uma relação jurídica, coisa que parece faltar ao parecer.
Também a ideia de "antecipação" não está totalmente correcta, pois embora o parecer comprometa o sentido da decisão, pode ocorrer que do parecer desfavorável não decorra uma lesão inevitável, isto porque embora sejam excepcionais, há ainda situações em que o órgão pode decidir contra o parecer (exemplo quando o considera ilegal), podendo-se refutar este ponto de vista por não haver desde logo uma certeza da produção de um efeito lesivo. Assim, não sendo um acto imediatamente lesivo, seguindo esta concepção o parecer não seria um acto administrativo.

- Visto que, no que respeita ao particular, destinatário do acto conclusivo do procedimento, o parecer não define nem vincula, (se seguirmos a posição do professor Pedro Gonçalves) os efeitos assemelham-se a um mero acto instrumental. Porém o parecer não pode ser equiparado a uma diligência de feição conclusiva, pois o parecer vinculante visa determinar o sentido do acto do órgão principal. Pelo que o professor Pedro Gonçalves entende que se pode caracterizar o parecer vinculante como uma "estatuição autoritária que impõe uma obrigação a um órgão administrativo relativa a um caso concreto, produzida por um órgão administrativo, no uso de poderes de direito administrativo.
Concluindo, portanto, que a qualificação jurídica do parecer acaba por depender da natureza externa ou interna da relação entre o órgão a quem ela se destina:
Se estivermos perante órgão da mesma pessoa colectiva é um acto interno; se os órgãos pertencerem a pessoas colectivas distintas, então o parecer será acto administrativo (visto preencher as outras características), já que produz efeitos no âmbito das relações externas. Tendo natureza de acto administrativo, pode ser impugnado.

A meu ver esta discussão será facilitada, se entendermos que
toda a actuação da administração é potencialmente externa (como o Professor VPS entende), pelo que produzirá sempre efeitos externos, deixando de fazer sentido esta dicotomia entre efeitos externos e internos para concluir pelo impugnabilidade de acto administrativo, imposta pelo art 51/1 do CPTA. O professor Aroso de Almeida também desvaloriza este pressuposto como exigência de impugnabilidade, mas com outros fundamentos. Reconhece que a questão da eficácia externa enquanto requisito da impugnabilidade é indissociável do estatuto de quem impugna, já que, em bom rigor, é um requisito que o acto só tem de preencher para o efeito de poder ser impugnado por quem não se encontre integrado na estrutura da própria entidade que o emite. Na verdade a partir do momento em que se admite que também os actos internos podem ser impugnados apenas lhe faltando o requisito da eficácia externa - necessário para que essa impugnação possa ser deduzida por pessoas externas, aquela no âmbito do qual eles foram emitidos, haverá que reconhecer que o referido requisito não é em absoluto, um requisito de impugnabilidade desses actos, mas apenas da sua impugnabilidade por essas pessoas - e, portanto, que a eficácia externa, embora se reporte à natureza dos efeitos que o acto visa produzir, é um atributo do acto administrativo cuja questão da existência, para efeitos contenciosos, por se situar no plano da relação que em concreto, estabelece entre o acto e os seus destinatários, deve ser colocada com vantagem no plano da identificação em termos da legitimidade;
Quanto o pressuposto "lesão de direitos ou interesses legalmente protegidos", ele encontra-se fora "do seu lugar" isto porque já parece que estamos aqui perante um problema de legitimidade e não de impugnabilidade.
A melhor solução, parece ser a de que são impugnáveis actos administrativos (e actos administrativos, serão a actuação da administração com conteúdo decisório.) É a posição defendida pelo professor Aroso de Almeida e Vasco Pereira da Silva, onde defendem que do ponto de vista estrutural, é decisivo para que os actos jurídicos concretos da Administração possam ser objecto de reacção contenciosa, quando tenham conteúdo positivo é que eles possuam conteúdo decisório. E isto, mesmo quando intervenham no plano de relações intra-administrativas e inter–orgânicas. Determinante é que se trate de actos administrativos no sentido que decorre do art 120 do CPA. Do ponto de vista estrutural, deve pois, entender-se que todos os actos administrativos podem ser objecto de reacção contenciosa – e portanto, quando tenham conteúdo positivo, todos eles podem ser objecto de impugnação contenciosa, porque são todos eles actos administrativos impugnáveis. Assim sendo, recorrendo à fórmula de que actos de conteúdo decisivo serão actos administrativos, e de que todos os actos administrativos serão impugnáveis, então por tudo o já referido o parecer vinculante tem conteúdo decisório, logo é um acto administrativo, pelo que poderá ser impugnado.
Questão diversa a colocar num plano de análise diferente, é a de saber em que circunstâncias concretas pode efectivamente cada acto administrativo ser objecto de impugnação – deve se encontrar resposta na legitimidade.

Quanto à Legitimidade:
Concluído que os pareceres vinculativos são actos administrativos e por isso objecto de impugnação, resta saber quanto à legitimidade. E parece, em tese geral, que os particulares, não têm interesse directo na impugnação de actos que, pela natureza dos efeitos que visam produzir, não causam uma desvantagem imediata na respectiva esfera jurídica, podendo se inserir na regra geral da inimpugnabilidade dos actos ineficazes previsto no art. 54 do CPTA. Como, os efeitos dos pareceres vinculativos se esgotam no âmbito das relações que se desenvolvem entre o órgão que os emite e aquele que por eles se encontra vinculado, parece assim, em princípio que, aplicação do art. 55/1 a) é afastada por inexistência de interesse directo (admitindo no entanto algumas situações em que tal situação seja admitida a titulo de defesa judicial antecipada do requerente-Vieira de Andrade). Mas como os pareces vinculativos decidem em que sentido devem agir os órgãos que por ele se encontram vinculados, podem ser impugnados pelas entidades a que estes órgãos pertencem (art 55/1 c)), ou também pelos próprios órgãos que vinculam, quando estes pertençam à mesma entidade pública a que pertence os órgãos que os emitiram (art55/1 d)). A previsão do art. 55/1 a) afasta igualmente por inexistência de interesse directo, a possibilidade da impugnação dos actos de admissão de candidatos em concursos por parte dos demais candidatos admitidos; tal como em princípio, a ordem de serviço que imponha a instauração de um processo disciplinar a um funcionário. Contudo, face ao seu conteúdo decisório, estes actos poderão ser impugnados pelo Ministério Público, ao ao abrigo do art. 55/1 b). Já por exemplo a ordem de serviço que imponha a um órgão que demita um funcionário parece dever poder ser impugnada pelo próprio funcionário, é a consequência que decorre do fenómeno de concentração da vontade decisória que, neste caso, decorre da substituição mediata ou volitiva do órgão superior ao subordinado, cuja conta vontade deixa de assumir relevância a partir do momento em que existe o comando hierárquico.
O professor Pedro Gonçalves é do mesmo entendimento do professor Aroso de Almeida e defende que mesmo que se entenda que o particular tem legitimidade para impugnar o acto administrativo, entende que não está preenchido um outro pressuposto processual, o “interesse em agir”, visto que o parecer não só provoca uma lesão actual como não provoca uma lesão certa, é o que resulta de não estar excluída uma decisão contra o parecer, no caso de o órgão que a ele fica vinculado o desconsiderar ou considera-lo ilegal, atitude que poderá originar um acto ilegal mas que produz efeitos jurídicos – assim como não está excluída a devolução do parecer ao órgão emitente para reponderação nem a recusa de tomada de uma decisão expressa, abrindo o caminho para o acto silente que, mesmo ilegal, poderá deferir a pretensão do particular.
Em sentido contrário, o Professor Vasco Pereira da Silva adopta um posicionamento fundado no critério da lesividade e refutando peremptoriamente a impossibilidade de um parecer vinculativo não poder ser impugnado na medida em que produz efeitos imediatos de carácter lesivo na esfera do interessado, e é esta lesão efectiva de direitos que deve determinar a necessidade de tutela jurisdicional. Cumpre referir, que a jurisprudência tem vindo a orientar-se num sentido mais permissivo, admitindo que o interessado possa recorrer a uma espécie de tutela antecipada, através da impugnação directa dos pareceres vinculativos desfavoráveis ao seu interesse. Como exemplo o acórdão de 9 de Fevereiro de 2005 e os acórdãos do pleno de 16 de Janeiro de 2001,(já referidos anteriormente) marcaram uma inflexão a partir do qual a jurisprudência se passou a inclinar no sentido de entender que os pareceres obrigatórios e vinculativos emitidos por órgãos pertencentes a entidades estranhas à entidade com competência para proferir a decisão final constituem actos prejudiciais do procedimento, isto é actos com as características inscritas no art. 120 do CPA, e por isso, actos administrativos contenciosamente recorríveis, já que são proferidos por órgãos da administração ao abrigo do direito administrativo, têm a natureza de uma estatuição autoritária relativa a um caso concreto e os seus efeitos lesivos reflectem-se directa e imediatamente na esfera jurídica do particular.
Assim concluindo que face ao enquadramento normativo vigente, tal como acabei de interpretar, parece que questões que eram resolvidas no passado recorrendo ao conceito de definitividades dos actos administrativos, devem no entanto se resolver no plano de legitimidade. Pelo que problemas que são colocados em torno da impugnabilidade, devem ser colocados a propósito dos problemas de legitimidade e de interesse processual.

0-embora este último pressuposto, seja bastante criticado na doutrina, onde se inclui o professor Vasco Pereira da Silva.
1- (e é neste plano que alguma doutrina coloca as questões relativas à eficácia externa versus interna, para o efeito de que apenas os actos externos podem ser impugnados por pessoas externas) em especial os pareceres vinculantes.
2- O acórdão tem como matéria de facto: Uma sociedade Imobiliária, recorre contenciosamente do despacho proferido pelo Secretário de Estado da Administração Local e Ordenamento de Território que homolgou o parecer desfavorável da Comissão de Coordenação da Região do Algarve (C.C.R.A) relativo a um processo de loteamento que a recorrente requerera na respectiva Câmara da localidade. O problema que vem posto para a decisão é o de saber se é ou não recorrível o despacho governamental que homolgou o parecer da C.C.R.A
3- O acórdão tem como matéria de facto: Uma empresa de construção, recorre contenciosamente do despacho do Ministro do Planeamento e da Administração do Território que negou provimento ao recurso hierárquico interposto do despacho do Presindente da Comissão de Coordenação da Região da localidade em questão, que deu parecer desfavorável ao seu pedido de aprovação de um projecto de construção de um edifício. A questão a resolver neste recurso é a de saber se o despacho do Ministro do Planeamento e da Administração do Território, é ou não recorrível contenciosamente.

Bibliografia:
Mário Aroso de Almeida, “Considerações em torno de conceito de acto administrativo impugnável”, Estudos em Homenagem ao prof. Marcello Caetano
Vasco Pereira da Silva, O Contencioso Administrativo
Mário Aroso de Almeida, Manual de Processo Administrativo
Vieira de Andrade, A Justiça Administrativa
Pedro Gonçalves, CJA nº0
Eliana Martins nº 21912