sexta-feira, 31 de outubro de 2014

Aceitação do Acto – O Pressuposto Escondido


     A Aceitação do Acto Administrativo está consagrada, no âmbito do Contencioso Administrativo, no artigo 56º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (CPTA) e apresenta-se como um instituto que impede o sujeito aceitante de impugnar o acto por ele aceite, restringindo-se por isso às Acções Administrativas Especiais de Impugnação de Actos Administrativos.

       Esta figura consiste numa manifestação de vontade de concordância, expressa ou tácita[1], com o conteúdo de um acto, sendo por isso resultado de um acto positivo de adesão, uma vez que só com essa vontade se produzirão os efeitos jurídico que a lei determina.

      Quanto ao acto que é aceite, este cinge-se a actos inválidos que tenham conteúdo desfavorável para o sujeito aceitante. Tratando-se de actos inválidos, podemos desde já retirar uma conotação processual do instituto, isto porque é, naturalmente, susceptível de impugnação, porém mediante a aceitação deixa de o ser, afigurando-se esta como um obstáculo à impugnação. Contudo, a Aceitação não representa um consentimento dos particulares para que a Administração Pública pratique actos desconformes à lei, mas sim uma escolha do legislador em dar prevalência a valores constitucionais de segurança e confiança sobre o direito à impugnação contenciosa de actos administrativos. Por sua vez, o conteúdo desfavorável do acto explica-se pelo facto de este ser o objecto da aceitação e de a aceitação se restringir aos aspectos desfavorável do mesmo, que serão potencialmente lesivos de direitos ou interesses. Ou seja, o sujeito a quem o acto se dirige só terá carência de o aceitar se esse mesmo acto não for de encontro às suas expectativas. Todavia, o conteúdo do acto aceite não pode ser totalmente desfavorável, terá necessariamente de conter algum conteúdo favorável que funcionará como motivo da aceitação.

        No que diz respeito aos efeitos da Aceitação do Acto podemos dividi-los em efeitos substantivos e processuais. Os efeitos substantivos da Aceitação do Acto Administrativo reconduzem-se a efeitos objectos e subjectivos, que dizem respeito, respectivamente, à convalidação e estabilização dos efeitos do acto administrativo e à extinção do direito ou interesse protegidos. A estes soma-se o efeito processual de perda ou preclusão do direito de impugnação.

     Definido já o efeito processual da Aceitação do Acto Administrativo, resta saber onde é que se insere este instituto no Processo Administrativo e aqui a doutrina diverge na inclusão ou não da Aceitação do Acto Administrativo no pressuposto da Legitimidade Activa das acções de impugnação.

   A doutrina maioritária reconduz esta figura ao pressuposto processual da Legitimidade, configurando-a como um Requisito Negativo de Legitimidade. O principal argumento aludido pelos defensores desta teoria é a integração sistemática da figura na subsecção “Da Legitimidade” da secção da “Impugnação de actos administrativos” do CPTA. Esta doutrina também argumenta no sentido em que, se o sujeito ao aceitar o acto extingue o seu direito ou interesse relativo a ele, e se, só tem Legitimidade quem é titular de um direito ou interesse atinente ao acto que pretende impugnar, então pela Aceitação, o sujeito aceitante deixa de preencher o pressuposto tornando-se parte ilegítima. Como defensor desta posição, o Professor José Sérvulo Correria[2] sustenta que com a Aceitação do acto deixa de ser atacável por parte de quem o aceitou, por perda de Legitimidade para o recurso ao Processo Administrativo.

    Recusando esta visão e separando o instituto da Aceitação do Acto do Pressuposto da Legitimidade, temos duas teorias, uma que reconduz este instituto ao pressuposto do Interesse em Agir e outra que o constrói uma Pressuposto Processual Autónomo.

          Em primeiro lugar, vamos analisar a doutrina que reconduz a Aceitação do Acto ao pressuposto processual do Interesse em Agir. Na verdade, a existência de um pressuposto desta natureza não é novidade para o Direito, dado que tal figura apareceu primeiramente e é originária do Processo Civil[3]. O objectivo principal deste pressuposto consiste em saber se o recorrente tem necessidade de proteção judicial para tutela de uma situação subjectiva, através do uso de um determinado meio processual, visando-se assim evitar custos e incómodos para o tribunal e para as partes, se realmente uma situação não merecer aquela tutela. No processo administrativo, o acolhimento deste pressuposto é ténue, mas para o Professor Vasco Pereira da Silva pode ser extraído de dois preceitos, o primeiro de uma forma mais explícita que o segundo. O artigo 39º do CPTA é o primeiro preceito ao qual o Professor faz referência para dele retirar o Interesse em Agir, focando-se essencialmente na alusão que o artigo faz a uma utilidade ou vantagem imediata na declaração judicial preterida. Partindo desta expressão, o Professor retira a “regra geral” do Interesse em Agir no Processo Administrativo, admitindo a sua aplicação para todos os outros meios processuais. Para além deste artigo, e agora fazendo a ligação com a Aceitação do Acto, o Professor assume que do artigo 56º do CPTA se pode retirar também, embora apenas implicitamente, uma ramificação do pressuposto do Interesse em Agir do artigo 39º do CPTA, pois sempre que o particular aceite o acto administrativo deixa, consequentemente, de ter interesse em agir. O Professor acrescenta ainda que, sendo verdade que o particular perde o direito de impugnação do acto administrativo, esta perda não é irreversível, porque este não deixa de o poder recuperar, através de revogação da declaração ou alteração do comportamento, desde que ainda estejam a correr os prazos para a impugnação. Completa dizendo que tal possibilidade, de restabelecimento do direito a impugnar, é admitida pelo artigo 268º/4 da Constituição e que qualquer recusa constitui uma violação do direito fundamental de acesso à jurisdição administrativa[4].

         Concordando ainda com a separação da Aceitação do Acto com o Pressuposto da Legitimidade, mas não aceitando a autonomização da figura como algo como um requisito negativo do pressuposto do Interesse em Agir, temos a teoria da Aceitação do Acto como Pressuposto Processual Autónomo Negativo, defendida pelos Professores Mário Aroso de Almeida e José Vieira de Andrade. Para ambos os Professores, este pressuposto teria que ser negativo, porque no artigo 56º do CPTA é formulado de maneira a que o recorrente não se encontre na situação de ter aceite o acto para puder recorrer à impugnação, pois se o tiver feito os efeitos desse mesmo acto estabilizam-se e este perde a possibilidade de impugnar o acto administrativo. Todavia, os Professores divergirem naquilo a que está relacionado o pressuposto, isto é, o Professor Mário Aroso de Almeida considera que este pressuposto é relativo ao objecto e o Professor José Vieira de Andrade considera que seja relativo às partes. Nesta medida, o Professor Mário Aroso de Almeida[5] analisa a Aceitação do Acto no momento em que averigua se um acto administrativo é ou não impugnável, não o sendo, se o sujeito aceitante praticou de modo espontâneo e sem reserva, um acto incompatível com a vontade de impugnar. Por outro lado, o Professor José Vieira de Andrade[6] analisa o Pressuposto de Aceitação do Acto aquando do apuramento dos pressupostos relativos às partes, juntamente com a personalidade, capacidade e legitimidade. Para este Professor, a Aceitação do Acto representa uma autovinculação do sujeito a um comportamento inicial de concordância com o acto administrativo, o que o impede de contestar esse acto.

            Cabe agora tomar uma posição sobre a questão.

           Com efeito, a autonomização do instituto em relação ao pressuposto da Legitimidade faz todo o sentido se atendermos a todos os efeitos da Aceitação do Acto. Isto porque se num primeiro momento somos levamos a ponderar a não separação, devido ao efeito substantivo subjectivo, num segundo momento, atendo ao efeito processual da Aceitação, não nos restam dúvidas quanto à separação. Quer isto dizer que, se nos restringirmos exclusivamente ao efeito substantivo de perda do direito ou interesse protegidos, naturalmente que somos levados a reconduzir este instituto a um Requisito Negativo de Legitimidade Activa, dado que na base do pressuposto de Legitimidade está a alegação de um interesse ou direito[7] e quando este não existe estamos perante uma situação de Ilegitimidade Activa. No entanto, tendo em conta o efeito processual do instituto somos levados, por outro lado, a abandonar esta tese, visto que só perde o direito a impugnar quem efectivamente o possuiu num momento anterior. Deste modo, para que a aceitação do acto funcione é necessário que o sujeito aceitante preencha o pressuposto da Legitimidade Activa, o que nos leva a concluir que a Aceitação do Acto não se confunde com a Legitimidade Activa e a sua averiguação correr posteriormente à análise a Legitimidade Activa.

           Também não nos parece que a visão de que a Aceitação do Acto representa uma regra especial do Interesse em Agir, seja a mais correcta. Como vimos, o Interesse em Agir, existe quando o recorrente tem necessidade de aceder à via judicial para efectivar ou proteger o seu direito ou interesse. Ora, se o acto aceite contêm sempre uma parte desfavorável ao aceitante, este terá sempre interesse em agir, no sentido em que existe na sua esfera jurídica situações de lesão dos seus direitos ou interesses, que até necessitavam de uma tutela jurisdicional, mas que, me prol da parte favorável que o acto comporta, o sujeito optou por “ignorar”.

          Com o que já foi dito até aqui e excluindo a recondução do instituto da Aceitação do Acto a um Requisito Negativo de Legimitidade Activa e também ao pressuposto do Interesse em Agir, resta-nos concordar com a doutrina que edifica a Aceitação do Acto como uma Pressuposto Processual Autónomo, mais concretamente a defendida pelo Professor José Vieira de Andrade. Sublinhe-se que o pressuposto é Especial porque se delimita às Acções Administrativas Especiais de Impugnação de Actos Administrativos e está formulado pela negativa, ao contrário dos outros pressupostos relativos às partes. É também de destacar que a opção pelo pressuposto ser relativo às partes justifica-se pela própria construção do artigo 56º do CPTA, que se foca em “quem” não impugnar um acto administrativo e não se o acto administrativo aceite é ou não impugnável. Além disso e para terminar, se caracterizámos (supra) o acto aceite como inválido, então abstrata e isoladamente ele é evidentemente impugnável.

Maria Beatriz Sousa
Nº22224

Bibliografia:
VIEIRA DE ANDRADE, José Carlos; A Justiça Administrativa (Lições), 12º Edição, Almedina, Coimbra, 2012;
AROSO DE ALMEIDA, Mário; Manual de Processo Administrativo, Reimpressão, Almedina, Coimbra, 2013;
PEREIRA DA SILVA, Vasco; O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise, 2º Edição, Almedina, Coimbra, 2009;
LOPES LUÍS, Sandra; A Aceitação do Acto Administrativo – Conceito, Fundamentos e Efeitos, Dissertação de Mestrado, Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, 2004.
OTERO, Paulo; Legalidade e Administração Pública, Almedina, Coimbra, 2003.


[1] Do artigo 56º do CPTA pode retirar-se uma classificação da Aceitação do Acto quanto à forma, ao momento e ao conteúdo. Começando pela forma, esta pode ser tácita (quando é espontânea, sem reservas, inequívoca e esclarecida) ou expressa (mediante declaração negocial). Passando para o momento em que a Aceitação é efectuda, podemos caracteriza-la como aceitação sucessiva, visto que o CPTA só admite que tal aconteça depois da prática do acto administrativo. Por fim, quanto ao conteúdo, a aceitação pode ser parcial ou total.
[2]JOSÉ MANUEL SÉRVULO CORREIA, Noções de Direito Administrativo, Volume I, Lisboa, 1982, p. 506.
[3]MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA, As Partes, o Objecto e a Prova na Acção Declarativa, Lisboa, 1995, p. 97.
[4]VASCO PEREIRA DA SILVA, O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise, 2º Edição, Almedina, Coimbra, 2009, pp. 373-374 e 474-475.
[5]MÁRIO AROSO DE ALMEIDA, Manual de Processo Administrativo, Reimpressão, Almedina, Coimbra, 2013, p. 316.
[6]JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADE, A Justiça Administrativa (Lições), 12º Edição, Almedina, Coimbra, 2012, pp. 270-272.
[7] Artigo 55º/1,a) do CPTA.

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