quarta-feira, 29 de outubro de 2014

A figura dos Contra-Interessados em sede de contencioso administrativo

         Com a viragem do Contencioso Administrativo e com a evolução constitucional, ultrapassou-se a solução tradicional de que as decisões administrativas são apenas bilaterais, ou seja, há uma relação apenas entre a Administração Pública e um destinatário directo e determinado. Hoje, atende-se à natureza multilateral da relação Administrativa, onde há produção de efeitos sobre pessoas que não são os imediatos destinatários.[i]
         A actividade administrativa e as suas decisões podem lesar ou beneficiar os interesses de sujeitos que não têm uma relação directa com a administração. Exemplo claro dessa situação encontram-se facilmente em Direito do Ambiente ou Direito do Urbanismo em que, além do sujeito directo a quem é imposta a decisão, existe uma pluralidade de pessoas que podem ser directamente afectadas. Como exemplo, apresenta-se uma acção de anulação da decisão sobre o vencedor de um concurso público para fornecimento de bens a um organismo do Estado, interposta por aquele que ficou em segundo lugar e que se achou injustiçado com a decisão, e nesse caso, tem obrigatoriamente que demandar todos aqueles que participaram no concurso, uma vez que a decisão que vier a ser tomada e se for procedente irá alterar a classificação atribuída nesse concurso.[ii]
         É daqui que decorre a importância da intervenção processual dos contra-interessados, que podem ser definidos como “aqueles a quem o provimento de recurso possa directamente prejudicar” conforme refere o artigo 44º da Lei nº9/2001 de 7 de Julho, ou seja, são titulares de interesses diferentes dos do autor, nos processos de impugnação e de condenação de actos administrativos. São todos aqueles que podem ser identificados em função da relação material em causa.
Esta figura vem consagrada nos artigos 10º, 57º e 68º/2 do CPTA. O art. 10º/1 confere legitimidade passiva a estes titulares, reconhecendo-lhes o estatuto de verdadeiras partes demandadas, numa situação de litisconsórcio necessário passivo. O art. 10º/8 permite o chamamento a juízo de outras entidades administrativas. Assim, permite que participem no processo as autoridades administrativas dotadas de competência conexa com a da autoridade da ré.
Também numa acção de condenação à prática do acto devido, o art. 68º/2 reconhece legitimidade aos contra-interessados “a quem a prática do acto omitido possa prejudicar” ou “que tenham legitimo interesse em que ele não seja praticado”. Em sede de impugnação de acto administrativo, confere-lhes legitimidade o art. 57º.
Do mesmo modo, e como formalidade exigida, o art. 47.º n.º 1 al. b) da Lei nº 9/2001 de 7 de Julho estabelece que, “(...) Na petição de recurso, que reveste a forma articulada deve o recorrente indicar (...) os contra-interessados a quem o provimento do recurso possa directamente prejudicar, requerendo a sua citação (...)”.
É de salientar a posição de precariedade em que o interessado se encontra pois, como já foi referido, este virá sofrer consequências do resultado de uma acção sobre a qual não participa.
         É sob este contexto que a lei impõe o ónus ao recorrente de identificar e requerer a citação dos contra-interessados, que traduz uma forma de intervenção processual de terceiros no âmbito do recurso contencioso, originando uma situação de litisconsórcios: 1- Litisconsórcio necessário passivo entre a autoridade recorrida e contra-interessados e 2- Litisconsórcio necessário passivo entre todos os contra-interessados. Cabe referir que o incumprimento desta referência na petição inicial se traduz uma ilegitimidade passiva.
         “Em termos estritamente processuais, o contra interessado é sempre um terceiro relativamente ao recorrente e à autoridade recorrida.” [iii] Mas estes “terceiros” passam a possuir, por conseguinte, um interesse na destruição ou manutenção de tais decisões que projectam efeitos sobre a sua esfera jurídica.
         Quanto ao fundamento jurídico subjectivo, o contra interessado é chamado ao processo porque é, segundo a expressão da lei, titular de interesses que podem ser directamente prejudicáveis com o recurso. A intervenção do mesmo é uma garantia constitucional conferida através do acesso à Justiça e da tutela jurisdicional efectiva prevista nos artigos 20º e 268º/4 da Constituição da República Portuguesa.
Deste modo, encontramos um fundamento jurídico-constitucional para que haja chamamento ao processo dos contra-interessados, assegurando assim a possibilidade de participarem no processo em causa e, respeitando então o princípio do contraditório e o princípio da igualdade das partes.
         Quanto à função objectiva e ao efeito útil da sentença, considerada pela maioria dos autores uma defesa de interesses em segundo plano, se existir uma decisão judicial de provimento que directamente prejudique terceiros e estes nunca tenham sido chamado ao processo, essa decisão não lhes será oponível. A ordem jurídica visa, então, assegurar a máxima eficácia subjectiva das decisões judiciais anulatórias de actos administrativos.
A Doutrina não tem sido unânime em classificar os contra-interessados como verdadeiras partes no processo. Há quem considere que estamos perante terceiros.
O Professor Vasco Pereira da Silva entende que os contra-interessados são verdadeiros sujeitos (e principais) da relação jurídica multilateral, pois são titulares de posições jurídicas de vantagem conexas com as da Administração, intervindo nesses termos no processo[iv]. Argumentando através da interpretação sistemática do CPTA, bem como o facto de as referidas posições de vantagem serem juridicamente protegidas. Salienta também a característica da multiplicidade nas relações jurídicas administrativas, tendo necessariamente que ser valorizada a posição daquele “terceiro”.
Já o Professor Mário Aroso de Almeida converge neste entendimento, pois entende, à partida, que os artigos 10º/1 -parte final, 57º e 68º/2 atribuem o estatuto de partes aos contra interessados. Refere que, “o universo dos contra-interessados é mais amplo, estendendo-se a todos aqueles que, por terem visto ou poderem vir a ver a respectiva situação jurídica defendida pelo acto administrativo praticado ou a praticar, têm direito de não serem deixados à margem do processo"[v]. Defende acima de tudo que o processo não prossiga à revelia de sujeitos interessados na relação material em causa.
Posição divergente defendeu o Professor Vieira de Andrade. Partia do entendimento que são consideradas partes as pessoas ou entidades que requerem e aquelas contra a qual é requerida a providência judiciária, tendo chegado a defender que, os contra-interessados não eram partes principais pois ocupavam uma posição secundária relativamente à entidade demandada, pelo que poderiam ser designados como partes "quase-principais" ou "quase-necessárias". O professor modificou a sua posição inicial pois como na acção administrativa especial há uma obrigação legal de se indicar na petição inicial e de se citar eventuais contra-interessados, é-lhes conferido poderes processuais de partes[vi].
         O artigo 57º do CPTA confere legitimidade aos contra-interessados, em sede de impugnação de acto administrativo. Existem três critérios auxiliadores de identificação destes sujeitos:
- Critério do acto impugnado -> através do qual se identifica o contra-interessado quando o acto administrativo atribua uma vantagem específica àquele “terceiro”; 
- Critério da posição substantiva de terceiro ->  Defende que o contra-interessado tem um interesse pessoal, directo e actual em relação ao do recorrente, mas de forma oposta.
- Critério dos efeitos da sentença -> identifica o contra-interessado através de um juízo de prognose pelo qual se conclui que a esfera jurídica daquela pessoa será directamente afectada pela decisão que venha a ser tomada, sendo a doutrina dominante na Alemanha.
O CPTA adopta um critério misto, combinando os diferentes critérios acima referidos. Na parte em que o art. 57º refere “a quem o provimento do processo impugnatório possa directamente prejudicar”, consagra nitidamente o critério dos efeitos da sentença. Mas, ao referir “que tenham legítimo interesse na manutenção do acto impugnado”, consagra também o critério do acto impugnado. Esta consagração possibilita o aumento dos possíveis contra-interessados, já que poderá ser classificado como tal qualquer sujeito que possua a mera titularidade de um legítimo interesse na manutenção do acto impugnado. Por fim, a teoria da posição substantiva do sujeito também é referida neste preceito, já que também engloba os “que possam ser identificados em função da relação material em causa ou dos documentos contidos no processo administrativo”.
         É o Prof. Paes Marques que mais se foca nesta matéria e critica esta solução mista apresentada pelo código. Propõe, assim, 3 requisitos se poder ser considerado contra-interessado:
   - Quem esteja claramente investido numa situação de vantagem atribuída directamente pela ordem jurídica (um direito subjectivo);
    - Quem detenha um interesse em colisão directa com o autor, de tal forma que a satisfação do interesse de um implica, necessariamente, a frustração do interesse do outro;
    - Que essa frustração ou satisfação decorresse de forma directa e imediata da sentença.[vii]
         À primeira vista poder-se-à pensar que a figura sobre a qual se incide o objecto de estudo é de pouca importância, face à mecânica processual do contencioso administrativo, o que não é o caso, bem pelo contrário, a mesma aparece determinante no desenvolvimento do processo. Por tudo o que aqui se referiu e explicou, podemos concluir que o interesse pessoal e directo do contra-interessado é razão suficiente para o legislador ter consagrado estas regras obrigatórias, sendo a figura do contra interessado valorizada com esta relação multilateral.


 Catarina Enes de Oliveira   nº 22112




[i] Cfr. Otero, Paulo, Os contra-interessados em contencioso administrativo: fundamento, função e determinação do universo em recurso contencioso de acto final de procedimento concursal, p. 1076
[ii] Cfr. http://www.servulo.comconsultado a 21 de Outubro de 2014
[iii] Cfr Otero, Paulo, Os contra-interessados em contencioso administrativo: fundamento, função e determinação do universo em recurso contencioso de acto final de procedimento concursal, p. 1077
[iv] Neste sentido, Silva, Vasco Pereira da, O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise, p.284 e 286
[v] Neste sentido, Almeida, Mário Aroso de, Manual de Processo Administrativo, p. 263
[vi] Neste sentido, Andrade, José Carlos Vieira de, A Justiça Administrativa (Lições), p.259
[vii] Neste sentido, Marques, Francisco Paes, A Efectividade da Tutela de Terceiros no Contencioso Administrativo, p.98- 102

Bibliografia:

- Almeida, Mário Aroso de, Manual de Processo Administrativo, Almedina, 2010;
- Andrade, José Carlos Vieira de, A Justiça Administrativa (Lições), 11ª Edição, Almedina, 2011;
- Marques, Francisco Paes, A Efectividade da Tutela de Terceiros no Contencioso Administrativo, Almedina, 2007;
-Otero, Paulo, Os contra-interessados em contencioso administrativo: fundamento, função e determinação do universo em recurso contencioso de acto final de procedimento concursal - Estudos em Homenagem ao Professor Rogério Soares, Coimbra Editora, 2002;
- Silva, Vasco Pereira daO Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise, 2ª edição, Almedina, 2009.



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