A
figura dos Contra-Interessados em sede de contencioso administrativo
Com a
viragem do Contencioso Administrativo e com a evolução constitucional,
ultrapassou-se a solução tradicional de que as decisões administrativas são
apenas bilaterais, ou seja, há uma relação apenas entre a Administração Pública
e um destinatário directo e determinado. Hoje, atende-se à natureza
multilateral da relação Administrativa, onde há produção de efeitos sobre
pessoas que não são os imediatos destinatários.[i]
A actividade administrativa e as suas
decisões podem lesar ou beneficiar os interesses de sujeitos que não têm uma
relação directa com a administração. Exemplo claro dessa situação encontram-se
facilmente em Direito do Ambiente ou Direito do Urbanismo em que, além do sujeito
directo a quem é imposta a decisão, existe uma pluralidade de pessoas que podem
ser directamente afectadas. Como exemplo, apresenta-se uma acção de anulação da
decisão sobre o vencedor de um concurso público para fornecimento de bens a um organismo
do Estado, interposta por aquele que ficou em segundo lugar e que se achou injustiçado
com a decisão, e nesse caso, tem obrigatoriamente que demandar todos aqueles
que participaram no concurso, uma vez que a decisão que vier a ser tomada e se
for procedente irá alterar a classificação atribuída nesse concurso.[ii]
É daqui que decorre a importância da
intervenção processual dos contra-interessados, que podem ser definidos como
“aqueles a quem o provimento de recurso possa directamente prejudicar” conforme
refere o artigo 44º da Lei nº9/2001 de 7 de Julho, ou seja, são titulares de
interesses diferentes dos do autor, nos processos de impugnação e de condenação
de actos administrativos. São todos aqueles que podem ser identificados em
função da relação material em causa.
Esta figura vem
consagrada nos artigos 10º, 57º e 68º/2 do CPTA. O art. 10º/1 confere
legitimidade passiva a estes titulares, reconhecendo-lhes o estatuto de
verdadeiras partes demandadas, numa situação de litisconsórcio necessário
passivo. O art. 10º/8 permite o chamamento a juízo de outras entidades
administrativas. Assim, permite que participem no processo as autoridades
administrativas dotadas de competência conexa com a da autoridade da ré.
Também numa acção de
condenação à prática do acto devido, o art. 68º/2 reconhece legitimidade aos
contra-interessados “a quem a prática do acto omitido possa prejudicar” ou “que
tenham legitimo interesse em que ele não seja praticado”. Em sede de impugnação
de acto administrativo, confere-lhes legitimidade o art. 57º.
Do mesmo modo, e como
formalidade exigida, o art. 47.º n.º 1 al. b) da Lei nº 9/2001 de 7 de Julho
estabelece que, “(...) Na petição de recurso, que reveste a forma articulada
deve o recorrente indicar (...) os contra-interessados a quem o provimento do
recurso possa directamente prejudicar, requerendo a sua citação (...)”.
É de salientar a
posição de precariedade em que o interessado se encontra pois, como já foi
referido, este virá sofrer consequências do resultado de uma acção sobre a qual
não participa.
É sob este contexto que a lei impõe o
ónus ao recorrente de identificar e requerer a citação dos contra-interessados,
que traduz uma forma de intervenção processual de terceiros no âmbito do
recurso contencioso, originando uma situação de litisconsórcios: 1-
Litisconsórcio necessário passivo entre a autoridade recorrida e
contra-interessados e 2- Litisconsórcio necessário passivo entre todos os
contra-interessados. Cabe referir que o incumprimento desta referência na
petição inicial se traduz uma ilegitimidade passiva.
“Em termos estritamente processuais, o
contra interessado é sempre um terceiro relativamente ao recorrente e à
autoridade recorrida.” [iii] Mas
estes “terceiros” passam a possuir, por conseguinte, um interesse na destruição
ou manutenção de tais decisões que projectam efeitos sobre a sua esfera
jurídica.
Quanto ao fundamento jurídico
subjectivo, o contra interessado é chamado ao processo porque é, segundo a
expressão da lei, titular de interesses que podem ser directamente
prejudicáveis com o recurso. A intervenção do mesmo é uma garantia
constitucional conferida através do acesso à Justiça e da tutela jurisdicional
efectiva prevista nos artigos 20º e 268º/4 da Constituição da República
Portuguesa.
Deste modo,
encontramos um fundamento jurídico-constitucional para que haja chamamento ao
processo dos contra-interessados, assegurando assim a possibilidade de
participarem no processo em causa e, respeitando então o princípio do
contraditório e o princípio da igualdade das partes.
Quanto à função objectiva e ao efeito
útil da sentença, considerada pela maioria dos autores uma defesa de interesses
em segundo plano, se existir uma decisão judicial de provimento que
directamente prejudique terceiros e estes nunca tenham sido chamado ao
processo, essa decisão não lhes será oponível. A ordem jurídica visa, então,
assegurar a máxima eficácia subjectiva das decisões judiciais anulatórias de
actos administrativos.
A Doutrina não tem
sido unânime em classificar os contra-interessados como verdadeiras partes no
processo. Há quem considere que estamos perante terceiros.
O Professor Vasco
Pereira da Silva entende que os contra-interessados são verdadeiros sujeitos (e
principais) da relação jurídica multilateral, pois são titulares de posições
jurídicas de vantagem conexas com as da Administração, intervindo nesses termos
no processo[iv]. Argumentando
através da interpretação sistemática do CPTA, bem como o facto de as referidas
posições de vantagem serem juridicamente protegidas. Salienta também a
característica da multiplicidade nas relações jurídicas administrativas, tendo
necessariamente que ser valorizada a posição daquele “terceiro”.
Já o Professor Mário
Aroso de Almeida converge neste entendimento, pois entende, à partida, que os
artigos 10º/1 -parte final, 57º e 68º/2 atribuem o estatuto de partes aos
contra interessados. Refere que, “o universo dos contra-interessados é mais
amplo, estendendo-se a todos aqueles que, por terem visto ou poderem vir a ver
a respectiva situação jurídica defendida pelo acto administrativo praticado ou
a praticar, têm direito de não serem deixados à margem do processo"[v]. Defende acima de
tudo que o processo não prossiga à revelia de sujeitos interessados na relação
material em causa.
Posição divergente
defendeu o Professor Vieira de Andrade. Partia do entendimento que são
consideradas partes as pessoas ou entidades que requerem e aquelas contra a
qual é requerida a providência judiciária, tendo chegado a defender que, os
contra-interessados não eram partes principais pois ocupavam uma posição
secundária relativamente à entidade demandada, pelo que poderiam ser designados
como partes "quase-principais" ou "quase-necessárias". O
professor modificou a sua posição inicial pois como na acção administrativa
especial há uma obrigação legal de se indicar na petição inicial e de se citar
eventuais contra-interessados, é-lhes conferido poderes processuais de partes[vi].
O artigo 57º do CPTA confere
legitimidade aos contra-interessados, em sede de impugnação de acto
administrativo. Existem três critérios auxiliadores de identificação destes
sujeitos:
- Critério do acto
impugnado -> através do qual se identifica o contra-interessado quando o
acto administrativo atribua uma vantagem específica àquele “terceiro”;
- Critério da posição
substantiva de terceiro -> Defende que o contra-interessado tem um
interesse pessoal, directo e actual em relação ao do recorrente, mas de forma
oposta.
- Critério dos efeitos
da sentença -> identifica o contra-interessado através de um juízo de
prognose pelo qual se conclui que a esfera jurídica daquela pessoa será directamente
afectada pela decisão que venha a ser tomada, sendo a doutrina dominante na
Alemanha.
O CPTA adopta um
critério misto, combinando os diferentes critérios acima referidos. Na parte em
que o art. 57º refere “a quem o provimento do processo impugnatório possa
directamente prejudicar”, consagra nitidamente o critério dos efeitos da
sentença. Mas, ao referir “que tenham legítimo interesse na manutenção do acto
impugnado”, consagra também o critério do acto impugnado. Esta consagração
possibilita o aumento dos possíveis contra-interessados, já que poderá ser
classificado como tal qualquer sujeito que possua a mera titularidade de um
legítimo interesse na manutenção do acto impugnado. Por fim, a teoria da
posição substantiva do sujeito também é referida neste preceito, já que também
engloba os “que possam ser identificados em função da relação material em causa
ou dos documentos contidos no processo administrativo”.
É o Prof. Paes Marques que mais se foca
nesta matéria e critica esta solução mista apresentada pelo código. Propõe,
assim, 3 requisitos se poder ser considerado contra-interessado:
- Quem
esteja claramente investido numa situação de vantagem atribuída directamente
pela ordem jurídica (um direito subjectivo);
- Quem
detenha um interesse em colisão directa com o autor, de tal forma que a
satisfação do interesse de um implica, necessariamente, a frustração do
interesse do outro;
- Que
essa frustração ou satisfação decorresse de forma directa e imediata da
sentença.[vii]
À primeira vista poder-se-à pensar que
a figura sobre a qual se incide o objecto de estudo é de pouca importância,
face à mecânica processual do contencioso administrativo, o que não é o caso, bem pelo contrário, a mesma aparece determinante no desenvolvimento do processo.
Por tudo o que aqui se referiu e explicou, podemos concluir que o interesse
pessoal e directo do contra-interessado é razão suficiente para o legislador
ter consagrado estas regras obrigatórias, sendo a figura do contra interessado
valorizada com esta relação multilateral.
Catarina Enes de Oliveira nº 22112
[i]
Cfr. Otero,
Paulo, Os contra-interessados em contencioso administrativo:
fundamento, função e determinação do universo em recurso contencioso de acto
final de procedimento concursal,
p. 1076
[iii]
Cfr Otero,
Paulo, Os contra-interessados em contencioso administrativo:
fundamento, função e determinação do universo em recurso contencioso de acto
final de procedimento concursal, p. 1077
[iv]
Neste sentido, Silva, Vasco Pereira da, O Contencioso Administrativo no
Divã da Psicanálise, p.284 e 286
[vii] Neste
sentido, Marques,
Francisco Paes, A
Efectividade da Tutela de Terceiros no Contencioso Administrativo, p.98- 102
Bibliografia:
- Almeida, Mário Aroso
de, Manual de Processo Administrativo, Almedina, 2010;
- Andrade, José Carlos
Vieira de, A Justiça Administrativa (Lições), 11ª Edição, Almedina,
2011;
- Marques, Francisco
Paes, A Efectividade da Tutela de Terceiros no Contencioso
Administrativo, Almedina, 2007;
-Otero, Paulo, Os contra-interessados em contencioso administrativo:
fundamento, função e determinação do universo em recurso contencioso de acto
final de procedimento concursal - Estudos em Homenagem ao Professor Rogério
Soares, Coimbra
Editora, 2002;
- Silva, Vasco Pereira
da, O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise, 2ª edição, Almedina,
2009.
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