segunda-feira, 27 de outubro de 2014

A tutela dos interesses directos e pessoais do artigo 55.º/1-a) do CPTA


I - Introdução: O actocêntrismo

A tutela do direito dos particulares encontra acolhimento no artigo 268º/4 da Constituição da República Portuguesa sendo, nas palavras do Prof. Vasco Pereira da Silva, a “pedra angular do Processo Administrativo[1]”. De acordo com este autor, a revisão constitucional de 1997, representou uma verdadeira «revolução coperniciana» uma vez que «passam a ser os diferentes meios processuais que “giram” à volta do princípio da tutela plena e efectiva dos direitos dos particulares e não o contrário». Este novo entendimento é mais um passo na superação dos traumas da “infância difícil” e do “pecado original”- metáforas usadas pelo Prof. Vasco Silva – que se consubstanciavam na defesa de um juiz doméstico, na promiscuidade entre a função de administrar e julgar, que encontrava fundamentação teórica em Montesquieu[2] e na doutrina clássica de que o contencioso administrativo era de tipo objectivo, ou seja, tinha como função o escrutínio da legalidade da actuação administrativa e dos seus actos.

Assim, a revolução coperniciana de 1997 coloca a tutela dos direitos particulares e dos seus direitos subjectivos no centro do contencioso, afastando desta forma o trauma da infância difícil onde o acto administrativo era “tudo e todas as partes”, segundo o autor Mario Nigro, onde as partes e a Administração eram “coisificadas”, apenas existindo na exacta medida em que serviam a defesa da legalidade e do interesse público.

Esta concepção actocêntrica do Direito Administrativo foi superada e nos dias de hoje já não existem dúvidas de que os particulares são parte processual, titulares de direitos subjectivos quando lesados pela actuação da Administração, encontrando esta ideia acolhimento no Princípio da Igualdade das partes, nos artigos 6º e 8º do CPTA, 209º e 268º/4, 212º/3 CRP.

Para além disso, a qualidade de ser parte encontra-se intimamente ligada às regras comuns sobre legitimidade compreendidas no artigo 9º do CPTA.

Posto isto, importa agora entrar na temática a ser abordada: a explicitação do artigo 9º e 55º/1-a) do CPTA e o que se poderá entender por interesse.

II - Análise geral: A legitimidade activa

Antes de mais, importa referir que o artigo 9º do CPTA determina que o autor é parte legítima quando alegue ser parte na relação material controvertida, ou seja, sempre que, plausivelmente, é titular de um direito subjetivo ou de uma posição substantiva de vantagem. Impera aqui uma orientação subjectivista, que é mitigada pelo art.º 9º/2, que tem um pendor objectivista. No art. 9º/2 dá-se um fenómeno de extensão da legitimidade a quem não alegue ser parte numa relação material, reconhecendo, assim, uma legitimidade mais ampla a diversas entidades para as acções populares.

O artigo 9.º/1 é, porém, um regime comum, de aplicação residual. Por esse motivo, o critério estabelecido no 9º/1, é, “em grande medida, derrogado por um amplo conjunto de soluções especiais que, noutros artigos, o próprio CPTA estabelece para diversos tipos especiais de ações”[3], são eles os artigos 40º, 55º, 57º, 68 e 73º, no âmbito da ação administrativa especial.

No caso em apreço, interessa abordar apenas o artigo 55º que confere legitimidade activa para a impugnação de actos administrativos, que é “herdeira” do antigo recurso direto de anulação.

III – O artigo 55º e os diversos tipos de interesses

O regime do art. 55º é especial e atribui uma legitimidade mais ampla do que aquela que se verifica no art.º 9.º. O art. 55º confere legitimidade para a impugnação de um acto administrativo e respectiva anulação ou declaração e nulidade desse acto lesivo. O sujeito privado assume aqui a feição de um actor processual, que possui um interesse directo e pessoal, por ter sido lesado pelo acto nos seus direitos ou interesses legalmente protegidos.

A razão de ser deste conjunto de regimes especiais prende-se com o facto de a legitimidade não ser um pressuposto que se reporta “em abstrato, à pessoa do autor ou do demandado, mas um pressuposto cujo preenchimento se afere em função da concreta relação que (alegadamente) se estabelece entre essas pessoas e uma acção com um objeto determinado”[4]. Assim, o artigo 55º basta-se apenas com a alegação da titularidade da situação jurídica invocada pelo autor, obrigando o tribunal a considerar a acção improcedente caso verifique que o interessado não é titular da situação jurídica.

A legitimidade para impugnar prende-se apenas com o facto de o acto estar a provocar consequências negativas na esfera jurídica do autor da acção, trazendo-lhe a ele, pessoalmente, uma vantagem directa ou imediata em pedir a declaração de nulidade do acto. Sendo assim, a lesão de direitos ou interesses legalmente protegidos não é o critério de atribuição de legitimidade para a impugnação, mas tão só um exemplo de como a violação de interesse directo e pessoal poderá ser concretizado.

Recorrendo à explicitação de Carlos Cadilha[5], é possível enumerar os diversos tipos de interesse que poderão ser objecto da acção impugnatória:
  • Interesse público, que é o interesse do Estado, entidades territoriais, regionais e locais, representadas pelo Ministério Público e pessoas colectivas públicas;
  • Interesse difuso, previsto no art. 55º, alínea f), que configura a primeira modalidade genérica de acção popular, actuando os particulares e pessoas colectivas para a defesa da legalidade e do interesse público, de forma objectiva;
  •  Interesse colectivo, como interesse particular comum a grupos ou categorias de cidadãos, por referência a certos valores jurídico-económicos ou sócio-profissionais.

E, por fim, o art. 55º/2, trata da acção popular correctiva (segunda modalidade de acção popular) tendo os eleitores legitimidade para fiscalizar as actuações das autarquias locais. Quanto a esta modalidade, o Prof. Vasco Pereira da Silva considera que terá sido absorvida pela acção popular genérica (55º/1-f), que é necessariamente mais ampla e que, portanto, a acção popular correctiva caducou[6].

IV – art. 55º/1-a) – O interesse como condição de legitimidade

Tendo feito uma passagem genérica por todos os tipos de interesses patentes no artigo 55º, é hora de analisar com mais detalhe a alínea a) do artigo 55º/1.

O interesse previsto nesta alínea nasce na doutrina clássica francesa, que concebe o, então, recurso de anulação como a verificação da legalidade dos actos, onde, para chegar a juízo, o particular teria de ter um interesse de facto próximo do da Administração que lhe daria legitimidade para ser parte. Assim, a legitimidade “era determinada em razão do interesse (directo, pessoal e legítimo) dos particulares no afastamento do acto administrativo da ordem jurídica”. Este interesse “enquanto condição de legitimidade surge, pois, como o “sucedâneo” de uma posição jurídica substantiva do particular que se pretende negar”[7].

Esta concepção tripartida do interesse como condição de legitimidade tem reminiscências na qualificação de Maurice Hauriou[8], tendo o Prof. Marcello Caetano sistematizado[9] o interesse da seguinte forma:
  • Directo: se o recurso de anulação for consequência imediata de prejuízos causados pela Administração;
  • Pessoal: se o titular do recurso for a pessoa lesada e na sua esfera jurídica se verifique o efeito da anulação pretendida;
  • Legítimo: se o titular tiver sido desfavorecido no processo em que foi praticado o acto recorrido ou se for objecto de protecção jurídica, mesmo que indirecta.
Actualmente, destes três critérios soçobrou o interesse legítimo, deixando de fazer parte da alínea a) do artigo 55º/1. Carlos Cadilha explica esta exclusão com base na inutilidade do requisito, uma vez que o interesse legítimo funde-se com o interesse legalmente protegido, sendo somente uma condição de procedência da acção.

Como já antes foi dito, a noção de interesse reporta-se a um interesse de facto e não a um interesse jurídico o que, em última análise, torna o conceito da legitimidade muito mais amplo.

Quanto ao interesse directo e pessoal, é possível recorrer às definições avançadas por Mário Aroso de Almeida[10].
  •  A pessoalidade do interesse
Desta feita, quanto ao carácter pessoal do interesse, explica o autor que para existir legitimidade, será necessário que com pedido de impugnação o autor reivindique para si próprio uma utilidade pessoal, determinando que o efeito da impugnação do acto se repercuta na sua esfera jurídica. É de salientar que Mário Aroso de Almeida considera o requisito da pessoalidade como o único critério que realmente importa para aferir sobre a legitimidade processual.
  •  O carácter directo e imediato do interesse
Mário Aroso de Almeida define o carácter directo do interesse na medida em que do pedido de impugnação decorre um interesse actual, efectivo e imediato em pedir a anulação/nulidade do acto. Trata-se, portanto, “de saber se o impugnante se encontra numa situação de efectiva lesão que justifique a utilização do meio impugnatório”[11]. Tem, então, legitimidade directa para impugnar, aquele que possui um interesse imediato (por oposição a interesse eventual ou hipotético) em obter da impugnação de um acto. Mário Aroso de Almeida considera que o interesse directo não é um pressuposto de legitimidade processual, mas pressuposto de interesse em agir.

IV – Considerações finais – a amplitude do artigo 55.º

O artigo 55.º/1-a) (e demais alíneas) tem vestígios objectivistas, já que basta a mera alegação da titularidade do interesse para se ser parte legítima. Tal alarga consideravelmente o número de casos que podem ser aqui tutelados.

Para além disso, face à regra residual do artigo 9º/1, o artigo 55º/1-a) amplia os casos de legitimidade dos interessados, permitindo também aqui alargar o âmbito de aplicação a uma maior variedade de situações lesivas.

Também contribui para uma tutela mais ampla a defesa de um interesse predominantemente de facto e não somente um interesse jurídico, do artigo 55.º/1-a).

Por fim, é de salientar a importância do artigo 55º/1-a) à luz da legitimidade activa para a impugnação de actos lesivos da Administração, que, caso não existisse, deixaria de fora da sua previsão muitas situações potencialmente tuteláveis.

Como resulta óbvio, esta é uma abordagem singela a um tema que deixa ainda muito espaço para mais considerações.

Rafaela Vieira dos Santos - n.º 14940


[1] VASCO PEREIRA DA SILVA, «O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise», Almedina, 2.ª Edição actualizada, 2009, página 241.

[2] Vasco Pereira da Silva, «O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise», Almedina, 2.ª Edição actualizada, 2009, página 20.

[3]  MÁRIO AROSO DE ALMEIDA, “Manual de Processo Administrativo”, Almedina, reimpressão, 2013, página 221.

[4] MÁRIO AROSO DE ALMEIDA, “Manual de Processo Administrativo”, Almedina, reimpressão, 2013, página 222.

[5] CARLOS CADILHA, “Legitimidade Processual”Cadernos de Justiça Administrativan.º 34, 2002, página 18

[6] VASCO PEREIRA DA SILVA, «O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise», Almedina, 2.ª Edição actualizada, 2009, páginas 370 e 371.

[7] VASCO PEREIRA DA SILVA, «O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise», Almedina, 2.ª Edição actualizada, 2009, página 261.

[8] Conferir nota de rodapé n.º 37, página 261, de VASCO PEREIRA DA SILVA, «O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise».

[9] MARCELLO CAETANO, “O interesse como Condição de Legitimidade no Recurso Directo de Anulação”

[10] MÁRIO AROSO DE ALMEIDA, “Manual de Processo Administrativo”, Almedina, reimpressão, 2013, página 235.


[11] MÁRIO AROSO DE ALMEIDA, “Manual de Processo Administrativo”, Almedina, reimpressão, 2013, página 235

Sem comentários:

Enviar um comentário