I - Introdução: O actocêntrismo
A tutela do direito dos
particulares encontra acolhimento no artigo 268º/4 da Constituição da República
Portuguesa sendo, nas palavras do Prof. Vasco Pereira da Silva, a “pedra
angular do Processo Administrativo[1]”.
De acordo com este autor, a revisão constitucional de 1997, representou uma
verdadeira «revolução coperniciana» uma vez que «passam a ser os diferentes
meios processuais que “giram” à volta do princípio da tutela plena e efectiva
dos direitos dos particulares e não o contrário». Este novo entendimento é mais
um passo na superação dos traumas da “infância difícil” e do “pecado original”-
metáforas usadas pelo Prof. Vasco Silva – que se consubstanciavam na defesa de
um juiz doméstico, na promiscuidade entre a função de administrar e julgar, que
encontrava fundamentação teórica em Montesquieu[2] e
na doutrina clássica de que o contencioso administrativo era de tipo objectivo,
ou seja, tinha como função o escrutínio da legalidade da actuação
administrativa e dos seus actos.
Assim, a revolução coperniciana
de 1997 coloca a tutela dos direitos particulares e dos seus direitos
subjectivos no centro do contencioso, afastando desta forma o trauma da
infância difícil onde o acto administrativo era “tudo e todas as partes”,
segundo o autor Mario Nigro, onde as partes e a Administração eram
“coisificadas”, apenas existindo na exacta medida em que serviam a defesa da
legalidade e do interesse público.
Esta concepção actocêntrica do
Direito Administrativo foi superada e nos dias de hoje já não existem dúvidas
de que os particulares são parte processual, titulares de direitos subjectivos
quando lesados pela actuação da Administração, encontrando esta ideia
acolhimento no Princípio da Igualdade das partes, nos artigos 6º e 8º do CPTA,
209º e 268º/4, 212º/3 CRP.
Para além disso, a qualidade de
ser parte encontra-se intimamente ligada às regras comuns sobre legitimidade
compreendidas no artigo 9º do CPTA.
Posto isto, importa agora entrar
na temática a ser abordada: a explicitação do artigo 9º e 55º/1-a) do CPTA e o
que se poderá entender por interesse.
II
- Análise geral: A legitimidade activa
Antes de mais, importa referir
que o artigo 9º do CPTA determina que o autor é parte legítima quando alegue
ser parte na relação material controvertida, ou seja, sempre que,
plausivelmente, é titular de um direito subjetivo ou de uma posição substantiva
de vantagem. Impera aqui uma orientação subjectivista, que é mitigada pelo
art.º 9º/2, que tem um pendor objectivista. No art. 9º/2 dá-se um fenómeno de
extensão da legitimidade a quem não alegue ser parte numa relação material,
reconhecendo, assim, uma legitimidade mais ampla a diversas entidades para as acções
populares.
O artigo 9.º/1 é, porém, um
regime comum, de aplicação residual. Por esse motivo, o critério estabelecido
no 9º/1, é, “em grande medida, derrogado
por um amplo conjunto de soluções especiais que, noutros artigos, o próprio
CPTA estabelece para diversos tipos especiais de ações”[3],
são eles os artigos 40º, 55º, 57º, 68 e 73º, no âmbito da ação administrativa
especial.
No caso em apreço, interessa
abordar apenas o artigo 55º que confere legitimidade activa para a impugnação
de actos administrativos, que é “herdeira” do antigo recurso direto de
anulação.
III
– O artigo 55º e os diversos tipos de interesses
O regime do art. 55º é especial
e atribui uma legitimidade mais ampla do que aquela que se verifica no art.º
9.º. O art. 55º confere legitimidade para a impugnação de um acto
administrativo e respectiva anulação ou declaração e nulidade desse acto lesivo.
O sujeito privado assume aqui a feição de um actor processual, que possui um
interesse directo e pessoal, por ter sido lesado pelo acto nos seus direitos ou
interesses legalmente protegidos.
A razão de ser deste conjunto de
regimes especiais prende-se com o facto de a legitimidade não ser um
pressuposto que se reporta “em abstrato, à pessoa do autor ou do demandado, mas
um pressuposto cujo preenchimento se afere em função da concreta relação que
(alegadamente) se estabelece entre essas pessoas e uma acção com um objeto
determinado”[4].
Assim, o artigo 55º basta-se apenas com a alegação da titularidade da
situação jurídica invocada pelo autor, obrigando o tribunal a considerar a acção
improcedente caso verifique que o interessado não é titular da situação
jurídica.
A legitimidade para impugnar prende-se
apenas com o facto de o acto estar a provocar consequências negativas na esfera
jurídica do autor da acção, trazendo-lhe a ele, pessoalmente, uma vantagem
directa ou imediata em pedir a declaração de nulidade do acto. Sendo assim, a
lesão de direitos ou interesses legalmente protegidos não é o critério de
atribuição de legitimidade para a impugnação, mas tão só um exemplo de como a violação
de interesse directo e pessoal poderá ser concretizado.
Recorrendo à explicitação de
Carlos Cadilha[5],
é possível enumerar os diversos tipos de interesse que poderão ser objecto da
acção impugnatória:
- Interesse público, que é o interesse do Estado, entidades territoriais, regionais e locais, representadas pelo Ministério Público e pessoas colectivas públicas;
- Interesse difuso, previsto no art. 55º, alínea f), que configura a primeira modalidade genérica de acção popular, actuando os particulares e pessoas colectivas para a defesa da legalidade e do interesse público, de forma objectiva;
- Interesse colectivo, como interesse particular comum a grupos ou categorias de cidadãos, por referência a certos valores jurídico-económicos ou sócio-profissionais.
E, por fim, o art. 55º/2, trata
da acção popular correctiva (segunda modalidade de acção popular) tendo os
eleitores legitimidade para fiscalizar as actuações das autarquias locais.
Quanto a esta modalidade, o Prof. Vasco Pereira da Silva considera que terá
sido absorvida pela acção popular genérica (55º/1-f), que é necessariamente
mais ampla e que, portanto, a acção popular correctiva caducou[6].
IV
– art. 55º/1-a) – O interesse como condição de legitimidade
Tendo feito uma passagem
genérica por todos os tipos de interesses patentes no artigo 55º, é hora de
analisar com mais detalhe a alínea a) do artigo 55º/1.
O interesse previsto nesta
alínea nasce na doutrina clássica francesa, que concebe o, então, recurso de
anulação como a verificação da legalidade dos actos, onde, para chegar a juízo,
o particular teria de ter um interesse de facto próximo do da Administração que
lhe daria legitimidade para ser parte. Assim, a legitimidade “era determinada em razão do interesse (directo, pessoal
e legítimo) dos particulares no afastamento do acto administrativo da ordem
jurídica”. Este interesse “enquanto condição de legitimidade surge, pois, como
o “sucedâneo” de uma posição jurídica substantiva do particular que se pretende
negar”[7].
Esta concepção tripartida do
interesse como condição de legitimidade tem reminiscências na qualificação de
Maurice Hauriou[8],
tendo o Prof. Marcello Caetano sistematizado[9] o
interesse da seguinte forma:
- Directo: se o recurso de anulação for consequência imediata de prejuízos causados pela Administração;
- Pessoal: se o titular do recurso for a pessoa lesada e na sua esfera jurídica se verifique o efeito da anulação pretendida;
- Legítimo: se o titular tiver sido desfavorecido no processo em que foi praticado o acto recorrido ou se for objecto de protecção jurídica, mesmo que indirecta.
Actualmente, destes três
critérios soçobrou o interesse legítimo, deixando de
fazer parte da alínea a) do artigo 55º/1. Carlos Cadilha explica esta exclusão
com base na inutilidade do requisito, uma vez que o interesse legítimo funde-se
com o interesse legalmente protegido, sendo somente uma condição de procedência
da acção.
Como já antes foi dito, a noção
de interesse reporta-se a um interesse
de facto e não a um interesse jurídico o que, em última análise, torna o
conceito da legitimidade muito mais amplo.
Quanto ao interesse directo e pessoal, é possível recorrer às definições avançadas por Mário
Aroso de Almeida[10].
- A pessoalidade do interesse
Desta feita, quanto ao carácter pessoal do interesse, explica o autor
que para existir legitimidade, será necessário que com pedido de impugnação o
autor reivindique para si próprio uma utilidade pessoal, determinando que o
efeito da impugnação do acto se repercuta na sua esfera jurídica. É de
salientar que Mário Aroso de Almeida considera o requisito da pessoalidade como
o único critério que realmente importa para aferir sobre a legitimidade
processual.
- O carácter directo e imediato do interesse
Mário Aroso de Almeida define o
carácter directo do interesse na medida em que do pedido de impugnação decorre
um interesse actual, efectivo e imediato em pedir a anulação/nulidade do acto.
Trata-se, portanto, “de saber se o impugnante se encontra numa situação de
efectiva lesão que justifique a utilização do meio impugnatório”[11].
Tem, então, legitimidade directa para impugnar, aquele que possui um interesse
imediato (por oposição a interesse eventual ou hipotético) em obter da
impugnação de um acto. Mário Aroso de Almeida considera que o interesse directo
não é um pressuposto de legitimidade processual, mas pressuposto de interesse em agir.
IV
– Considerações finais – a amplitude do artigo 55.º
O artigo 55.º/1-a) (e demais
alíneas) tem vestígios objectivistas, já que basta a mera alegação da
titularidade do interesse para se ser parte legítima. Tal alarga
consideravelmente o número de casos que podem ser aqui tutelados.
Para além disso, face à regra
residual do artigo 9º/1, o artigo 55º/1-a) amplia os casos de legitimidade dos
interessados, permitindo também aqui alargar o âmbito de aplicação a uma maior
variedade de situações lesivas.
Também contribui para uma tutela
mais ampla a defesa de um interesse predominantemente de facto e não somente um interesse jurídico, do artigo 55.º/1-a).
Por fim, é de salientar a
importância do artigo 55º/1-a) à luz da legitimidade activa para a impugnação
de actos lesivos da Administração, que, caso não existisse, deixaria de fora da
sua previsão muitas situações potencialmente tuteláveis.
Como resulta óbvio, esta é uma abordagem
singela a um tema que deixa ainda muito espaço para mais considerações.
Rafaela Vieira dos Santos - n.º 14940
[1] VASCO
PEREIRA DA SILVA, «O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise»,
Almedina, 2.ª Edição actualizada, 2009, página 241.
[2] Vasco
Pereira da Silva, «O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise»,
Almedina, 2.ª Edição actualizada, 2009, página 20.
[3] MÁRIO AROSO DE ALMEIDA, “Manual de Processo
Administrativo”, Almedina, reimpressão, 2013, página 221.
[4] MÁRIO
AROSO DE ALMEIDA, “Manual de Processo Administrativo”, Almedina, reimpressão,
2013, página 222.
[5] CARLOS CADILHA, “Legitimidade Processual”, Cadernos de Justiça Administrativa, n.º 34, 2002, página 18
[6] VASCO
PEREIRA DA SILVA, «O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise»,
Almedina, 2.ª Edição actualizada, 2009, páginas 370 e 371.
[7] VASCO
PEREIRA DA SILVA, «O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise»,
Almedina, 2.ª Edição actualizada, 2009, página 261.
[8] Conferir
nota de rodapé n.º 37, página 261, de VASCO PEREIRA DA SILVA, «O Contencioso
Administrativo no Divã da Psicanálise».
[9] MARCELLO
CAETANO, “O
interesse como Condição de Legitimidade no Recurso Directo de Anulação”
[10] MÁRIO
AROSO DE ALMEIDA, “Manual de Processo Administrativo”, Almedina, reimpressão,
2013, página 235.
[11] MÁRIO
AROSO DE ALMEIDA, “Manual de Processo Administrativo”, Almedina, reimpressão,
2013, página 235
Sem comentários:
Enviar um comentário