I.
Preliminares
Entre
os pressupostos relativos às partes, a legitimidade é aquela que é regulada em
termos específicos pelo Código de Processo nos Tribunais Administrativos
(CPTA). Depois de um breve enquadramento, irei-me debruçar mais detalhadamente
sobre a legitimidade activa para defesa de interesses difusos.
A
legitimidade processual nasce em função da relação que se estabelece entre as
partes e uma concreta ação. Ao contrário da personalidade e da capacidade
judiciária, o pressuposto da legitimidade não se reconduz abstratamente à
pessoa do autor ou do demandado. De modo que, possui legitimidade ativa quem alegue a titularidade de uma situação
cuja conexão com o objecto da ação proposta o apresente como autor. Por sua
vez, possui legitimidade passiva quem deva ser demandado na ação com o objecto configurado pelo autor (v. artigo
9.º e artigo 10.º do CPTA).
II.
Cláusula
geral do artigo 9.º, n.º 2 do CPTA
Segue-se
a análise do conteúdo da cláusula geral do artigo 9.º, n.º 2 do CPTA, atinente
à legitimidade ativa para defesa de interesses difusos:
“Independentemente
de ter interesse pessoal na demanda, qualquer pessoa, bem como as associações e
fundações defensoras dos interesses em causa, as autarquias locais e o Ministério
Público têm legitimidade para propor e intervir, nos termos previstos na lei, em
processos principais e cautelares destinados à defesa de valores e bens constitucionalmente
protegidos, como a saúde pública, o ambiente, o urbanismo, o ordenamento do
território, a qualidade de vida, o património cultural e os bens do Estado, das
Regiões Autónomas e das autarquias locais”.
O artigo em análise consagra um fenómeno
de extensão da legitimidade, ou seja
alarga a legitimidade processual “independentemente de ter interesse pessoal na
demanda”. Isto é, para a defesa de interesses difusos não se exige que a
utilidade que o interessado pretenda obter com determinada ação seja uma
utilidade pessoal. Não é preciso o autor ser o titular do interesse em nome do
qual se move o processo. Daí o seu cariz “difuso”, tratando-se da tutela de
bens coletivos, de bens jurídicos insusceptíveis de apropriação individual, em
contraposição com os interesses individuais homogéneos, inspirados na class action do sistema jurídico de Common Law.
Quais são os casos previstos em que há
uma legitimidade para defesa de interesses de índole difusos? São casos que pressupõem
a defesa de valores e bens constitucionalmente protegidos que o artigo indica a
mero título exemplificativo como a defesa da saúde pública, o ambiente, o
urbanismo, o ordenamento do território, a qualidade de vida, o património
cultural e os bens do Estado, das Regiões Autónomas e das autarquias locais.
Podemos dizer, de forma lapidar, que se trata da defesa de valores de vulto e
não de quaisquer uns.
III.
A
ação popular
O preceito em análise tem
primordialmente em vista o exercício, em sede do contencioso administrativo,
por parte dos cidadãos, do direito de
ação popular. Os poderes de propositura previstos no artigo 9.º, n.º 2
processam-se “nos termos da lei”, remetendo para a Lei n.º 83/95, de 31 de
Agosto (Direito de participação procedimental e de ação popular).
A formulação constitucional do direito
de ação popular encontra-se no artigo 52.º, que trouxe alguns problemas,
designadamente a confusão entre a tutela objectiva da legalidade para a defesa
do interesse público e a tutela subjetiva para a defesa de direitos ou
interesses próprios. A Lei da Ação Popular baralhou ainda mais a distinção a
traçar entre tutela objectiva e a proteção subjetiva, pois integra no direito
de ação popular a ação para a defesa de interesses protegidos por lei nos
diversos domínios contidos no artigo 1.º, n.º 2 do diploma em análise. Esta
constitui antes uma modalidade de ação jurídico-subjetiva.
Como resolver tal problema de
indistinção entre a tutela objectiva e a tutela subjetiva? Ora, o professor
VASCO PEREIRA DA SILVA assevera que a ação popular é um instrumento de garantia
da legalidade e do interesse público, através do alargamento da legitimidade, sendo algo que acresce à tutela
subjetiva. Propõe assim uma interpretação corretiva da previsão legal do artigo
1.º da Lei da Ação Popular, distinguindo a ação para a defesa de interesses
próprios da ação popular.
De acordo com os artigos 2.º e 3.º do
diploma, têm legitimidade ativa para a defesa de interesses difusos:
(a)
Todos os “cidadãos no gozo dos seus direitos
civis e políticos”;
(b)
As associações e fundações defensoras
dos interesses em causa, como a saúde pública, o ambiente, a qualidade de vida,
a proteção do consumo de bens e serviços, o património cultural e o domínio
público. Contudo, têm que preencher os requisitos enunciados no artigo 3.º:
possuir personalidade jurídica; incluírem
expressamente nas suas atribuições ou nos seus objectivos estatutários a defesa
dos interesses em causa no tipo de acção de que se trate; não exercerem
qualquer tipo de actividade profissional concorrente com empresas ou
profissionais liberais.
(c)
As
autarquias locais “em relação aos interesses de que sejam titulares residentes
na área da respectiva circunscrição”.
Observamos que a Lei n.º 83/95, de 31 de
Agosto é condicente com o artigo 9.º, n.º 2 do CPTA quanto às entidades
possuidoras de legitimidade ativa para a defesa dos chamados interesses
difusos. Todavia, o artigo 9.º, n.º 2 ainda confere legitimidade ativa ao
Ministério Público para propor ações populares, para além de representar o
Estado (v. artigo 11.º, n.º 2 do CPTA) e de puder ser autor público (v. artigo
55.º, n.º 1, alínea b)).
Em relação aos cidadãos, não se exige a
existência de um elemento de conexão individual para assegurar o exercício do
direito de ação popular. Recorde-se o que foi dito acerca da falta de necessidade de
haver um interesse pessoal na demanda.
Quanto às associações e fundações
importa tecer algumas considerações. De acordo com o artigo 3.º, n.º 2 da Lei
n.º 83/95, a legitimidade activa destas entidades abrange os bens ou interesses
cuja defesa se inclua expressamente
no âmbito das suas atribuições ou dos seus objectivos estatutários. Desta
ilação decorrem dois princípios:
1)
Princípio de especialidade: o direito de
ação encontra-se circunscrito à defesa de determinados interesses, como o
ambiente, o património cultural, etc.
2)
Princípio de territorialidade: o direito
de ação encontra-se balizado de acordo com a respectiva incidência geográfica.
Importa também salientar que a Lei n.º
83/95 estabelece um regime processual próprio, devido às especificidades que as
circunstâncias dos processos intentados apresentam. Tais adaptações ao modelo
de tramitação normal constam nos artigos 13.º e seguintes.
Tendo em consideração as soluções
especiais no âmbito do regime processual instituído pela Lei n.º 83/95,
pergunta-se: a ação popular é uma forma de processo autónoma? Surgem nesta sede
divergências doutrinárias. Para o professor VIEIRA DE ANDRADE, a ação popular
está incluída no elenco das formas de processo principal, ou seja, considera
que seja em si mesma uma forma processual. Para o professor AROSO DE ALMEIDA,
“a ação popular não é, em si mesma, uma forma de processo”. Consequentemente, a
ação popular pode revestir qualquer das formas previstas no CPTA: a ação administrativa
especial e a ação administrativa comum.
Para além de se aplicar as regras gerais
próprias de cada forma processual, aplicar-se-á também as regras especiais que
a Lei n.º 83/95 estabelece nos seus artigos 13.º e seguintes, referindo-se
apenas a alguns aspectos da tramitação processual, como nos domínios da
admissão da petição inicial (artigo 13.º), da representação processual (artigo
14.º), da citação dos titulares dos interesses em causa (artigo 15.º), da
instrução (artigo 17.º), da eficácia dos recursos jurisdicionais (artigo 18.º)
e, por fim, dos efeitos do caso julgado (artigo 19.º).
IV.
Outra
forma de ação popular
A ação popular analisada não é a única
forma de ação popular admitida no contencioso administrativo, não é mais do que
uma das formas. O artigo 55.º, n.º 2 do CPTA consagra a chamada ação popular local ou autárquica. Trata-se de uma ação popular
corretiva, fiscalizadora, levada avante por qualquer eleitor, no gozo dos seus
direitos civis e políticos.
Rafael Felizardo dos Santos, n.º 22083
Bibliografia:
·
Almeida,
Mário Aroso de - “Manual de Processo Administrativo”, Almedina, 2013;
·
Andrade,
José Carlos Vieira – A Justiça Administrativa (Lições), Almedina, 2012, 12ª
edição;
·
Silva,
Vasco Pereira da – “Ventos de mudança no contencioso administrativo”, Coimbra,
2000.
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