sábado, 25 de outubro de 2014

Legitimidade ativa para a defesa de interesses difusos; a ação popular

I.      Preliminares
Entre os pressupostos relativos às partes, a legitimidade é aquela que é regulada em termos específicos pelo Código de Processo nos Tribunais Administrativos (CPTA). Depois de um breve enquadramento, irei-me debruçar mais detalhadamente sobre a legitimidade activa para defesa de interesses difusos.
A legitimidade processual nasce em função da relação que se estabelece entre as partes e uma concreta ação. Ao contrário da personalidade e da capacidade judiciária, o pressuposto da legitimidade não se reconduz abstratamente à pessoa do autor ou do demandado. De modo que, possui legitimidade ativa quem alegue a titularidade de uma situação cuja conexão com o objecto da ação proposta o apresente como autor. Por sua vez, possui legitimidade passiva quem deva ser demandado na ação com o objecto configurado pelo autor (v. artigo 9.º e artigo 10.º do CPTA).

II.   Cláusula geral do artigo 9.º, n.º 2 do CPTA
Segue-se a análise do conteúdo da cláusula geral do artigo 9.º, n.º 2 do CPTA, atinente à legitimidade ativa para defesa de interesses difusos:
“Independentemente de ter interesse pessoal na demanda, qualquer pessoa, bem como as associações e fundações defensoras dos interesses em causa, as autarquias locais e o Ministério Público têm legitimidade para propor e intervir, nos termos previstos na lei, em processos principais e cautelares destinados à defesa de valores e bens constitucionalmente protegidos, como a saúde pública, o ambiente, o urbanismo, o ordenamento do território, a qualidade de vida, o património cultural e os bens do Estado, das Regiões Autónomas e das autarquias locais”.
O artigo em análise consagra um fenómeno de extensão da legitimidade, ou seja alarga a legitimidade processual “independentemente de ter interesse pessoal na demanda”. Isto é, para a defesa de interesses difusos não se exige que a utilidade que o interessado pretenda obter com determinada ação seja uma utilidade pessoal. Não é preciso o autor ser o titular do interesse em nome do qual se move o processo. Daí o seu cariz “difuso”, tratando-se da tutela de bens coletivos, de bens jurídicos insusceptíveis de apropriação individual, em contraposição com os interesses individuais homogéneos, inspirados na class action do sistema jurídico de Common Law.
Quais são os casos previstos em que há uma legitimidade para defesa de interesses de índole difusos? São casos que pressupõem a defesa de valores e bens constitucionalmente protegidos que o artigo indica a mero título exemplificativo como a defesa da saúde pública, o ambiente, o urbanismo, o ordenamento do território, a qualidade de vida, o património cultural e os bens do Estado, das Regiões Autónomas e das autarquias locais. Podemos dizer, de forma lapidar, que se trata da defesa de valores de vulto e não de quaisquer uns.

III.                        A ação popular
O preceito em análise tem primordialmente em vista o exercício, em sede do contencioso administrativo, por parte dos cidadãos, do direito de ação popular. Os poderes de propositura previstos no artigo 9.º, n.º 2 processam-se “nos termos da lei”, remetendo para a Lei n.º 83/95, de 31 de Agosto (Direito de participação procedimental e de ação popular).
A formulação constitucional do direito de ação popular encontra-se no artigo 52.º, que trouxe alguns problemas, designadamente a confusão entre a tutela objectiva da legalidade para a defesa do interesse público e a tutela subjetiva para a defesa de direitos ou interesses próprios. A Lei da Ação Popular baralhou ainda mais a distinção a traçar entre tutela objectiva e a proteção subjetiva, pois integra no direito de ação popular a ação para a defesa de interesses protegidos por lei nos diversos domínios contidos no artigo 1.º, n.º 2 do diploma em análise. Esta constitui antes uma modalidade de ação jurídico-subjetiva. 
Como resolver tal problema de indistinção entre a tutela objectiva e a tutela subjetiva? Ora, o professor VASCO PEREIRA DA SILVA assevera que a ação popular é um instrumento de garantia da legalidade e do interesse público, através do alargamento da legitimidade, sendo algo que acresce à tutela subjetiva. Propõe assim uma interpretação corretiva da previsão legal do artigo 1.º da Lei da Ação Popular, distinguindo a ação para a defesa de interesses próprios da ação popular.      
De acordo com os artigos 2.º e 3.º do diploma, têm legitimidade ativa para a defesa de interesses difusos:
(a)               Todos os “cidadãos no gozo dos seus direitos civis e políticos”;
(b)              As associações e fundações defensoras dos interesses em causa, como a saúde pública, o ambiente, a qualidade de vida, a proteção do consumo de bens e serviços, o património cultural e o domínio público. Contudo, têm que preencher os requisitos enunciados no artigo 3.º: possuir personalidade jurídica; incluírem expressamente nas suas atribuições ou nos seus objectivos estatutários a defesa dos interesses em causa no tipo de acção de que se trate; não exercerem qualquer tipo de actividade profissional concorrente com empresas ou profissionais liberais.
(c)               As autarquias locais “em relação aos interesses de que sejam titulares residentes na área da respectiva circunscrição”.
Observamos que a Lei n.º 83/95, de 31 de Agosto é condicente com o artigo 9.º, n.º 2 do CPTA quanto às entidades possuidoras de legitimidade ativa para a defesa dos chamados interesses difusos. Todavia, o artigo 9.º, n.º 2 ainda confere legitimidade ativa ao Ministério Público para propor ações populares, para além de representar o Estado (v. artigo 11.º, n.º 2 do CPTA) e de puder ser autor público (v. artigo 55.º, n.º 1, alínea b)).
Em relação aos cidadãos, não se exige a existência de um elemento de conexão individual para assegurar o exercício do direito de ação popular. Recorde-se o que foi dito acerca da falta de necessidade de haver um interesse pessoal na demanda.
Quanto às associações e fundações importa tecer algumas considerações. De acordo com o artigo 3.º, n.º 2 da Lei n.º 83/95, a legitimidade activa destas entidades abrange os bens ou interesses cuja defesa se inclua expressamente no âmbito das suas atribuições ou dos seus objectivos estatutários. Desta ilação decorrem dois princípios:
1)                 Princípio de especialidade: o direito de ação encontra-se circunscrito à defesa de determinados interesses, como o ambiente, o património cultural, etc.
2)                 Princípio de territorialidade: o direito de ação encontra-se balizado de acordo com a respectiva incidência geográfica.
Importa também salientar que a Lei n.º 83/95 estabelece um regime processual próprio, devido às especificidades que as circunstâncias dos processos intentados apresentam. Tais adaptações ao modelo de tramitação normal constam nos artigos 13.º e seguintes.
Tendo em consideração as soluções especiais no âmbito do regime processual instituído pela Lei n.º 83/95, pergunta-se: a ação popular é uma forma de processo autónoma? Surgem nesta sede divergências doutrinárias. Para o professor VIEIRA DE ANDRADE, a ação popular está incluída no elenco das formas de processo principal, ou seja, considera que seja em si mesma uma forma processual. Para o professor AROSO DE ALMEIDA, “a ação popular não é, em si mesma, uma forma de processo”. Consequentemente, a ação popular pode revestir qualquer das formas previstas no CPTA: a ação administrativa especial e a ação administrativa comum.
Para além de se aplicar as regras gerais próprias de cada forma processual, aplicar-se-á também as regras especiais que a Lei n.º 83/95 estabelece nos seus artigos 13.º e seguintes, referindo-se apenas a alguns aspectos da tramitação processual, como nos domínios da admissão da petição inicial (artigo 13.º), da representação processual (artigo 14.º), da citação dos titulares dos interesses em causa (artigo 15.º), da instrução (artigo 17.º), da eficácia dos recursos jurisdicionais (artigo 18.º) e, por fim, dos efeitos do caso julgado (artigo 19.º).

IV.                        Outra forma de ação popular
A ação popular analisada não é a única forma de ação popular admitida no contencioso administrativo, não é mais do que uma das formas. O artigo 55.º, n.º 2 do CPTA consagra a chamada ação popular local ou autárquica. Trata-se de uma ação popular corretiva, fiscalizadora, levada avante por qualquer eleitor, no gozo dos seus direitos civis e políticos. 

Rafael Felizardo dos Santos, n.º 22083



Bibliografia:
·                   Almeida, Mário Aroso de - “Manual de Processo Administrativo”, Almedina, 2013;
·                   Andrade, José Carlos Vieira – A Justiça Administrativa (Lições), Almedina, 2012, 12ª edição;
·                   Silva, Vasco Pereira da – “Ventos de mudança no contencioso administrativo”, Coimbra, 2000.

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