quarta-feira, 29 de outubro de 2014

A(cautela) –providenciando pela utilidade da pronúncia definitiva

1. Introdução

O CPTA estabelece o regime aplicável aos processos cautelares no Título V, que correspondem aos artigos 112º a 134º.

Num processo cautelar[1], o autor num processo declarativo, já intentado ou a intentar, pede ao tribunal a adopção de uma ou mais providências, destinadas a impedir que, durante a pendência do processo declarativo, se constitua uma situação irreversível ou se produzam danos de tal modo gravosos que ponham em perigo, no todo ou em parte, a utilidade da decisão que ele pretende obter no processo. Podemos retirar do artigo 112º\1, do CPTA, que o processo cautelar dirige-se, assim, à obtenção de providências adequadas a assegurar a utilidade da sentença a proferir num processo declarativo. Posto isto, podemos afirmar que os processos cautelares não possuem qualquer autonomia, funcionando como um momento preliminar, cujo efeito útil visam assegurar e, ao serviço do qual se encontram.

2. Características da providência cautelar

Pode dizer-se que os processos cautelares visam especificamente garantir o tempo necessário para fazer Justiça. Mesmo quando não há atrasos há um tempo para julgar bem. E é precisamente para esses casos, para aqueles processos em que o tempo tem de cumprir-se para que se possa julgar bem, que é necessário assegurar a utilidade da sentença que, a final, venha a ser proferida. Em virtude dessa função de prevenção contra a demora, temos então como características típicas das providências cautelares a I) instrumentalidade, II) provisoriedade e III) sumariedade.

I)          Instrumentalidade (hipotética)

Podemos afirmar que as providências cautelares visarão apenas assegurar a efectividade da acção administrativa principal, impedindo que a tutela dos direitos dos particulares venha a ser uma tutela meramente ilusória.

Segundo o professor MIGUEL PRATA ROQUE, de cuja posição aderimos, podemos afirmar que estamos perante uma instrumentalidade hipotética, visto que esta só será instrumental, face à acção principal, caso o requerente venha a obter uma decisão favorável. Isto significa que o juiz não deverá limitar a concessão da providência cautelar às situações em que esteja fortemente convicto de que a acção principal virá a ser procedente.

Podemos dizer, mais um vez seguindo este autor, que a própria acção administrativa principal é instrumental face ao direito de acesso à Justiça Administrativa, pelo que é correcto afirmar-se que a providência cautelar é um instrumento de outro instrumento.

Do artigo 123º\1 do CPTA podemos retirar a instrumentalidade das providências cautelares: seja pela sua caducidade sempre que não seja instaurada a correspondente acção administrativa principal, sempre que esta esteja parada por responsabilidade do requerente ou sempre que a acção administrativa principal se extinga, seja por decisão desfavorável ao requerente, seja por extinção da instância, seja ainda por execução e sentença favorável do requerente.

II)        Provisoriedade  

As providências cautelares são provisórias, visto que apenas se destinam a regular uma situação jurídica até ao proferimento de uma decisão de fundo sobre a questão controvertida. A reforma do contencioso administrativo reconheceu quer a existência de providências de conteúdo negativo ou conservatórias (120º\1, al. b) CPTA), quer a existência de providências cautelares de conteúdo positivo ou antecipatórias (120º\1, al. c) CPTA).

O carácter provisório da providência cautelar é assegurado pela possibilidade de revogação da situação provisória, sendo inclusivamente admissível a concessão de providências sob condição resolutiva ou reserva de revogação (122º\2 CPTA).

Do artigo 124º CPTA resulta igualmente o carácter provisório das providências cautelares: transparece a possibilidade de o tribunal retirar, alterar ou substituir, na pendência do processo principal, a sua decisão de adoptar ou recusar a adopção de providências cautelares se tiver ocorrido uma alteração relevante das circunstâncias inicialmente existentes (nº 1), designadamente por ter sido proferida no processo principal, decisão de improcedência de que tenha sido interposto recurso com efeito suspensivo (nº3).

A característica provisória da providência cautelar significa que o que esta não pode fazer é antecipar, a título definitivo, a constituição de situações que só a decisão a proferir no processo principal pode determinar a título definitivo, em tais condições que essa situação já não possa ser alterada se, no processo principal, o juiz chegar a conclusões que não consintam a sua manutenção[2].

III)       Sumaridade

Com o intuito de evitar a lesão dos direitos dos Administrados, a tutela cautelar administrativa é caracterizada por uma tramitação simplificada e célere. Justamente por essa razão as providências cautelares beneficiam do regime característico dos processos urgentes (cfr. 36º\1, al. e) e 113º\2 CPTA).

A tutela cautelar só é efectiva se os tribunais forem capazes de a proporcionar em tempo útil; e essa capacidade será tanto menor quanto maior for o tempo consumido na indagação de questões que, em sede cautelar, não devem ser objecto de uma análise aprofundada, mas apenas apreciadas em modo superficial.

3. Requisitos da providência cautelar

I)          Perigosidade

O conceito de providência cautelar pressupõe a existência de um perigo de inutilidade, resultante do decurso do tempo e, especialmente no direito administrativo, da adopção ou abstenção de uma pronúncia. O artigo 120º do CPTA estabelece este requisito ao exigir, para a adopção da providência cautelar, que “ haja fundado receio da constituição de uma situação de facto consumado ou da produção de prejuízos de difícil reparação para os interesses que o requerente vise assegurar no processo principal”.

O juiz deve então fazer um juízo de prognose, colocando-se na situação futura de uma hipotética sentença de provimento, para concluir se há, ou não, razões para recear que tal sentença venha a ser inútil. Neste juízo, o fundado receio há-de corresponder a uma prova, por regra a cargo do requerente, de que tais consequências são suficientemente prováveis para que se possa considerar “justificada” a cautela que é solicitada. Note-se que aqui estamos diante do carácter tendencialmente objectivo da perigosidade, que se refere à utilidade do processo e não necessariamente aos direitos do requerente, podendo tratar-se da defesa de interesses públicos, comunitários ou de legalidade (112º CPTA).

II)             Juridicidade material (critério de aparência do bom direito)

Foi através deste requisito que se eliminou um dos corolários mais perversos do dogma autoritário da “presunção de legalidade do acto adminstrativo”, passando a reconhecer-se e conferir relevo ao fumus boni iuris.

A atribuição das providências cautelares depende de um juízo, ainda que superficial, por parte do juiz cautelar, sobre o bem fundado da pretensão que o requerente faz valer no processo declarativo. Deve então o juiz avaliar o grau de probabilidade de êxito do requerente no processo declarativo. Não nos devemos esquecer, no entanto, que esta avaliação deve conservar-se dentro do limites que são próprios desta tutela, para assim não se comprometer nem antecipar o juízo de fundo que caberá formular no processo principal.

Diga-se também que o CPTA atribui uma relevância diferencial a este critério, consoante esteja em causa a adopção de uma providência conservatória ou de uma providência antecipatória. Está aqui em causa, essencialmente, uma manutenção ou não de “status quo”.

Quando se está perante a atribuição de providência conservatória, o artigo 120º\1,b), estabelece que, uma vez demonstrado o periculum in mora, a providência será concedida a menos que “seja manifesta a falta de fundamento da pretensão formulada ou a formular ou a existência de circunstâncias que obstem ao conhecimento do mérito”.

Quando estamos perante uma concessão de providência antecipatória, o artigo 120º\1,c) estabelece que, ainda que demonstrado o periculum in mora, a providência só será concedida quando seja de admitir “que a pretensão formulada ou a formular pode vir a ser julgada procedente”.


III)           Proporcionalidade

Trata-se de uma característica que implica a ponderação de todos os interesses em jogo, de forma a fazer depender a própria decisão sobre a concessão ou recusa da providência cautelar dos interesses preponderantes no caso concreto, sempre que não seja evidente a procedência ou improcedência da pretensão formulada.
O que está aqui em causa é justamente a possibilidade de, embora se verifiquem os dois requisitos fundamentais – periculum in mora; fumus boni iuris -, o juiz dever recusar a concessão da providência cautelar, quando o prejuízo resultante para o requerido se mostrar superior ao prejuízo que se pretende evitar com a providência. São avaliados os resultados de cada uma das alternativas, e não se concede a providência, mesmo que se verifiquem os requisitos, quando os prejuízos da concessão sejam superiores aos prejuízos que resultariam da não concessão.

Bibliografia:

·         ALMEIDA, Mário Aroso de - “Manual de Processo Administrativo”, Almedina, reimpressão, 2013;

·         ANDRADE, José Carlos Vieira – “A Justiça Administrativa (Lições) ”, Almedina, 2012, 12ª edição;

·         ROQUE, Miguel Prata – “Reflexões sobre a Reforma da Tutela Cautelar Administrativa”, Almedina, 2005;




                                                                                     Diogo dos Santos Amaral - nº22162
                                                                                            



[1] Cabe distinguir as expressões “providência cautelar” e “procedimento cautelar” ou “processo cautelar”. As primeiras reportam-se ao pedido concretamente formulado, enquanto as segundas referem-se à tramitação adoptada para decisão sobre o respectivo pedido (aqui numa vertente adjectiva e processual).”

[2] Se o interessado pretender a obtenção de uma licença para demolir um imóvel ou autorização para realizar uma sessão de fogos-de-artifício, o tribunal não pode impor, como providência cautelar que a licença ou autorização sejam concedidos.

Sem comentários:

Enviar um comentário