sexta-feira, 31 de outubro de 2014

Das Providências Cautelares

Pedro Reis Santos, nº 22158

Das Providências Cautelares

I. Evolução Durante a Vigência da Actual Constituição
            A versão originária da Constituição da República Portuguesa de 1976 (CRP) consagrava o direito de acesso aos tribunais, sendo que na opinião de MIGUEL PRATA ROQUE, já seria possível extrair o direito à tutela cautelar do nº 1 do seu artigo 20º[1].
            Em 1982 passou a ser consagrada a possibilidade de recurso dos actos administrativos, sendo que o legislador ordinário passou a admitir o recurso à tutela cautelar, mas limitada à suspensão de eficácia dos actos administrativos[2]. Para além disto, este meio era previsto, atendido e aplicado em termos muito limitados. Quanto ao objecto, só valia relativamente a actos administrativos positivos; quanto conteúdo, apenas se referia a efeitos conservatórios e quanto aos critérios de concessão, exigia-se a irreparabilidade do dano decorrente da execução do acto e que o decretar da providência cautelar não prejudicasse gravemente o interesse público[3].
            Apesar disso, a jurisprudência, em alguns casos, veio a admitir a suspensão de actos negativos, através de uma ponderação de interesses. Além disso, houve algum reconhecimento da admissibilidade da concessão de providências cautelares não especificadas pelos tribunais administrativos, através de uma aplicação subsidiária do Código de Processo Civil, por força do artigo 1º da Lei de Processo nos Tribunais Administrativos, e em obediência ao princípio constitucional da tutela jurisdicional efectiva[4].
            Com a revisão constitucional de 1997, passou a existir uma consagração expressa do direito à concessão de providências cautelares administrativas, referindo-se o nº 4 do artigo 268º a “medidas cautelares adequadas” [5].
            A Reforma do Contencioso Administrativo, com a entrada em vigor da Lei 15/2002, de 22 de Fevereiro, veio ampliar o âmbito das providências cautelares, para os termos em que as conhecemos hoje. Assim, encontramos a consagração da tutela cautelar, à luz do princípio da tutela jurisdicional efectiva, no artigo 2º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (CPTA) [6].
            Como afirma MANUEL FERNANDO DOS SANTOS SERRA, “… a importância das providências cautelares […] consiste, precisamente, em virem pela primeira vez no âmbito do contencioso administrativo, garantir o tempo indispensável à realização da verdadeira Justiça”. [7]

II. Cláusula Aberta de Providências Cautelares
Como se retira do artigo 112º do CPTA, o legislador consagrou uma cláusula aberta de providências cautelares, admitindo providências de quaisquer tipos, desde que sejam adequadas a assegurar a utilidade da sentença a proferir num determinado processo.
Desta forma, podem ser proferidas providências cautelares não especificadas, não detendo um regime específico, tipificado no CPTA, e que podem enquadrar-se, ou não, no elenco exemplificativo apresentado pelo legislador no nº2 do artigo anteriormente referido. Além disso, destaca-se que providências cautelares se podem referir a todas as formas de actividade administrativa, seja actos, contratos ou normas.
Ainda assim, nos artigos 128º a 134º do CPTA são apresentadas providências cautelares tipificadas, ou seja, providências com um regime típico previsto[8].

 III. Critérios
            O artigo 120º do CPTA estabelece os critérios de que depende a atribuição de providências cautelares. Para além disso, existem algumas especificidades quanto a algumas providências cautelares em concreto.

a)      Fumus bonis iuris
            O primeiro critério a destacar é o do fumus boni iuris, ou seja, a aparência de um bom direito. Assim, o juiz, para atribuir uma providência cautelar, deve ponderar a probabilidade de procedência do processo principal.
            O fumus boni iuris afere-se pela probabilidade de existência do direito ameaçado ou pela apreciação sumária e provisória das probabilidades de êxito do pedido do requerente na acção principal.
            Esta ponderação deve ser realizada através de um juízo de verosimilhança, com uma verificação de indícios suficientes da existência do direito ou interesse invocado. Assim, o juiz averigua se a pretensão formulada ou a formular no processo principal apresenta um considerável grau de probabilidade de vir a ser considerada juridicamente relevante[9].  

b)      Periculum in Mora
            O segundo critério a destacar é do periculum in mora, ou seja, o perigo da demora processual. Previsto nas alíneas b) e c) do nº1 do artigo 120º do CPTA, o periculum in mora constitui o perigo de produção de danos específicos durante a pendência do processo principal, advindos do desenvolvimento lento e moroso do processo principal. Estes danos colocariam em causa a utilidade, total ou parcial, da adopção ou da abstenção de uma pronúncia administrativa.
            Existem dois tipos fundamentais de periculum in mora: o perigo de infrutuosidade e o perigo de retardamento. O primeiro ocorre quando se possam vir a verificar eventos que tornem impossível ou extremamente difícil a actuação concreta da futura sentença definitiva, devendo ser aplicadas providências cautelares conservatórias. Já o segundo ocorre pela simples duração do processo, independentemente de qualquer alteração das circunstâncias, em virtude da não satisfação do seu direito, devendo ser aplicadas providências cautelares antecipatórias[10].
            Assim, o juiz deve fazer um juízo de prognose para concluir se há, ou não, razões para recear que a sentença definitiva venha a ser inútil. Neste juízo, o fundado receio deverá ser demonstrado por uma prova, por regra a cargo do requerente, da qual se retiram suficientes probabilidades[11].

c)      Ponderação dos Interesses
            O nº 2 do artigo 120º do CPTA introduz o critério da ponderação dos interesses envolvidos, sendo colocados em pé de igualdade os interesses públicos e os interesses privados.
            Este critério implica que sejam tomados em consideração todos os interesses conexos com o litígio aquando da adopção de uma providência cautelar. A concessão de uma providência cautelar não deve resultar em prejuízos desproporcionados e inexigíveis a outros interesses igualmente merecedores de tutela.
            Assim, a ponderação de interesses implica um princípio da proporcionalidade na sua dimensão estrita de equilíbrio, devendo o juiz realizar um juízo de prognose, através da avaliação dos resultados de cada alternativa[12].
            Importa também destacar que as providências se devem limitar ao necessário para evitar as lesões dos interesses defendidos pelo requerente. Por isso, nos termos do nº3 do artigo 120º do CPTA, o tribunal tem um poder discricionário para, ouvidas as partes, decretar uma providência que não lhe tenha sido requerida, em cumulação ou em substituição daquela que foi[13].

III. Características
a)      Instrumentalidade
            A instrumentalidade é um dos traços distintivos e fundamentais da tutela cautelar. As providências cautelares visam assegurar a efectividade e a utilidade da acção administrativa principal.
            No entanto, trata-se de uma instrumentalidade hipotética, visto que só será instrumental, face à acção principal, caso o requerente obtenha uma decisão favorável, sendo a caducidade das providências cautelares estabelecida no artigo 123º do CPTA. Apesar desta instrumentalidade, o juiz pode antecipar o efeito que a decisão final venha a reconhecer, desde que seja a título meramente provisório[14].
Além disso, ISABEL FONSECA destaca que se trata de uma dupla instrumentalidade do processo cautelar, uma vez que todos os processos são instrumentais perante o direito material[15].

b)      Provisoriedade
            As providências cautelares também se caracterizam pela sua provisoriedade, uma vez que a sua eficácia e os seus efeitos se encontram limitados no tempo, subordinados à prolação de uma decisão definitiva no processo principal.
            Assim, as providências cautelares apenas se destinam a regular a situação controvertida até ao proferimento de uma decisão de fundo na acção principal, não se podendo substituir a esta e estando impedidas de adquirir efeitos de caso julgado. Desta forma, as providências cautelares garantem a integridade do objecto, mas não ditam a disciplina definitiva[16].

c)      Sumariedade
            As providências cautelares encontram-se sujeitas a uma tramitação simplificada e célere, tal como é característico dos processos urgentes. Podemos verificar o enquadramento das providências cautelares como processos urgentes na alínea e) do nº1 do artigo 36º do CPTA e no nº2 do artigo 113º do CPTA. Assim, o tribunal exerce uma summario cognitio, não aspirando a um juízo de certeza, nem a uma convicção absoluta[17].

IV. Limites da Tutela Cautelar
            Nos termos do artigo 3º do CPTA, os tribunais administrativos devem respeitar o princípio da separação de poderes, isto implica um respeito pelos poderes discricionários que competem à Administração, nomeadamente da sua margem de livre apreciação e de decisão.
            O juiz administrativo não se pode substituir à administração, nem ofender o núcleo essencial da autonomia desta. Sendo estes limites aos poderes concedidos ao juiz cautelar pelos artigos 114º a 118º do CPTA, poderes tais que levam a que MIGUEL PRATA ROQUE apelide o juiz cautelar de “super-juiz” [18].
            No entanto, ao juiz cabe zelar pelo cumprimento da lei, sendo admitido o poder de substituição quando se trate de actos administrativos estritamente vinculados, como se verifica no nº3 do artigo 109º do CPTA. Assim, o respeito pela autonomia da função administrativa não equivale a uma isenção do controlo judicial[19].

V. Projecto de Revisão do Código de Processo nos Tribunais Administrativos
            Do Projecto de Revisão do Código de Processo nos Tribunais Administrativos não se espera alterações de fundo relativamente às matérias abordadas.
            A consagração expressa da tutela cautelar mantêm-se no nº1 do artigo 2º e no nº3 do artigo 3º do Projecto. O legislador ordinário procede a um aumento do elenco exemplificativo de providências cautelares presente no nº1 do artigo 112º, sendo acrescentado o arresto, o embargo de obra nova e o arrolamento. Destaca-se também o acrescento de um nº4 ao artigo 113º do CPTA que admite a substituição ou ampliação do pedido, na pendência do processo cautelar, visando a possibilidade de concessão da providência cautelar mais adequada à situação existente.
            Por último, as alterações demonstram uma preocupação com o carácter urgente das providências cautelares, como se verifica pela introdução, no nº1 do artigo 116º, de um prazo máximo de quarenta e oito horas para o juiz proferir despacho liminar.



Bibliografia
ANDRADE, JOSÉ CARLOS VIEIRA DE, A Justiça Administrativa (Lições), 13ª edição, Coimbra, Almedina, 2014
FONSECA, ISABEL, “Os Processos Cautelares na Justiça Administrativa – Uma Parte da Categoria da Tutela Jurisdicional da Urgência” in Temas e Problemas de Processo Administrativo: Intervenções no Curso de Pós-Graduação Sobre o Processo Administrativo, e-book, 2ª edição, Lisboa, ICJP-FDUL, 2011, pp. 207-258
HENRIQUES, SOFIA, A Tutela Cautelar Não Especificada no Novo Contencioso Administrativo Português, Coimbra, Coimbra Editora
MARTINS, ANA GOUVEIA, A Tutela Cautelar no Contencioso Administrativo (Em Especial, nos Procedimentos de Formação dos Contratos, Lisboa, Coimbra Editora, 2005
ROQUE, MIGUEL PRATA, Reflexões Sobre a Reforma da Tutela Cautelar Administrativa, Lisboa, Almedina, 2005
SERRA, MANUEL FERNANDO DOS SANTOS, “Breve Apontamento Sobre as Providências Cautelares no Novo Contencioso Administrativo” in Estudos Jurídicos e Económicos em Homenagem ao Prof. Doutor António de Sousa Franco, Volume II, Lisboa, Coimbra Editora, 2006, pp.975-985




[1] Cfr. MIGUEL PRATA ROQUE, Reflexões Sobre a Reforma da Tutela Cautelar Administrativa, Lisboa, Almedina, 2005, pp. 26-30
[2] Ver PRATA ROQUE, Reflexões…, ob. cit., pp.24-25
[3] Ver JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADE, A Justiça Administrativa (Lições), 13ª edição, Coimbra, Almedina, 2014, pp. 305-306
[4]  Ver SOFIA HENRIQUES, A Tutela Cautelar Não Especificada no Novo Contencioso Administrativo Português, Coimbra, Coimbra Editora, pp. 27-28
[5] Ver PRATA ROQUE, Reflexões…, ob. cit., p. 23 e HENRIQUES, A Tutela…, ob. cit., p. 25
[6] Ver PRATA ROQUE, Reflexões…, ob. cit., pp. 26-30 e HENRIQUES, A Tutela…, ob. cit., p. 17
[7] Cfr. MANUEL FERNANDO DOS SANTOS SERRA, “Breve Apontamento Sobre as Providências Cautelares no Novo Contencioso Administrativo” in Estudos Jurídicos e Económicos em Homenagem ao Prof. Doutor António de Sousa Franco, Volume II, Lisboa, Coimbra Editora, 2006, p. 976
[8] Ver VIEIRA DE ANDRADE, A Justiça…, ob. cit., pp. 308-309, ISABEL FONSECA, “Os Processos Cautelares na Justiça Administrativa – Uma Parte da Categoria da Tutela Jurisdicional da Urgência” in Temas e Problemas de Processo Administrativo: Intervenções no Curso de Pós-Graduação Sobre o Processo Administrativo, 2ª edição, Lisboa, ICJP-FDUL, 2011, pp. 215-216 e HENRIQUES, A Tutela…, ob. cit., pp.19-21
[9] Ver PRATA ROQUE, Reflexões…, ob. cit., pp. 58-60, HENRIQUES, A Tutela…, ob. cit., pp. 80-91 e ANA GOUVEIA MARTINS, A Tutela Cautelar no Contencioso Administrativo (Em Especial, nos Procedimentos de Formação dos Contratos, Lisboa, Coimbra Editora, 2005, pp. 42-43
[10] Nos termos da alínea b) do nº1 do artigo 120º do CPTA, as providências de conteúdo negativo ou conservatórias mantêm inalterável a situação jurídica, mantendo o status quo. Nos termos da alínea c) do nº1 do mesmo artigo, as providências de conteúdo positivo ou antecipatórias ampliam a situação jurídica existente, proporcionando uma realização antecipada do direito material, alterando o status quo. Ver FONSECA, “Os Processos…”, ob. cit., p. 235 e PRATA ROQUE, Reflexões…, ob. cit.,pp. 47-50
[11] Ver VIEIRA DE ANDRADE, A Justiça…, ob. cit., pp. 310-311, PRATA ROQUE, Reflexões…, ob. cit., pp. 70-73, HENRIQUES, A Tutela…, ob. cit., pp. 82-83 e GOUVEIA MARTINS, A Tutela…, ob. cit., pp. 41-42
[12] Ver VIEIRA DE ANDRADE, A Justiça…, ob. cit., pp. 316-318, HENRIQUES, A Tutela…, ob. cit., p. 84 e GOUVEIA MARTINS, A Tutela…, ob. cit., pp. 43-44
[13] Ver VIEIRA DE ANDRADE, A Justiça…, ob. cit., pp. 319-320
[14] Ver PRATA ROQUE, Reflexões…, ob. cit., pp. 33-36 GOUVEIA MARTINS, A Tutela…, ob. cit., p.45 e HENRIQUES, A Tutela…, ob. cit., pp. 102-104
[15] Cfr. FONSECA, “Os Processos…”, ob. cit.,, p. 225
[16] Ver VIEIRA DE ANDRADE, A Justiça…, ob. cit., pp. 320-322, FONSECA, “Os Processos…”, ob. cit., p. 232, GOUVEIA MARTINS, A Tutela…, ob. cit., p. 48  e HENRIQUES, A Tutela…, ob. cit., pp. 106-111
[17] Ver GOUVEIA MARTINS, A Tutela…, ob. cit.,  pp. 50-52 e HENRIQUES, A Tutela…, ob. cit., p. 100
[18] Ver PRATA ROQUE, Reflexões…, ob. cit.,  pp. 84-87
[19] Ver GOUVEIA MARTINS, A Tutela…, ob. cit.,  p.403-409

Sem comentários:

Enviar um comentário