Da distinção entre direitos
subjectivos, interesses legítimos e interesses difusos
Esta
distinção remonta ao período do “trauma de infância”, usando a expressão do
Prof. Vasco Pereira da Silva, em que a Administração actuava numa lógica de
agressividade para impor a ordem pública, em nome do princípio da legalidade,
estabelecendo relações de poder com os particulares. Os particulares eram então
vistos como “súbditos” da Administração, não possuindo quaisquer direitos subjectivos,
mas um mero interesse à legalidade, semelhante ao da Administração. E com o
evoluir do contencioso administrativo, esta noção de interesse deu origem a uma
ideia de diversidade de posições jurídicas subjectivas no seio da
Administração. Esta distinção foi muito
difundida na ordem jurídica italiana, tendo uma enorme relevância prática, uma
vez que o âmbito de jurisdição administrativa apenas cobria as situações em que
estivesse presente um interesse legítimo do particular, ao passo que se estivesse um direito
subjectivo em causa eram competentes para dirimir o litígio os tribunais
judiciais (ou comuns, como resultava da ideia de especialidade do contencioso
administrativo face aos tribunais judiciais).
Em Portugal,
a distinção foi recebida por Marcello Caetano (seguida depois pela doutrina
maioritária, pela jurisprudência, e estando também consagrada na lei), apesar
de nunca ter tido a relevância prática do Direito italiano. Como se disse, a
distinção assenta na questão da natureza das situações jurídicas subjectivas.
Em Portugal, de acordo com a doutrina tradicional, as situações jurídicas subjectivas
podem ser divididas em duas modalidades: a dos direitos subjectivos e dos
interesses legítimos (ou legalmente protegidos).
De acordo com esta concepção, estamos
perante um direito subjectivo se existe um interesse próprio do particular
reconhecido de forma imediata e intencionalmente da norma e cuja protecção é
plena; um interesse legítimo se o interesse em causa é o interesse público,
tendo o particular apenas um interesse na legalidade das decisões que recaiam
sobre o seu interesse próprio, protegendo-o então de forma mitigada, mediata ou
reflexamente.
Utilizando o
exemplo referido por Freitas do Amaral, terá um direito subjectivo o
funcionário ao qual a lei estabelece que, ao fim de cinco anos de serviço, terá
direito a uma diuturnidade. O particular pode exigir o pagamento dessa
diuturnidade, e caso a Administração não cumpra a norma, o particular pode
intentar uma acção especial de condenação à prática do pagamento. Por outro
lado, num concurso para preenchimento de um lugar de professor catedrático, os
concorrentes apenas têm interesse legítimo relativamente à Administração,
porque o “interesse em ser nomeado” não está directamente protegido por lei, e
caso ocorra alguma ilegalidade, os particulares só podem remover os obstáculos
ilegais à satisfação do seu interesse (através de uma acção especial de impugnação ou anulação
do acto administrativo praticado). Ao invés dos dois primeiros casos, o
particular interessado no concurso não pode exigir ao tribunal que a Administração
o aceite para o cargo; apenas pode pedir a eliminação do acto ilegal, e tenta
uma nova oportunidade para a satisfação do seu interesse.
Ao lado das
correntes que defendem que a multiplicidade de situações jurídicas, existe uma
corrente, defendida pelo Professor Vasco Pereira da Silva e por Pedro Machete, que agrupa as situações jurídicas dos
particulares numa única categoria – a dos direitos subjectivos. Para esta
doutrina, todas as situações de vantagem dos particulares perante a
Administração são direitos subjectivos, “o indivíduo é titular de um direito
subjectivo em relação à Administração sempre que de uma norma jurídica que não
vise apenas a satisfação do interesse público, mas também a protecção dos
interesses dos particulares, resulte uma situação de vantagem objectiva, concedida de forma intencional ou, ainda,
quando dela resulte a concessão de um mero benefício de facto (...)” Contrariando
a tese anterior, o que está em causa não são posições de vantagem de natureza
diferente, mas direitos subjectivos de conteúdo diferentes, formas
diferentes de atribuir posições jurídicas substantivas. Por isso, todas se
reportariam à defesa das posições individuais dos particulares, e não sobre o
interesse público.
As
diferentes teorias não têm relevância prática, pois trata-se de uma questão
meramente dogmática e teórica. Analisando o mesmo caso prático, para os autores
que defendem a unidade das situações jurídicas subjectivas, os particulares em
causa não podem exigir outras pretensões aos tribunais administrativos, mas as mesmas com um fundamento diferente – o
do conteúdo do seu direito, prevista na lei. Enquanto que no caso das
diuturnidades, a Administração deve pagar ao particular a respectiva
contribuição, no segundo a Administração tem apenas o dever de cumprir todos os
requisitos legais, determinados para a protecção do interesse público e dos
interesses dos particulares. E isto porque a existência de diferentes deveres
origina direitos subjectivos de conteúdo diferentes. No segundo caso não é
correcto dizer que o interesse material não é plenamente protegido, porque o interesse
protegido pela norma não é o de ser professor catedrático, mas um interesse que
a Administração cumpra todos os deveres legais a que está vinculada. Há uma
contradição que resulta da definição de interesses legítimos como uma protecção
ocasional por uma norma.
Ao lado da
bipartição entre direitos subjectivos e interesses legítimos, a doutrina
tradicional formula ainda outra categoria de posições dos particulares: os interesses
difusos. Estes interesses reportam-se aos interesses que um grupo indeterminado
de pessoas tem sobre um bem público, insusceptível de divisão e apropriação individual.
Esta
distinção foi tão difundida no nosso país que em 1976 foi constitucionalizada. A
constituição preocupou-se com esta distinção quanto à legitimidade activa de
acesso aos tribunais. Refere de um modo geral que “A todos é assegurado o
acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses
legalmente protegidos(...)” e de um modo especial, no âmbito da
Administração, “É garantido aos administrados tutela jurisdicional efectiva dos seus direitos ou interesses legalmente protegidos(...)”.
Os interesses difusos não eram tutelados.
Deste modo, a revisão constitucional de 1989
consagrou o direito de acção popular aos particulares e associações para a
defesa dos seus interesses (acção
popular que o texto constitucional só previa para o direito de petição, pelo
que se pode falar de um alargamento de legitimidade para a defesa destes
interesses). A constituição dá como exemplo, interesses à saúde pública,
dos consumidores, qualidade de vida, ambiente e património cultural.
A distinção
entre a figura da acção popular e das acções administrativas caracteriza-se
pelo facto da primeira se dedicar à defesa objectiva da legalidade e do
interesse público, enquanto que a segunda consagra uma tutela subjectiva,
destinada à defesa de direitos ou interesses próprios dos particulares. Desta
forma, pela maneira como a doutrina tradicional configura os interesses difusos,
estes estão incluídos na menção “interesses” que o artigo em causa faz,
beneficiando então de uma tutela objectiva.
Por outras
palavras, se a posição lesada se tratar de um direito subjectivo ou de um
interesse legítimo, o particular tem à sua disposição as acções administrativas
necessárias à reconstituição da sua posição; por outro lado, se apenas for
lesado um interesse difuso, o particular apenas pode propor uma acção popular.
A este
entendimento vêm-se opor os Professores Vasco Pereira da Silva e Colaço Antunes,
que referem que quanto aos interesses difusos o particular tem uma posição de
vantagem que decorre do aproveitamento individual de um bem jurídico constitucionalmente protegido. Por outro lado, os direitos referidos pela disposição constitucional que consagra a acção popular são direitos fundamentais,
pois estão inseridos na Parte I da Constituição relativa aos direitos e deveres
fundamentais, que consagram poderes e deveres do Estado para a sua prossecução Desta
forma, para estes autores os supostos “interesses difusos” mais não são do que
direitos subjectivos, de acordo com a tese da natureza unitária das posições
jurídicas dos particulares. Atenta-se que a distinção entre estes autores e a
doutrina tradicional entre considerar o interesse difuso como um interesse
objectivo ou direito subjectivo resulta da diferente caracterização que os
autores fazem do interesse difuso.
Tomemos como
exemplo o direito do ambiente. Segundo a doutrina tradicional, este direito
concebe um aproveito colectivo de um bem público, insusceptível de apropriação
individual, pelo que não pode ser directamente defendido através da
legitimidade singular, mas sim através do mecanismo de acção popular.
De acordo
com o Professor Vasco Pereira da Silva, o que está em causa é a existência de
relações jurídicas que resulta da fruição individual do bem ambiente, que
contém direitos e deveres específicos. E como refere também o Professor Miguel
Teixeira de Sousa (apesar deste autor não seguir a tese da natureza unitária
das posições jurídicas subjectivas e atribuir a protecção dos interesses
difusos à acção popular), é necessário distinguir entre a tutela subjectiva que
decorre da protecção constitucional da fruição individual do ambiente (assegurada
pela legitimidade individual para propor acções administrativas) e a tutela
objectiva do ambiente (protegido através do mecanismo da acção popular). O
direito ao ambiente é protegido de forma subjectiva através da sua consagração
como direito fundamental, e a sua protecção e promoção é também tarefa estatal,
pois também é um bem jurídico necessitado de tutela no quadro das relações
humanas.
E por isso,
na senda do Professor Vasco Pereira da Silva, o direito ao ambiente, integra-se
também na categoria de direitos subjectivos, pois trata-se de uma posição de
vantagem, que tem a mesma natureza que os restantes direitos subjectivos e interesses
legalmente protegidos. Daí a tradicional crítica que o Professor faz que
não faz sentido distinguir entre direitos de primeira (direitos subjectivos),
direitos de segunda (interesses legítimos) e direitos de terceira (interesses
difusos). A distinção ainda é criticada pelos factos de:
- um direito subjectivo pode ser atribuído através de várias
técnicas legislativas. Pode ser conferido expressamente, ou se estabelece um
dever para a Administração actuar no interesse do particular, no qual surge,
como no Direito Privado, um direito do particular correlativo desse dever;
- não há quaisquer razões para se ter importado a distinção
entre direitos subjectivos e interesses legítimos de Itália, uma vez que esta distinção
justificava-se no ordenamento jurídico italiano por razões históricas, que não
se verificaram no nosso ordenamento jurídico.
Duarte Filipe Rodrigues, nº 22035
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