sexta-feira, 31 de outubro de 2014

A PRÁTICA JURISPRUDENCIAL ADMINISTRATIVA E O DIREITO CONSTITUCIONAL: VISÃO FACE AO ACORDÃO DO STA Nº 0279/14

    I. O Direito Administrativo e o Direito Constitucional estão, inevitavelmente, de braços dados.  
         Já Vedel defendia esta dependência recíproca como indispensável, apesar de a ele se opor Eiseman que defendia a autonomia do Direito Administrativo.
Hoje em dia é indiscutível que ambas as disciplinas estão interligadas também numa perspectiva processual. Diz-se que o Direito Administrativo é “Direito Constitucional concretizado”[1].
     Por um lado, podemos afirmar que o Direito Administrativo necessita do Direito Constitucional.
Demostrativo de que assim o é são as modernas constituições do Estado de Direito. Para além de estabelecerem “as opções fundamentais em matéria de organização, de funcionamento, de procedimento, ou de actuação da Administração Pública (…), passaram a incluir também as regras quanto à natureza e à organização dos tribunais competentes para o julgamento de litígios administrativos quanto aos direitos fundamentais dos cidadãos (…), em matéria de processo, quanto à função e estrutura dos processos, quanto aos poderes do juiz…”[2]. Significa isto que a própria constituição dos Estados passou a consagrar um contencioso administrativo “subjectivo e de plena jurisdição”[3], uma vez que consagra a garantia de  protecção plena e efectiva dos particulares.
    Mas por outro lado, o Direito Constitucional depende também do Direito Administrativo, na medida em que é este último que trata de efectivar/ garantir os direitos fundamentais postulados pela Constituição por via de meios contenciosos adequados. 

    II. A Constituição da República Portuguesa[4] como constituição de um Estado de Direito Democrático consagra princípios e regras fundamentais do Contencioso Administrativo.
    Os seus artigos 202º e ss. reflectem um contencioso de plena jurisdição. Anteriormente (antes da versão constitucional de 1989[5]), a existência dos tribunais administrativos e fiscais era facultativa. Hoje em dia, como não podia deixar de ser, a sua obrigatoriedade decorre da CRP, tal como é evidente no seu artigo 212º e transposta para o ETAF no seu artigo 1º/1. Os tribunais administrativos e fiscais aparecem hoje configurados no seio de uma “dualidade de jurisdições”[6] na ordem jurídica portuguesa ao lado dos Tribunais Judiciais (art. 209º/1 al. a) e b) e arts. 210º e 212º da CRP). Assim, hoje, estão bem delimitadas as funções administrativa e jurisdicional, que não mais se confundem.
      Os números 4 e 5 do artigo 268º da CRP dão conta de um contencioso que, para além de jurisdicionalizado, é destinado à tutela plena e efectiva dos direitos dos particulares. Aos administrados é garantido tutela jurisdicional efectiva dos seus direitos ou interesses legalmente protegidos (reconhecimento desses direitos ou interesses, impugnação de actos administrativos, condenação à pratica de actos administrativos devidos, recurso a procedimentos cautelares) – como é patente no nº 4 do referido preceito. O nº 5 confere eficácia externa à impugnação de normas administrativas que violem os direitos ou interesses legalmente protegidos dos cidadãos.
   Assim, o contemporâneo contencioso administrativo gravita, agora, em torno da tutela jurisdicional efectiva dos direitos dos particulares e que deve coadunar com a importantíssima e tão falada prática constitucional que depende em larga medida da prática administrativa.

           III. A jurisprudência administrativa tem por isso um “papel decisivo na concretização do Direito Constitucional”[7].
            Mas estará a jurisprudência administrativa a cumprir este seu papel?
            A polémica está instalada no que respeita a um Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo que tem invadido a comunicação social. O acórdão[8] é referente a uma mulher de 50 anos que devido a uma intervenção ginecológica num hospital público ficou “com muita dificuldade” em ter relações sexuais[9], entre outros danos que a incapacitaram permanentemente em 73%[10]. A questão é que o tribunal argumentou que a autora “já tinha 50 anos e dois filhos (…) idade em que a sexualidade já não tem a importância que assuma em idades mais jovens”. E não se trata apenas de uma “observação” uma vez que o “juízo de valor” acabou por influenciar a decisão de baixar a indeminização.
            Parece que este argumento preserva, ainda, algum conservadorismo dos Juízes dos Tribunais Administrativos o que coloca em aberto a seguinte questão: estarão, já, os juízes administrativos cientes/ instruídos para enfrentar os desafios que a nova moldura administrativa impõe? Ou estarão, ainda, distanciados da realidade jurídica que os rodeia, ancorados numa perspectiva objectiva e limitada do Contencioso?
            Esta justificação revela um juízo de valor sobre a matéria de facto “cuja emissão apela essencialmente para a sensibilidade ou intuição do jurista”[11]. Contudo, a justificação parece ter implícito um tratamento desigual e discriminatório da sexualidade em função da idade, pois não se trata de uma “verdade absoluta” que aos 50 anos a importância sexual diminua. O acórdão acrescenta que a autora “ tinha (…) dois filhos”[12], expressão que faz memorar a antiga concepção social de que o papel da mulher na família é o da procriação. Tal concepção mostra-se até, “na minha óptica”, atentatória da dignidade da pessoa humana (artigo 1º da CRP) na medida em que esta envolve um livre desenvolvimento da personalidade.

            IV. Nas palavras de VASCO PEREIRA DA SILVA, “a garantia de um processo por um tribunal independente e imparcial (…) constitui, assim, simultaneamente, uma condição de realização e uma dimensão essencial dos direitos fundamentais”.
            Não pode o tribunal, deste modo, encabeçar uma atitude atentatória da dignidade da pessoa humana negando aquilo que hoje em dia se denomina de “direito à igualdade sexual”, que não permite um tratamento desigual em matéria de sexualidade em função da idade, como decorrência do princípio da igualdade do artigo 13º da CRP.
            Há, por isso, uma necessidade de melhorar a prática jurisprudencial de modo a que os tribunais administrativos ultrapassem como diria Vasco Pereira da Silva os seus “traumas.”
                         

  
Bibliografia

- SILVA, Vasco Pereira da, “O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise”, 2009, 2ª Edição, Almedina.

- ALMEIDA, Mário Aroso de - “Manual de Processo Administrativo”, Almedina, 2010;

- ANDRADE, José Carlos Vieira – “A Justiça Administrativa (Lições), Almedina, 2009, 10ª edição;

- FERREIR, Moutinho De Almeida - Revista n.º 1816/03 - 2.ª Secção Santos Bernardino (Relator)

Jurisprudência

- Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça nº 0279/14 de 09 de Outubro de 2014




[1] FRITZ WENER, 1969 apud VASCO PEREIRA DA SILVA, O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise, 2009, pág. 175.
[2] VASCO PEREIRA DA SILVA, O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise, 2009, pág. 175
[3] VASCO PEREIRA DA SILVA, O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise, 2009, pág. 176
[4] Doravante CRP
[5] A redacção da Constituição de 1982 dispunha “Podem existir tribunais administrativos e fiscais (…)”
[6]
[7] OTTO BACOF, 1963 apud VASCO PEREIRA DA SILVA, O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise, 2009, pág. 177
[8] Ac. STA nº 0279/14 de 09 de Outubro de 2014
[9] Facto XX) dado como provado no Ac. STA nº 0279/14.
[10] Facto L) dado como provado no Ac. STA nº 0279/14.
[11] MOUTINHO DE ALMEIDA FERREIRA in Revista n.º 1816/03 - 2.ª Secção Santos Bernardino (Relator).
[12]   Ac. STA nº 0279/14 de 09 de Outubro de 2014, destaque nosso.




Carolina Marques dos Santos Palha Ruivo, 
nº20775

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