Âmbito material da jurisdição administrativa
A constitucionalização
formal dos tribunais administrativos e fiscais foi efectuada na segunda revisão
constitucional de 1989, deixando estes de ser uma ordem judicial
constitucionalmente facultativa. Os tribunais administrativos, agora tribunais
especializados, foram integrados dentro da categoria de tribunais judiciais.
Esta consolidação desenvolveu-se nas revisões seguintes, designadamente através
de alterações no plano material relativamente à tutela jurisdicional efetiva
dos administrados (artigo 268.º CRP). Também no plano legislativo sofreu
importantes alterações quanto aos parâmetros processuais dos tribunais
administrativos (Lei n.º 15/2002, de 22 de Fevereiro, que aprovou o Código de
Processo nos Tribunais Administrativos e Lei n.º 13/2002, de 19 de Fevereiro,
que aprovou o novo Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais).
Todas estas profundas
alterações constitucionais e legislativas levaram a uma concordância prática
entre a dimensão subjetiva e a dimensão objectiva da justiça administrativa com
especial relevo para uma tutela jurisdicional efetiva dos direitos e interesses
legalmente protegidos dos administrados e com a consagração de formas
processuais que vão transformando o contencioso administrativo num contencioso
de plena jurisdição à semelhança do processo civil.
Relações Jurídicas
Administrativas
No seu n.º 3, o artigo n.º
212.º CRP prevê a competência dos tribunais administrativos e fiscais para o
julgamento das ações que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes de
relações jurídicas administrativas, definindo, assim, a função jurídico-constitucional da jurisdição
administrativa e fiscal. Importa, portanto, clarificar a noção de relações
jurídicas administrativas.
Estas
relações jurídicas administrativas podem ser entendidas, por um lado, num
sentido subjetivo, incluindo qualquer e toda a relação em que intervenha a
Administração. Desta forma, o objectivo da existência de uma jurisdição
específica seria a presença da Administração Pública enquanto sujeito da
relação. A jurisdição administrativa seria uma jurisdição privativa da
Administração Pública. Por outro lado, também pode entender-se como as relações
jurídicas envolvendo entes públicos, desde que regulados pelo Direito
Administrativo. Assim, seria a presença de elementos de autoridade que
justificaria a jurisdição administrativa.
O
conceito das relações jurídico-administrativas deve ser entendido, neste
contexto, como uma referencia à possibilidade de alargamento da jurisdição
administrativa a outras realidades diversas das tradicionais formas de atuação,
como o ato, o contrato, ou o regulamento, complementado aquele critério.
Por
razões que decorrem do princípio da separação dos poderes, os tribunais julgam
do cumprimento de normas e princípios jurídicos e não, em regra, do
conhecimento de questões internas de entes administrativos. Consequentemente,
no contexto da justiça administrativa relevam especificamente as relações
jurídicas interpessoais ou intersubjetivas e não relações intrapessoais ou
intrasubjetivas. Porém, as relações externas não são só aquelas estabelecidas
entre Administração e particulares. Abrangem também, pelo menos, as relações
jurídicas entre pessoas colectivas públicas.
Estão,
assim, excluídas do âmbito da justiça administrativa as relações jurídicas
internas como as relações entre órgãos administrativos dentro da mesma pessoa
colectiva, as relações entre os órgãos administrativos e respectivos membros ou
titulares (embora com zonas de fronteira, quando estejam em causa direitos
próprios destes, enquanto tais) e as relações entre órgãos de uma instituição e
os funcionários, utentes ou sujeitos de relações especiais de direito
administrativo, na medida restritiva do respectivo vínculo funcional.
Isto
não quer dizer que, num contexto objetivista de defesa da legalidade, a lei não
possa atribuir aos tribunais administrativos a competência para conhecer
litígios nos casos atrás mencionados, dada a complexidade organizativa não só
do Estado como de outras pessoas colectivas públicas. O artigo 4.º, n.º 1,
alínea j) do ETAF inclui nos litígios da competência da jurisdição
administrativa os que tenham por objecto relações jurídicas entre órgãos
públicos, no âmbito dos interesses que lhes cumpre prosseguir.
Contrariamente,
devem considerar-se relações jurídicas administrativas externas as relações
entre a Administração e os particulares, as quais podem ser: as relações entre
entidades administrativas e os cidadãos, as relações entre as organizações
administrativas e os membros, utentes ou pessoas funcionalmente ligadas a essas
organizações – relações fundamentais – e as relações entre sujeitos privados
que atuem no exercício de poderes administrativos (sejam estas entidades
públicas em forma privada ou verdadeiros privados) e os particulares. Estão
também incluídas as relações jurídicas interadministrativas, como as relações
entre entes públicos, as relações jurídicas entre entes administrativos e
outros que atuem em substituição de órgãos da Administração, no exercício da
função administrativa (mesmo que não tenham personalidade jurídica) e ainda
certas relações jurídicas entre órgãos de diferentes entes públicos, no caso em
que a circunstância de se tratar de órgãos de pessoas coletivas distintas for
determinante ou decisiva para a caracterização
da relação, por estarem em causa interesses públicos diferentes.
Com este conceito genérico
pretende-se somente a inclusão na jurisdição administrativa de vários tipos de
relações bilaterais e multilaterais, externas e internas, entre a Administração
e pessoas civis e entre entes da Administração, reconduzíveis à atividade de
direito público, que prossigam funções de direito administrativo, excluindo-se
apenas as relações jurídicas de direito privado. Desta forma, é importante ter
em mente que o direito administrativo aparece frequentemente associado à
utilização de entidades e de meios de direito privado pela Administração,
podendo haver, na prática, um cruzamento do direito público e do privado.
As delimitações materiais
negativas
Em
primeiro lugar, como delimitação material negativa, há a exclus ão da justiça administrativa das questões
relacionadas com atos internos da Administração ou a litígios que relevem
exclusivamente da organização ou das relações administrativas internas, como as
questões relativas a ordens de serviço e a regulamentos de organização interna
de serviços, as composições de conflitos orgânicos (artigo 42.º n.º 2 e 3 CPA,
relativo a conflitos de competência), assuntos relativos a questões de
disciplina interna de serviços e a resolução dos litígios no contexto de
“relações especiais de direito administrativo”, na sua dimensão orgânica. Esta
regra pode, contudo, comportar excepções, uma vez que se admite a existência de
litígios judiciais entre órgãos da mesma pessoa colectiva (artigo 55.º, n.º 1,
alínea d), do CPTA) ou entre presidentes dos órgãos colegiais e respectivos
órgãos colegiais e os seus órgãos (artigo 14.º, n.º 4, CPA).
Acerca
deste ponto, cumpre ainda referir que o conceito daquilo que é “interno” tem
vindo cada vez mais a ser menos abrangente, em comparação ao antigo
entendimento, que englobava toda a organização administrativa, as relações
especiais de poder em todas as suas dimensões e a maioria das relações
interadministrativas.
Num
outro plano, a delimitação da justiça administrativa pelo carácter
jurisdicional da sua própria função faz com que não possa, hoje em dia, incluir
a resolução de questões administrativas (questões de mérito ou de legalidade)
quando esta se realize através de meios administrativos de impugnação. Ainda
que se mantenham como formas de controlo e fiscalização da atividade
administrativa, não integram a justiça administrativa, que abrange somente a
atividade jurisdicional reservada aos tribunais. Pelas mesmas razões, a
resolução de controvérsias relativas à atuação da Administração pública por
meios políticos não faz parte da justiça administrativa. Seja através do uso de
instrumentos petitórios dos particulares dirigidos ao Provedor de justiça, seja
através do Parlamento, que dispõe de poderes de fiscalização (artigos 23.º e
52.º, n.º 1 e 2 da CRP).
Também
não são abrangidos pela justiça administrativa a resolução de questões
administrativas através de mecanismos de autocomposição de conflitos, através
de conciliação, de mediação ou de transação, nas hipóteses admitidas no âmbito
de aplicação do direito administrativo. Aqui, a resolução de conflitos
administrativos funda-se na vontade das partes, que acabam por decidir a
controvérsia, ainda que possa haver intervenção de um terceiro. Os centros de
arbitragem permanente previstos no artigo 187.º CPTA destinam-se à composição
de litígios em alguns assuntos de direito administrativo, podendo exercer
funções de conciliação, de mediação ou de consulta no âmbito de procedimentos
de impugnação administrativa. Os centros não são tribunais, mas prestam
serviços de arbitragem, organizando uma bolsa de peritos que podem ser nomeados
como árbitros.
Diferentemente,
está incluída na justiça administrativa a resolução de litígios de direito
administrativo por tribunais arbitrais. Este tipo de jurisdição, em matérias em
que o CPTA o admite ou em casos previstos em lei especial, decorre de
convenções de arbitragem celebradas pelas partes, podendo estas constituir
compromissos arbitrais, tendo por objeto um litígio atual, ou ,então,
manifestando-se através de cláusulas compromissórias relativamente a litígios
eventuais, emergentes de uma relação jurídica, contratual ou não. Segundo o
artigo 182.º do CPTA, os interessados têm o direito de exigirem da
Administração a celebração de compromissos arbitrais no âmbito de litígios
legalmente arbitráveis, nos termos da lei.
Os
tribunais arbitrais são categorias reconhecidas de tribunais (artigo 209.º, n.º 2 CRP), que exercem a
função jurisdicional, ainda que os juízes sejam cidadãos. Constituem, assim,
uma situação constitucionalmente prevista de exercício de poderes públicos por
privados. A isto, acresce que os tribunais arbitrais podem, salvo acordo das
partes em contrário, decretar providências cautelares e ordens preliminares
(artigos 20.º e ss. da LAV) e reconhece-se o efeito de caso julgado e a força
executiva própria das sentenças judiciais às suas decisões.
Bibliografia
Consultada:
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Leonor Serrasqueiro
Aluna n.º 22094
Subturma 4 da Turma Dia
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