sexta-feira, 31 de outubro de 2014

Tribunais Administrativos: Protecção Constitucional dos Cidadãos

A existência de uma categoria de Tribunais exclusiva do foro Administrativo é um princípio constitucional. Tem a sua expressão no artigo 209º da Constituição da República Portuguesa (doravante referida como “CRP”), e a sua hierarquia e organização é explicitada em artigos seguintes, sempre claramente separada dos tribunais judiciais. Há, assim, uma dualidade de jurisdições presente na ordem jurídica portuguesa, que marca fortemente não só a organização constitucional desta matéria, como, na prática, a organização dos juízes de ambas jurisdições.
            Deste modo, os tribunais judiciais são encimados hierarquicamente pelo Supremo Tribunal de Justiça (artigo 210º, nº1 CRP); e, simetricamente, os tribunais administrativos e fiscais são encimados pelo Supremo Tribunal Administrativo (artigo 212º, nº1 CRP). Também o artigo 215º CRP e o artigo 57º do ETAF demonstram esta simetria: o artigo 215º quanto aos juízes dos tribunais judiciais dispõe que estes formam um corpo único e se regem por um só estatuto; e o artigo 57º ETAF dispõe quantos aos juízes dos tribunais administrativos e fiscais que também estes formam um corpo único e se regem não só pelo ETAF, mas também pela Constituição e demais legislação aplicável. Assim se demonstra que estas duas categorias judiciais se desenvolvem paralelamente, e são, portanto, profundamente separadas. A própria carreira dos juízes administrativos e fiscais é especializada de tal forma que segue uma evolução separada dos demais juízes, de modo a garantir que a dualidade de jurisdições tenha o seu sentido pleno: não há assim uma livre circulação dos juízes administrativos pelos tribunais judiciais, e vice-versa, o que teria como consequência a colocação de juízes não especializados a julgarem matérias administrativas e fiscais para as quais não teriam competências.
             A razão principal para esta separação é, claro, o facto das duas categorias de tribunais terem competências muito distintas. No tocante aos tribunais administrativos e fiscais, o nosso ponto de interesse neste momento, a sua competência está definida no artigo 212º, nº3 CRP como “o julgamento das acções e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes de relações jurídicas e fiscais”; ou seja, de litígios cuja resolução implique o recurso a normas administrativas e fiscais.
            Esta protecção constitucional de um orgão exclusivamente competente para litígios do foro administrativo e fiscal (envolvendo sempre, portanto, poderes de autoridade pública), é essencial para um conceito de Estado de Direito. Protege a noção fundamental de que as entidades privadas têm um direito de agir contra a autoridade pública sempre que esta exercer os seus poderes incorrectamente, ou quando se virem na posse de um interesse legalmente protegido que não foi respeitado. O artigo 268º, nº 4 e nº 5 CRP consagra precisamente esse direito que todos têm de recorrer à justiça administrativa para fazer valer um seu direito ou interesse legalmente protegido, como um direito fundamental. Os tribunais administrativos e fiscais existem, portanto, para exercer um controlo último sobre a actuação das entidades que agiram com poderes de autoridade sobre privados. Mas não são só os privados os detentores de interesses legalmente protegidos: muitas vezes pode estar em causa um interesse público – como a função dos tribunais administrativos é fiscalizar a legalidade administrativa, o respeito pela legalidade é, em si mesmo, um interesse público.
            No entanto, existem limites à actuação judicial, expressos no artigo 3º, nº 1 do CPTA: a esta apenas compete julga “o cumprimento pela Administração das normas e princípios jurídicos que a vinculam, e não da conveniência e oportunidade da sua actuação”. Ou seja, o sistema judicial administrativo e tributário segue uma lógia de actuação tendo sempre em vista o princípio constitucional da separação do poderes e a sua interdependência, sem se inferir na actuação dos órgãos legitimados para proferirem os actos administrativos em apreço. Os tribunais apenas verificam se a questão em apreço é conforme a lei, e utilizam a sua sentença para, caso seja necessário, forçar a Administração regularizar a situação. Não têm, portanto, nenhum tipo de legitimidade para administrarem, mas apenas para julgar as questões de Direito.
            Tendo isto em mente, pretendo analisar a seguinte notícia:

“A lei de reorganização judiciária, que encerrará já em Setembro 20 tribunais e reduzirá 27 a secções de proximidade, é uma “opção política” tomada no âmbito do poder legislativo que os tribunais não podem suspender nem tão pouco escrutinar. Foi com esta argumentação que o Supremo Tribunal Administrativo (STA) rejeitou recentemente a providência cautelar interposta pela Comunidade Intermunicipal do Alentejo Litoral (CIMAL) por causa da extinção da comarca desta região.

Em causa, está a concretização de “opções políticas conformadoras da reforma judiciária desejada e planeada pelo legislador”, salientam os juízes, na decisão à qual o PÚBLICO teve acesso, para recusar a providência cautelar com pedido de decretamento provisório destinada à tutela de direitos, liberdades e garantias.

Com esta decisão, que é a primeira de uma instância superior relativa ao mapa judiciário, começa a cair por terra a esperança de sucesso de outras acções anunciadas por dezenas de municípios afectados. O STA considera-se “incompetente” para sequer avaliar a acção por estar em causa a pretensão da impugnação “de actos praticados no exercício da função política e legislativa”, e não administrativa.

(…)

O STA recorre à separação de poderes consagrada na Constituição da República e à polémica gerada com a extinção e junção de freguesias para exemplificar com esse caso concreto já apreciado que o poder judicial não pode imiscuir-se no poder legislativo.

(…)

Para o STA, fica claro que “aos tribunais administrativos não cabe qualquer impugnação de actos praticados ao abrigo da função legislativa”. Existe pois, dizem os juízes, uma “reserva relativa de competência legislativa”. Os juízes recordam que foi “o legislador” quem “quis dar uma nova configuração jurídica às comarcas”.

(…)

A acção pretendia “salvaguardar os direitos fundamentais dos cidadãos, nomeadamente do direito de acesso à justiça e ao Estado de Direito Democrático”. Com a reforma, os concelhos de Alcácer do Sal, Grândola, Santiago do Cacém e Sines ficam sob a alçada da Comarca de Setúbal, enquanto Odemira transita para a Comarca de Beja.

Alguns dos presidentes das autarquias visadas garantem que as populações não vão baixar os braços e que a contestação irá manter-se. O presidente da Câmara de Santiago do Cacém, Álvaro Beijinha, reconhece que a posição tomada pela CIMAL é “política” e lamenta que esta decisão, “que é infelizmente um facto”, vá “afectar os cidadãos e o acesso à justiça”. Já o presidente da Câmara de Odemira, José Alberto Guerreiro, diz que a decisão é uma “decepção” e vem “defraudar as expectativas das populações”. Aliás, o autarca lamenta que a reorganização venha a colocar a população “a mais de 100 quilómetros do Tribunal de Beja”. com Carlos Dias


06/08/2014

In http://www.publico.pt/sociedade/noticia/supremo-tribunal-administrativo-rejeita-providencia-cautelar-contra-fecho-de-tribunais-1665556”


           
            Esta notícia, que cita um acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, levanta uma questão importante: Se os tribunais administrativos são o mecanismo de reacção dos privados a decisões das autoridades públicas, o que deve pesar mais – o princípio da separação de poderes, ou a protecção dos cidadãos?
            Esta questão em si mesma pode ser falaciosa, é claro que os direitos, liberdades e garantias dos cidadãos são um pilar da nossa Constituição. O verdadeiro problema é se a interferência do sistema judicial na actuação da Administração na sua actividade política não será também uma violação constitucional dos princípios de Estado de Direito.
            Já vimos que a função os tribunais administrativos e fiscais se prende com a fiscalização da legalidade da actuação da Administração, mas nunca como uma substituição da própria Administração nas suas funções. Ao estabelecer no acórdão do STA mencionado na notícia que a decisão de fechar os tribunais era o resultado da reforma judiciária levada a cabo pelo poder legislativo, uma interferência do Supremo Tribunal Administrativo criaria um precedente de ingerência na competência legislativa, que, como consta dos artigos 164º e 165º CRP, apenas cabe à Assembleia e, por meio de autorização desta, ao Governo. Tal precedente seria inadmissível: é a separação de poderes que garante a legitimidade do Estado de Direito, e imparcialidade do sistema judicial. As decisões políticas, apesar de afectarem directamente os cidadãos, têm de ser observadas no panorama geral nacional, na situação de crise em que o país se encontra. Não cabe ao STA questionar o fecho dos tribunais, pese embora esta decisão faça parte da sua jurisdição, se este é conforme a lei.
Assim, neste caso, mesmo pesando na balança o “direito ao acesso à justiça” referido no artigo pelos presidentes das autarquias afectadas, o Supremo Tribunal Administrativo nada pode fazer. Não se trata de uma questão de falta de protecção dos cidadão, mas sim de uma questão de separação de poderes.


Bibliografia:
Manual do Processo Administrativo, de Mário Aroso de Almeida
Público, jornal online



Beatriz Pereira

Nº 22030

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