Tribunais
Administrativos: Protecção Constitucional dos Cidadãos
A
existência de uma categoria de Tribunais exclusiva do foro Administrativo é um
princípio constitucional. Tem a sua expressão no artigo 209º da Constituição da
República Portuguesa (doravante referida como “CRP”), e a sua hierarquia e
organização é explicitada em artigos seguintes, sempre claramente separada dos
tribunais judiciais. Há, assim, uma dualidade
de jurisdições presente na ordem jurídica portuguesa, que marca fortemente
não só a organização constitucional desta matéria, como, na prática, a
organização dos juízes de ambas jurisdições.
Deste modo, os tribunais judiciais
são encimados hierarquicamente pelo Supremo Tribunal de Justiça (artigo 210º,
nº1 CRP); e, simetricamente, os tribunais administrativos e fiscais são
encimados pelo Supremo Tribunal Administrativo (artigo 212º, nº1 CRP). Também o
artigo 215º CRP e o artigo 57º do ETAF demonstram esta simetria: o artigo 215º
quanto aos juízes dos tribunais judiciais dispõe que estes formam um corpo
único e se regem por um só estatuto; e o artigo 57º ETAF dispõe quantos aos
juízes dos tribunais administrativos e fiscais que também estes formam um corpo
único e se regem não só pelo ETAF, mas também pela Constituição e demais
legislação aplicável. Assim se demonstra que estas duas categorias judiciais se
desenvolvem paralelamente, e são, portanto, profundamente separadas. A própria
carreira dos juízes administrativos e fiscais é especializada de tal forma que
segue uma evolução separada dos demais juízes, de modo a garantir que a
dualidade de jurisdições tenha o seu sentido pleno: não há assim uma livre
circulação dos juízes administrativos pelos tribunais judiciais, e vice-versa,
o que teria como consequência a colocação de juízes não especializados a
julgarem matérias administrativas e fiscais para as quais não teriam
competências.
A razão principal para esta separação é,
claro, o facto das duas categorias de tribunais terem competências muito
distintas. No tocante aos tribunais administrativos e fiscais, o nosso ponto de
interesse neste momento, a sua competência está definida no artigo 212º, nº3
CRP como “o julgamento das acções e
recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes de
relações jurídicas e fiscais”; ou seja, de litígios cuja resolução implique
o recurso a normas administrativas e fiscais.
Esta protecção constitucional de um
orgão exclusivamente competente para litígios do foro administrativo e fiscal (envolvendo
sempre, portanto, poderes de autoridade pública), é essencial para um conceito
de Estado de Direito. Protege a noção fundamental de que as entidades privadas
têm um direito de agir contra a autoridade pública sempre que esta exercer os
seus poderes incorrectamente, ou quando se virem na posse de um interesse legalmente
protegido que não foi respeitado. O artigo 268º, nº 4 e nº 5 CRP consagra
precisamente esse direito que todos têm de recorrer à justiça administrativa
para fazer valer um seu direito ou interesse legalmente protegido, como um
direito fundamental. Os tribunais administrativos e fiscais existem, portanto,
para exercer um controlo último sobre a actuação das entidades que agiram com
poderes de autoridade sobre privados. Mas não são só os privados os detentores
de interesses legalmente protegidos: muitas vezes pode estar em causa um
interesse público – como a função dos tribunais administrativos é fiscalizar a
legalidade administrativa, o respeito pela legalidade é, em si mesmo, um
interesse público.
No entanto, existem limites à
actuação judicial, expressos no artigo 3º, nº 1 do CPTA: a esta apenas compete
julga “o cumprimento pela Administração das normas e princípios jurídicos que a
vinculam, e não da conveniência e
oportunidade da sua actuação”. Ou seja, o sistema judicial administrativo e
tributário segue uma lógia de actuação tendo sempre em vista o princípio
constitucional da separação do poderes
e a sua interdependência, sem se
inferir na actuação dos órgãos legitimados para proferirem os actos
administrativos em apreço. Os tribunais apenas verificam se a questão em apreço
é conforme a lei, e utilizam a sua sentença para, caso seja necessário, forçar
a Administração regularizar a situação. Não têm, portanto, nenhum tipo de
legitimidade para administrarem, mas
apenas para julgar as questões de Direito.
Tendo isto em mente, pretendo
analisar a seguinte notícia:
“A lei
de reorganização judiciária, que encerrará já em Setembro 20 tribunais e
reduzirá 27 a secções de proximidade, é uma “opção política” tomada no âmbito
do poder legislativo que os tribunais não podem suspender nem tão pouco
escrutinar. Foi com esta argumentação que o Supremo Tribunal Administrativo
(STA) rejeitou recentemente a providência cautelar interposta pela Comunidade
Intermunicipal do Alentejo Litoral (CIMAL) por causa da extinção da comarca
desta região.
Em
causa, está a concretização de “opções políticas conformadoras da reforma
judiciária desejada e planeada pelo legislador”, salientam os juízes, na
decisão à qual o PÚBLICO teve acesso, para recusar a providência cautelar com
pedido de decretamento provisório destinada à tutela de direitos, liberdades e
garantias.
Com
esta decisão, que é a primeira de uma instância superior relativa ao mapa
judiciário, começa a cair por terra a esperança de sucesso de outras acções
anunciadas por dezenas de municípios afectados. O STA considera-se
“incompetente” para sequer avaliar a acção por estar em causa a pretensão da
impugnação “de actos praticados no exercício da função política e legislativa”,
e não administrativa.
(…)
O STA
recorre à separação de poderes consagrada na Constituição da República e à
polémica gerada com a extinção e junção de freguesias para exemplificar com
esse caso concreto já apreciado que o poder judicial não pode imiscuir-se no
poder legislativo.
(…)
Para o STA,
fica claro que “aos tribunais administrativos não cabe qualquer impugnação de
actos praticados ao abrigo da função legislativa”. Existe pois, dizem os
juízes, uma “reserva relativa de competência legislativa”. Os juízes recordam
que foi “o legislador” quem “quis dar uma nova configuração jurídica às
comarcas”.
(…)
A acção
pretendia “salvaguardar os direitos fundamentais dos cidadãos, nomeadamente do
direito de acesso à justiça e ao Estado de Direito Democrático”. Com a reforma,
os concelhos de Alcácer do Sal, Grândola, Santiago do Cacém e Sines ficam sob a
alçada da Comarca de Setúbal, enquanto Odemira transita para a Comarca de Beja.
Alguns
dos presidentes das autarquias visadas garantem que as populações não vão
baixar os braços e que a contestação irá manter-se. O presidente da Câmara de
Santiago do Cacém, Álvaro Beijinha, reconhece que a posição tomada pela CIMAL é
“política” e lamenta que esta decisão, “que é infelizmente um facto”, vá
“afectar os cidadãos e o acesso à justiça”. Já o presidente da Câmara de
Odemira, José Alberto Guerreiro, diz que a decisão é uma “decepção” e vem
“defraudar as expectativas das populações”. Aliás, o autarca lamenta que a
reorganização venha a colocar a população “a mais de 100 quilómetros do
Tribunal de Beja”. com Carlos Dias
06/08/2014
In
http://www.publico.pt/sociedade/noticia/supremo-tribunal-administrativo-rejeita-providencia-cautelar-contra-fecho-de-tribunais-1665556”
Esta
notícia, que cita um acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, levanta uma questão
importante: Se os tribunais administrativos são o mecanismo de reacção dos
privados a decisões das autoridades públicas, o que deve pesar mais – o princípio
da separação de poderes, ou a protecção dos cidadãos?
Esta questão em si mesma pode ser
falaciosa, é claro que os direitos, liberdades e garantias dos cidadãos são um
pilar da nossa Constituição. O verdadeiro problema é se a interferência do
sistema judicial na actuação da Administração na sua actividade política não
será também uma violação constitucional dos princípios de Estado de Direito.
Já vimos que a função os tribunais
administrativos e fiscais se prende com a fiscalização da legalidade da
actuação da Administração, mas nunca como uma substituição da própria
Administração nas suas funções. Ao estabelecer no acórdão do STA mencionado na notícia
que a decisão de fechar os tribunais era o resultado da reforma judiciária
levada a cabo pelo poder legislativo, uma interferência do Supremo Tribunal
Administrativo criaria um precedente de ingerência na competência legislativa,
que, como consta dos artigos 164º e 165º CRP, apenas cabe à Assembleia e, por
meio de autorização desta, ao Governo. Tal precedente seria inadmissível: é a
separação de poderes que garante a legitimidade do Estado de Direito, e imparcialidade
do sistema judicial. As decisões políticas, apesar de afectarem directamente os
cidadãos, têm de ser observadas no panorama geral nacional, na situação de
crise em que o país se encontra. Não cabe ao STA questionar o fecho dos tribunais,
pese embora esta decisão faça parte da sua jurisdição, se este é conforme a lei.
Assim, neste caso, mesmo pesando na balança o “direito ao acesso à justiça” referido
no artigo pelos presidentes das autarquias afectadas, o Supremo Tribunal
Administrativo nada pode fazer. Não se trata de uma questão de falta de protecção
dos cidadão, mas sim de uma questão de separação de poderes.
Bibliografia:
Manual do Processo Administrativo, de Mário Aroso de Almeida
Público, jornal online
Beatriz
Pereira
Nº
22030
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