sexta-feira, 31 de outubro de 2014

Ação de condenação à prática de ato devido VS Deferimento Tácito


Os tempos em que a relação dos particulares com a Administração se baseava em escassos contatos e em que esta assumia um papel de intervenção reduzido ou, depois destes, os de forte ativismo, embora sem a existência de efetivas garantias do direitos dos particulares são tempos remotos. Dado que atualmente os cidadãos dependem cada vez mais da atuação da referida administração, é importante a existência de meios que garantam os seus direitos, pois bem sabemos que muitas vezes a efetivação dos direitos dos particulares ficam em suspenso, já que a Administração Pública, apresenta constantemente ao público a sua face emproada, ineficiente e ausente, através do seu silêncio. Face a isto, o simples recurso de anulação não seria suficiente para garantir os direitos e interesses dos cidadãos, era necessário uma solução que obrigasse a Administração a alterar os seus comportamentos, é neste contexto que surge a figura da condenação à prática do ato administrativo legalmente devido.
 A consagração de uma ação de condenação da Administração à prática de ato administrativo devido, constitui assim uma das maiores mudanças no contencioso Administrativo, esta figura como surge como uma inovação garantística, há muito necessária e ambicionada. A Revisão Constitucional de 1997 (art.268.º n.º4 da Constituição da República Portuguesa (doravante CRP) ) foi a responsável por esta inovação, que foi depois transposta para a lei administrativa no âmbito da reforma de 2004.
Foi assim ultrapassada a tradicional limitação do contencioso de tipo francês, segundo a qual em razão do princípio da separação de poderes o juiz só poderia anular atos administrativos, mas nunca poderia dar ordens de qualquer espécie às autoridades administrativas. Nascendo um Contencioso Administrativo de plena jurisdição. Como o professor Vasco Pereira da Silva  [1] explica, a  constante invocação do princípio da separação de poderes, assentava na confusão entre julgar e administrar, assim como no equívoco de considerar que condenar a Administração era a mesma coisa que praticar atos em vez dela. A ação de condenação à prática de ato devido é referida no artigo 46º, nº2, b) do CPTA, vem prevista nos artigos 66.ºss e é uma modalidade da ação administrativa especial.

Objeto

Como podemos ver ao analisar o artigo 66.º do CPTA, foi consagrado no nosso CPTA um mecanismo processual que tanto permite a condenação da Administração nos casos de omissão de atuação, como nos casos de emissão anterior de conteúdo negativo ilegal.

O objeto do processo é a pretensão do interessado, ou seja o direito do particular a uma determinada conduta da Administração e nunca o ato administrativo, o artigo 66.º n.º2 do CPTA é bastante claro: “ainda que a prática do ato devido tenha sido expressamente recusada, o objeto do processo é a pretensão do interessado e não o ato de indeferimento, cuja eliminação da ordem jurídica resulta diretamente da pronúncia condenatória”. Há uma nítida distinção entre o objeto do processo de condenação à prática de ato administrativo e o objeto do processo de impugnação de atos administrativos, apesar de ambas as ações estarem enquadradas num mesmo tipo de ação administrativa, assumem funções desiguais. O legislador determina no artigo 66.º n.º2 do CPTA que nos casos de atos de recusa por parte da Administração, a eliminação destes atos da ordem jurídica resulta diretamente da pronúncia condenatória. Portanto o particular, face a uma recusa expressa por parte da administração, não necessita de pedir a anulação desse ato de indeferimento, pois esse ato é implicitamente eliminado na ação de condenação. Também o artigo 71.º do CPTA, determina que, quando chamado a condenar a Administração a praticar um ato devido, o tribunal não se pode limitar a devolver a questão ao órgão administrativo competente, mas antes se deve pronunciar “sobre a pretensão material do interessado”[2]. Portanto podemos concluir que o que estão em causa são as pretensões dos particulares. A condenação à prática de ato devido decorre assim do direito subjetivo do particular, este faz valer a posição subjetiva (que foi lesada pela conduta administrativa), de conteúdo pretensivo de que é titular, pedindo o seu reconhecimento.

Pressupostos de Aplicação

Delimitado o objeto da ação de condenação à prática de ato legalmente devido, passemos então a analisar as situações em que esta figura pode ser utilizada, estas vêm previstas no artigo 67.º do CPTA:

“Artigo 67.º
Pressupostos

1 - A condenação à prática de acto administrativo legalmente devido
pode ser pedida quando:
a) Tendo sido apresentado requerimento que constitua o órgão competente no dever de decidir, não tenha sido proferida decisão dentro do prazo legalmente estabelecido;
b) Tenha sido recusada a prática do acto devido; ou
c) Tenha sido recusada a apreciação de requerimento dirigido à prática
do acto. (…)”

Portanto face à apresentação do requerimento a Administração tem uma atitude ilegal, ilegal porque à Administração incumbe o dever agir, obrigação esta que resulta do principio da decisão do art.9.º do CPA. Atitude esta que pode ter três contornos, como decorre do art.º 67.º do CPTA:
1.      Silêncio, equivalendo a omissão pura (alínea a));
2.      Recusa expressa da prática do ato requerido (alínea b));
3.      Recusa de apreciação de requerimento (alínea c)).


Não entraremos em detalhes quanto ás alíneas b) e c), iremos apenas centrar-nos na alínea a). A problemática desta alínea está na questão dos atos tácitos.

Atos Tácitos

No nosso CPA, encontramos no art.º108º e no art.º109º, respetivamente as figuras do deferimento e indeferimento tácito. Até a entrada em vigor do CPTA estes eram os meios que existiam de tutela dos particulares contra a inércia da Administração.
Comecemos por analisar o art.109.º, onde encontramos a figura do indeferimento tácito. A conduta omissiva da administração, teria neste caso o efeito denegatório da pretensão no n.º1 deste artigo, dispõe-se sobre as suas essências e finalidades. Nos números 2 e 3, regula-se a sua formação no tempo. O indeferimento tácito não levanta hoje quaisquer problemas, uma vez que a ação de condenação à prática de ato devido, retirou a função desta figura, dado que o indeferimento tácito era uma presunção legal de ato, simplesmente destinada a propiciar tutela juridiscional do particular lesado pelo silêncio da Administração, através de uma ação de impugnação, com a existência da ação de condenação já não se justifica a manutenção desta figura, a doutrina [3]considera inclusive que o art.109.º do CPA foi revogado com a entrada em vigor do CPTA.
Já quanto ao deferimento tácito, coloca-se a questão de saber se este caberá ainda no conceito de omissão preconizado pelo legislador. Só de referir que tal como indeferimento tácito, o deferimento tácito é igualmente uma ficção legal só que com efeitos positivos.
O professor Mário Aroso de Almeida defende que não. Segundo este professor em situações de deferimento tácito, não há lugar para a propositura de uma ação de condenação à prática do ato omitido, porque a produção deste ato já resultou da lei, sendo que a esfera do particular já está protegida pela criação deste ato pela lei, não há segundo o autor necessidade de mais proteção[4].
 O professor Sérvulo Correia é da mesma opinião afirmando que  não existe propriamente incompatibilidade entre o instituto do deferimento tácito, e o meio processual da ação de condenação à prática de ato administrativo devido. Esta ação pressupõe a não emissão do ato devido, havendo deferimento tácito o ato já existe. Uma ação de condenação à prática de ato administrativo com o mesmo conteúdo enfermaria de impossibilidade do objeto. Assim sendo não há qualquer prejuízo para a efetividade da tutela, visto que o deferimento tácito pode ser um instrumento mais garantístico do que a possibilidade de interposição de uma ação de condenação à prática de ato devido, este acaba até por fornecer uma solução mais rápida e completa para a solução do particular[5].
Também a posição de José Vieira de Andrade é idêntica à dos autores em cima referidos, defendendo que nos casos de formação de atos não é necessária a propositura da ação condenatória[6].
Diferentemente destes três autores, Vasco Pereira da Silva[7], não considera sequer que o deferimento tácito seja um ato administrativo e que este muito menos tenha necessariamente de afastar a ação de condenação à prática de ato devido. O professor apresenta os seguintes argumentos para a sua posição, em primeiro lugar uma coisa é a produção de efeitos, decorrente de uma ficção legal, outra bem diferente é uma atuação intencional da Administração. A Administração moderna necessita mais hoje em dia do que aprovações meramente burocráticas, principalmente quando está em causa o exercício do poder discricionário, no âmbito de relações mutilarias. Exige-se decisões efetivas por parte das autoridades administrativas. Além de que tendo em conta o novo Contencioso Administrativo de plena jurisdição que possibilita aos particulares reagir de modo eficaz contra omissões ilegais, torna-se menos necessária a existência deste tipo de mecanismos para fazer frente aos défices de funcionamento da Administração Pública. Em segundo lugar, mesmo admitindo que do deferimento tácito, resultaria a formação de um ato administrativo, isso só por si não seria suficiente para afastar a possibilidade do pedido de condenação, uma vez que esta tanto pode ter lugar em relação a omissões  como a atuação administrativas desfavoráveis. O professor conclui dizendo que a única objeção procedente no que diz respeito à admissibilidade de pedidos de condenação de omissões administrativas geradoras de deferimentos tácitos, é o fato de estar em causa uma ficção legal com efeitos positivos, ainda assim defende que não deve ser afastada a ação de condenação em duas situações, quando o deferimento tácito formado nos termos da lei não corresponder exatamente às pretensões do particular e na hipótese do deferimento tácito, numa relação jurídica multilateral, em que a decisão tenha sido desfavorável para algum dos sujeitos.
Também da opinião que o deferimento tácito não deve impedir a ação de condenação à prática de ato devido, é Rita Calçada Pires[8], a autora defende que a realidade jurídica mostra que o instituto do deferimento tácito tem enormes falhas de proteção dos particulares. E afirma ainda que é importante ter em conta os riscos que este instituto pode apresentar para a vida em sociedade devido às desvantagens inerentes à demora na tomada de decisão. Na senda de João Tiago Silveira, a autora faz uma referência às criticas apresentadas por este autor em relação ao instituto do deferimento tácito. Nomeadamente este instituto ser propiciador de comportamentos ilícitos, ser uma figura atentória de interesses públicos e de terceiros, o fato de devolver a competência decisória administrativa aos particulares, ser potenciador de vícios no funcionamento da administração, levar à falta de segurança do particular e por último as suas dificuldades de execução. Rita Calçada Pires propõe como solução, nos casos em que a Administração nada diz, e em que a lei oferece o valor de ato tácito de silêncio, passar a preconizar-se  a sua interpretação como mero fato potenciador da utilização do pedido de condenação à prática de ato devido. Assim sendo o ato tácito de deferimento deve estar incluído no conceito de omissão administrativa.
Não concordamos com as primeiras três opiniões referidas, inclinamo-nos para as duas últimas, somos inclusive da opinião que o ato tácito deve ser eliminado e os artigos 108.º e 109.º revogados, sendo que no caso do art. 109.º é unânime na doutrina que este foi revogado com a entrada em vigor do CPTA. Dado haver hoje um meio eficiente de garantia das pretensões dos particulares, a ação de condenação à prática de ato legalmente devido, não nos parece fazer sentido continuar a apoiar a manutenção de uma figura que incentiva ao comportamento não só inerte mas também ilegal da Administração, tendo em conta que à Administração incumbe um dever de agir, previsto como referido em cima no art.9.º do CPA. Ainda para mais quando um dos objetivos da criação à ação de condenação à pratica de ato devido era o de haver uma mudança de comportamento por parte da Administração.
Os requerimentos feitos à administração devem ter respostas expressas e não respostas presumidas, que muitas vezes nem satisfazem completamente os interesses do particular, ou no caso de relações multilaterais prejudicam alguma das partes. A posição do titular de direitos ficará mais tutelada através de uma condenação da administração à prática de ato devido, do que através da formação de ficções jurídicas.
Esta figura tinha todo sentido antes da entrada em vigor do CPTA, sendo que não havia mais formas de tutela dos particulares, antes algum efeito do que nenhum, mas com a entrada em vigor da referida lei, a sua função desapareceu, continuar a insistir nesta figura só levará ao desincentivo de uma mudança de atitude por parte da Administração,  que bem sabemos ser necessária.


Bibliografia:

·      
  •     ALMEIDA, Mário Aroso de, “Manual de Processo Administrativo”, Coimbra, Almedina, 2013;

  •  ALMEIDA, Mário Aroso de, O novo regime do processo nos tribunais administrativos, 4ºedição, Almedina, 2005;

  •  ALMEIDA, Mário Aroso de, “Sobre as acções de condenação à prática de actos administrativos”, Instituto de Ciências Jurídico Políticas, Temas e Problemas do Contencioso Administrativo, 2ªedição; 

  • ANDRADE, José Carlos Vieira de – A Justiça Administrativa (Lições). Almedina, 2005;

  • MANCHETE, Rui, “A condenação à prática de ato devido - algumas questões”, CJA, nº50, Março/Abril de 2005; 

  • MEALHA, Fernanda Maças Esperança, “A condenação à prática de ato devido na jurisprudência”, Revista do Ministério Público, nº117, 2009;

  •  PIRES, Rita Calçada – O Pedido de Condenação à Prática de Acto Administrativo Legalmente Devido – Desafiar a Modernização Administrativa?. Almedina, 2006;

  • SÉRVULO, José Manuel Correia, “O incumprimento do dever de decidir”, CJA, nº54, Novembro/Dezembro de 2005;

  •  SILVA, Vasco Pereira da, “O Contencioso Administrativo No Divã Da Psicanálise”, 2.º edição, Coimbra, Almedina, 2009.










[1] SILVA, Vasco Pereira da, “O Contencioso Administrativo No Divã Da Psicanálise”, 2.º edição, Coimbra, Almedina, 2009, pag. 377.
[2] ALMEIDA, Mário Aroso de, “Sobre as acções de condenação à prática de actos administrativos”, Instituto de Ciências Jurídico Políticas, Temas e Problemas do Contencioso Administrativo, 2ªedicção, pag.90 e ss.
[3] SÉRVULO, José Manuel Correia, “O incumprimento do dever de decidir”, CJA, nº54, Novembro/Dezembro de 2005, pag.16.
[4] ALMEIDA, Mário Aroso de, “Manual de Processo Administrativo”, Coimbra, Almedina, 2013, pag. 166.
[5] SÉRVULO, José Manuel Correia, “O incumprimento do dever de decidir”, CJA, nº54, Novembro/Dezembro de 2005, pag.30.
[6] ANDRADE, José Carlos Vieira de – A Justiça Administrativa (Lições). Almedina, 2005, pag. 206.
[7] SILVA, Vasco Pereira da, “O Contencioso Administrativo No Divã Da Psicanálise”, 2.º edição, Coimbra, Almedina, 2009, pag 397 e ss.
[8] PIRES, Rita Calçada – O Pedido de Condenação à Prática de Acto Administrativo Legalmente Devido – Desafiar a Modernização Administrativa?. Almedina, 2006, pag .75.


Patrícia dos Santos
Número: 20804

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