Os tempos em que a relação dos particulares com a
Administração se baseava em escassos contatos e em que esta assumia um papel de
intervenção reduzido ou, depois destes, os de forte ativismo, embora sem a
existência de efetivas garantias do direitos dos particulares são tempos remotos.
Dado que atualmente os cidadãos dependem cada vez mais da atuação da referida
administração, é importante a existência de meios que garantam os seus
direitos, pois bem sabemos que muitas vezes a efetivação dos direitos dos particulares
ficam em suspenso, já que a Administração Pública, apresenta constantemente ao
público a sua face emproada, ineficiente e ausente, através do seu silêncio. Face
a isto, o simples recurso de anulação não seria suficiente para garantir os
direitos e interesses dos cidadãos, era necessário uma solução que obrigasse a
Administração a alterar os seus comportamentos, é neste contexto que surge a
figura da condenação à prática do ato administrativo legalmente devido.
A consagração
de uma ação de condenação da Administração à prática de
ato administrativo devido, constitui assim uma das maiores mudanças no
contencioso Administrativo, esta figura como surge como uma inovação
garantística, há muito necessária e ambicionada. A Revisão
Constitucional de 1997 (art.268.º n.º4 da Constituição da República Portuguesa
(doravante CRP) ) foi a responsável por esta inovação, que foi depois
transposta para a lei administrativa no âmbito da reforma de 2004.
Foi assim ultrapassada a tradicional limitação do
contencioso de tipo francês, segundo a qual em razão do princípio da separação
de poderes o juiz só poderia anular atos administrativos, mas nunca poderia dar
ordens de qualquer espécie às autoridades administrativas. Nascendo um
Contencioso Administrativo de plena jurisdição. Como o professor Vasco Pereira
da Silva [1]
explica, a constante invocação do
princípio da separação de poderes, assentava na confusão entre julgar e
administrar, assim como no equívoco de considerar que condenar a Administração
era a mesma coisa que praticar atos em vez dela. A ação de condenação
à prática de ato devido é referida no artigo 46º, nº2, b) do CPTA, vem prevista
nos artigos 66.ºss e é uma modalidade da ação administrativa especial.
Objeto
Como
podemos ver ao analisar o artigo 66.º do CPTA, foi consagrado no nosso CPTA um
mecanismo processual que tanto permite a condenação da Administração nos casos
de omissão de atuação, como nos casos de emissão anterior de conteúdo negativo
ilegal.
O objeto do
processo é a pretensão do interessado, ou seja o direito do particular a uma
determinada conduta da Administração e nunca o ato administrativo, o artigo
66.º n.º2 do CPTA é bastante claro: “ainda que a prática do ato devido tenha
sido expressamente recusada, o objeto do processo é a pretensão do interessado
e não o ato de indeferimento, cuja eliminação da ordem jurídica resulta
diretamente da pronúncia condenatória”. Há uma nítida distinção entre o objeto
do processo de condenação à prática de ato administrativo e o objeto do
processo de impugnação de atos administrativos, apesar de ambas as ações
estarem enquadradas num mesmo tipo de ação administrativa, assumem funções
desiguais. O legislador determina no artigo 66.º n.º2 do CPTA que nos casos de
atos de recusa por parte da Administração, a eliminação destes atos da ordem
jurídica resulta diretamente da pronúncia condenatória. Portanto o particular,
face a uma recusa expressa por parte da administração, não necessita de pedir a
anulação desse ato de indeferimento, pois esse ato é implicitamente eliminado
na ação de condenação. Também o artigo 71.º do CPTA, determina que, quando
chamado a condenar a Administração a praticar um ato devido, o tribunal não se
pode limitar a devolver a questão ao órgão administrativo competente, mas antes
se deve pronunciar “sobre a pretensão material do interessado”[2].
Portanto podemos concluir que o que estão em causa são as pretensões dos
particulares. A condenação à prática de ato devido decorre assim do direito
subjetivo do particular, este faz valer a posição subjetiva (que foi lesada
pela conduta administrativa), de conteúdo pretensivo de que é titular, pedindo
o seu reconhecimento.
Pressupostos de Aplicação
Delimitado o
objeto da ação de condenação à prática de ato legalmente devido, passemos então
a analisar as situações em que esta figura pode ser utilizada, estas vêm
previstas no artigo 67.º do CPTA:
“Artigo 67.º
Pressupostos
1 - A condenação
à prática de acto administrativo legalmente devido
pode ser pedida
quando:
a) Tendo sido apresentado
requerimento que constitua o órgão competente no dever de decidir, não tenha sido
proferida decisão dentro do prazo legalmente estabelecido;
b) Tenha sido
recusada a prática do acto devido; ou
c) Tenha sido
recusada a apreciação de requerimento dirigido à prática
do acto. (…)”
Portanto face à
apresentação do requerimento a Administração tem uma atitude ilegal, ilegal
porque à Administração incumbe o dever agir, obrigação esta que resulta do
principio da decisão do art.9.º do CPA. Atitude esta que pode ter três
contornos, como decorre do art.º 67.º do CPTA:
1.
Silêncio,
equivalendo a omissão pura (alínea a));
2.
Recusa
expressa da prática do ato requerido (alínea b));
3.
Recusa
de apreciação de requerimento (alínea c)).
Não entraremos
em detalhes quanto ás alíneas b) e c), iremos apenas centrar-nos na alínea a). A
problemática desta alínea está na questão dos atos tácitos.
Atos Tácitos
No nosso CPA,
encontramos no art.º108º e no art.º109º, respetivamente as figuras do
deferimento e indeferimento tácito. Até a entrada em vigor do CPTA estes eram
os meios que existiam de tutela dos particulares contra a inércia da
Administração.
Comecemos por
analisar o art.109.º, onde encontramos a figura do indeferimento tácito. A
conduta omissiva da administração, teria neste caso o efeito denegatório da
pretensão no n.º1 deste artigo, dispõe-se sobre as suas essências e finalidades.
Nos números 2 e 3, regula-se a sua formação no tempo. O indeferimento tácito
não levanta hoje quaisquer problemas, uma vez que a ação de condenação à
prática de ato devido, retirou a função desta figura, dado que o indeferimento
tácito era uma presunção legal de ato, simplesmente destinada a propiciar
tutela juridiscional do particular lesado pelo silêncio da Administração,
através de uma ação de impugnação, com a existência da ação de condenação já
não se justifica a manutenção desta figura, a doutrina [3]considera
inclusive que o art.109.º do CPA foi revogado com a entrada em vigor do CPTA.
Já quanto ao
deferimento tácito, coloca-se a questão de saber se este caberá ainda no
conceito de omissão preconizado pelo legislador. Só de referir que tal como
indeferimento tácito, o deferimento tácito é igualmente uma ficção legal só que
com efeitos positivos.
O professor
Mário Aroso de Almeida defende que não. Segundo este professor em situações de
deferimento tácito, não há lugar para a propositura de uma ação de condenação à
prática do ato omitido, porque a produção deste ato já resultou da lei, sendo
que a esfera do particular já está protegida pela criação deste ato pela lei,
não há segundo o autor necessidade de mais proteção[4].
O professor Sérvulo Correia é da mesma opinião
afirmando que não existe propriamente
incompatibilidade entre o instituto do deferimento tácito, e o meio processual
da ação de condenação à prática de ato administrativo devido. Esta ação
pressupõe a não emissão do ato devido, havendo deferimento tácito o ato já existe.
Uma ação de condenação à prática de ato administrativo com o mesmo conteúdo
enfermaria de impossibilidade do objeto. Assim sendo não há qualquer prejuízo
para a efetividade da tutela, visto que o deferimento tácito pode ser um
instrumento mais garantístico do que a possibilidade de interposição de uma
ação de condenação à prática de ato devido, este acaba até por fornecer uma
solução mais rápida e completa para a solução do particular[5].
Também a posição
de José Vieira de Andrade é idêntica à dos autores em cima referidos,
defendendo que nos casos de formação de atos não é necessária a propositura da
ação condenatória[6].
Diferentemente
destes três autores, Vasco Pereira da Silva[7],
não considera sequer que o deferimento tácito seja um ato administrativo e que
este muito menos tenha necessariamente de afastar a ação de condenação à
prática de ato devido. O professor apresenta os seguintes argumentos para a sua
posição, em primeiro lugar uma coisa é a produção de efeitos, decorrente de uma
ficção legal, outra bem diferente é uma atuação intencional da Administração. A
Administração moderna necessita mais hoje em dia do que aprovações meramente
burocráticas, principalmente quando está em causa o exercício do poder
discricionário, no âmbito de relações mutilarias. Exige-se decisões efetivas
por parte das autoridades administrativas. Além de que tendo em conta o novo
Contencioso Administrativo de plena jurisdição que possibilita aos particulares
reagir de modo eficaz contra omissões ilegais, torna-se menos necessária a
existência deste tipo de mecanismos para fazer frente aos défices de
funcionamento da Administração Pública. Em segundo lugar, mesmo admitindo que
do deferimento tácito, resultaria a formação de um ato administrativo, isso só
por si não seria suficiente para afastar a possibilidade do pedido de
condenação, uma vez que esta tanto pode ter lugar em relação a omissões como a atuação administrativas desfavoráveis.
O professor conclui dizendo que a única objeção procedente no que diz respeito
à admissibilidade de pedidos de condenação de omissões administrativas
geradoras de deferimentos tácitos, é o fato de estar em causa uma ficção legal
com efeitos positivos, ainda assim defende que não deve ser afastada a ação de
condenação em duas situações, quando o deferimento tácito formado nos termos da
lei não corresponder exatamente às pretensões do particular e na hipótese do
deferimento tácito, numa relação jurídica multilateral, em que a decisão tenha
sido desfavorável para algum dos sujeitos.
Também da opinião
que o deferimento tácito não deve impedir a ação de condenação à prática de ato
devido, é Rita Calçada Pires[8], a
autora defende que a realidade jurídica mostra que o instituto do deferimento
tácito tem enormes falhas de proteção dos particulares. E afirma ainda que é
importante ter em conta os riscos que este instituto pode apresentar para a
vida em sociedade devido às desvantagens inerentes à demora na tomada de
decisão. Na senda de João Tiago Silveira, a autora faz uma referência às
criticas apresentadas por este autor em relação ao instituto do deferimento
tácito. Nomeadamente este instituto ser propiciador de comportamentos ilícitos,
ser uma figura atentória de interesses públicos e de terceiros, o fato de
devolver a competência decisória administrativa aos particulares, ser
potenciador de vícios no funcionamento da administração, levar à falta de
segurança do particular e por último as suas dificuldades de execução. Rita
Calçada Pires propõe como solução, nos casos em que a Administração nada diz, e
em que a lei oferece o valor de ato tácito de silêncio, passar a preconizar-se a sua interpretação como mero fato potenciador
da utilização do pedido de condenação à prática de ato devido. Assim sendo o
ato tácito de deferimento deve estar incluído no conceito de omissão
administrativa.
Não concordamos
com as primeiras três opiniões referidas, inclinamo-nos para as duas últimas,
somos inclusive da opinião que o ato tácito deve ser eliminado e os artigos
108.º e 109.º revogados, sendo que no caso do art. 109.º é unânime na doutrina
que este foi revogado com a entrada em vigor do CPTA. Dado haver hoje um meio
eficiente de garantia das pretensões dos particulares, a ação de condenação à
prática de ato legalmente devido, não nos parece fazer sentido continuar a
apoiar a manutenção de uma figura que incentiva ao comportamento não só inerte
mas também ilegal da Administração, tendo em conta que à Administração incumbe
um dever de agir, previsto como referido em cima no art.9.º do CPA. Ainda para
mais quando um dos objetivos da criação à ação de condenação à pratica de ato
devido era o de haver uma mudança de comportamento por parte da Administração.
Os requerimentos
feitos à administração devem ter respostas expressas e não respostas
presumidas, que muitas vezes nem satisfazem completamente os interesses do
particular, ou no caso de relações multilaterais prejudicam alguma das partes.
A posição do titular de direitos ficará mais tutelada através de uma condenação
da administração à prática de ato devido, do que através da formação de ficções
jurídicas.
Esta figura
tinha todo sentido antes da entrada em vigor do CPTA, sendo que não havia mais
formas de tutela dos particulares, antes algum efeito do que nenhum, mas com a
entrada em vigor da referida lei, a sua função desapareceu, continuar a
insistir nesta figura só levará ao desincentivo de uma mudança de atitude por
parte da Administração, que bem sabemos
ser necessária.
Bibliografia:
·
- ALMEIDA, Mário Aroso de, “Manual de Processo Administrativo”, Coimbra, Almedina, 2013;
- ALMEIDA, Mário Aroso de, O novo regime do processo nos tribunais administrativos, 4ºedição, Almedina, 2005;
- ALMEIDA, Mário Aroso de, “Sobre as acções de condenação à prática de actos administrativos”, Instituto de Ciências Jurídico Políticas, Temas e Problemas do Contencioso Administrativo, 2ªedição;
- ANDRADE, José Carlos Vieira de – A Justiça Administrativa (Lições). Almedina, 2005;
- MANCHETE, Rui, “A condenação à prática de ato devido - algumas questões”, CJA, nº50, Março/Abril de 2005;
- MEALHA, Fernanda Maças Esperança, “A condenação à prática de ato devido na jurisprudência”, Revista do Ministério Público, nº117, 2009;
- PIRES, Rita Calçada – O Pedido de Condenação à Prática de Acto Administrativo Legalmente Devido – Desafiar a Modernização Administrativa?. Almedina, 2006;
- SÉRVULO, José Manuel Correia, “O incumprimento do dever de decidir”, CJA, nº54, Novembro/Dezembro de 2005;
- SILVA, Vasco Pereira da, “O Contencioso Administrativo No Divã Da Psicanálise”, 2.º edição, Coimbra, Almedina, 2009.
[1]
SILVA, Vasco
Pereira da, “O Contencioso Administrativo No Divã Da Psicanálise”, 2.º edição,
Coimbra, Almedina, 2009, pag. 377.
[2]
ALMEIDA, Mário
Aroso de, “Sobre as acções de condenação à prática de actos administrativos”,
Instituto de Ciências Jurídico Políticas, Temas e Problemas do Contencioso
Administrativo, 2ªedicção, pag.90 e ss.
[3] SÉRVULO, José Manuel Correia, “O
incumprimento do dever de decidir”, CJA, nº54, Novembro/Dezembro de 2005,
pag.16.
[4]
ALMEIDA, Mário
Aroso de, “Manual de Processo Administrativo”, Coimbra, Almedina, 2013, pag.
166.
[5]
SÉRVULO, José
Manuel Correia, “O incumprimento do dever de decidir”, CJA, nº54,
Novembro/Dezembro de 2005, pag.30.
[7] SILVA, Vasco Pereira da, “O Contencioso Administrativo
No Divã Da Psicanálise”, 2.º edição, Coimbra, Almedina, 2009, pag 397 e ss.
[8]
PIRES, Rita Calçada
– O Pedido de Condenação à Prática de Acto Administrativo Legalmente
Devido – Desafiar a Modernização Administrativa?. Almedina, 2006, pag .75.
Número: 20804
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