quarta-feira, 29 de outubro de 2014

Análise dos números 1 e 2 do artigo 95.º do CPTA

O objecto do processo, para o Professor Vasco Pereira da Silva, é o elemento essencial que “assegura a ligação entre a relação jurídica material e a relação jurídica processual, determinando quais os aspectos da relação jurídica substantiva que foram trazidos a juízo”. Do objecto do processo fazem parte o pedido e a causa de pedir, que o professor considera serem “o verso e reverso da mesma medalha”. O pedido e a causa de pedir são o meio de alegação da existência de um direito subjectivo na relação material entre as partes. Dado o tema a expor no post, há que atentar na causa de pedir, principalmente quanto aos processos impugnatórios para melhor compreensão da discussão doutrinária em estudo.
A função do contencioso, na fase da sua infância, era a da tutela da legalidade e do interesse público, menosprezando as posições subjectivas dos particulares. Nesta fase em que dominava a perspectiva objectivista, a doutrina considerava a causa de pedir como “as alegações do autor referentes ao acto administrativo”, centrada na validade ou invalidade do ato, independentemente de existirem interesses materiais subjectivos lesados. Esta perspectiva contrapõe-se à perspectiva subjectivista que consagra a protecção dos direitos subjectivos dos particulares, pelo que a lesão que o ato administrativo produz nos direitos da parte lesada passa a constituir a causa de pedir.
Com a reforma do contencioso de 2002-2004, vem-se consagrar a óptica subjectivista como está disposto no artigo 2.º/2 (“A todo o direito ou interesse legalmente protegido corresponde a tutela adequada junto dos tribunais administrativos...”) do CPTA e 268.º/4 CRP ( “É garantido aos administradores tutela jurisdicional efectiva dos seus direitos ou interesses legalmente protegidos...”), com alguns aspectos referentes à perspectiva objectivista como é exemplo o artigo 9.º/2 CPTA. À luz deste artigo, quando se trata de acção popular ou de acção pública, a tutela da legalidade e do interesse público podem formar a causa de pedir.
A regra geral estabelecida quanto à causa de pedir, por força do disposto no artigo 95.º/1 do CPTA, é que esta constitui limite para aquilo que pode ser apreciado pelo tribunal, o que corresponde ao desenvolvimento do princípio do contraditório, no entanto, moderado dada a imposição feita ao juiz de se ocupar das questões a que a lei determine ou permita o conhecimento oficioso . A regra é portanto, que só os factos alegados pelas partes podem ser alvo de apreciação judicial.
Quanto à análise do artigo 95.º/2 do CPTA, o professor Vasco Pereira da Silva considera que a norma em questão pode, dividir-se em duas partes. Quanto à primeira- "o tribunal deve pronunciar-se sobre todas as causas de invalidade que tenham sido invocadas contra o acto impugnado, excepto quando não possa dispor dos elementos indispensáveis para o efeito"- pretende-se que se aprecie a integralidade dos direitos alegados pelo particular, para evitar que apenas se aprecie parcialmente as ilegalidades do ato. Devem por isso, ser apreciadas todas as ilegalidades que existam, mesmo que o conhecimento parcial só por si servisse para impugnar a validade da atuação administrativa. Desta forma, evitam-se as apreciações sucessivas sob renovações de atos administrativos que levam a anulações, dado na apreciação do primeiro ato não terem sido considerado integralmente o ato. Conclui-se então que seria muito lesivo para as partes a inexistência desta norma pois a administração poderia renovar um ato anteriormente revogado invocando um argumento já contestado pelo autor mas que não tivesse sido alvo de pronuncia pelo tribunal. Para o professor regente, esta norma consagra de forma acrescida a protecção dos direitos dos particulares.
O ponto controverso deste tema gira em torno da questão de interpretação da segunda parte no número 2 do artigo 95.º do CPTA. Esta norma estatui que “Nos processos impugnatórios, o tribunal deve pronunciar-se sobre todas as causas de invalidade que tenham sido invocadas contra o acto impugnado, excepto quando não possa dispor dos elementos indispensáveis para o efeito, assim como deve identificar a existência de outras causas de invalidade diversas das que tenham sido alegadas, ouvidas as partes para alegações complementares pelo prazo comum de 10 dias, quando o exija o respeito pelo princípio do contraditório”. O problema põe-se quanto à amplitude do dever do juiz de “identificar a existência de causas de invalidade diversas” das que tenham sido alegadas pelas partes. Mais concretamente, discute-se se esta norma será uma excepção ao artigo 95.º/1 do CPTA quanto aos processos impugnatórios de atos administrativos, consagrando aqui o princípio do inquisitório, ou se apenas legitima o dever do juiz para identificar todas as ilegalidades de que o ato administrativo em causa padece, reforçando o princípio iura novit cura.
Existem três principais interpretações doutrinárias a ter em conta:
A excepção à regra e regresso à perspectiva objectivista – O entendimento do professor Vieira de Andrade:
O professor considera que “a questão principal a resolver no processo é, em qualquer caso, nos termos da lei, a da “ilegalidade” (ilegitimidade judiciária) do acto impugnado e não necessariamente a da lesão de um direito substantivo do particular, que pode nem existir no caso”, entende-se pois que o seu entendimento sobre a causa de pedir seja o de que cabe ao juiz conhecer todos os vícios invocados pelo autor mas também averiguar outras ilegalidades que estejam presentes no ato que é impugnado, não se limitando o juiz àquilo que é a causa de pedir invocada pelo autor, desvalorizando-a. O professor estende ao Ministério Público o poder de invocar vícios não invocados pelo autor.
Como críticas a esta tese temos o Professor Vasco Pereira da Silva, que considera que este entendimento permite ao juiz confundir o seu papel com o de parte processual, dado este poder modificar o objecto do processo. O próprio professor Vieira de Andrade admite que esta teoria leva a problemas jurídicos, relativos ao caso julgado e quanto à natureza do poder judicial à luz dos princípios constitucionais da imparcialidade, independência e contraditório.
O ponto de vista defendido pelo professor Mário Aroso de Almeida – Pretensão impugnatória como centro do processo impugnatório:
A concepção deste professor parte da ideia de objecto do processo impugnatório ser em primeira linha, apelando ao conceito técnico de objecto do processo (Streitgegenstand), a pretensão impugnatória que o autor deduz em juízo. Claro que o ato impugnado é central no processo constituindo o objecto de ataque (Angriff) sobre o qual o processo se vai mover.
Impugnar um ato não se baseia só no reconhecimento da ilegalidade do ato mas também na definição de como se deve comportar a administração, não podendo esta criar um ato com o mesmo conteúdo e forma nessas circunstancias. Há assim, proibição de reincidência.
O objecto do processo impugnatório tem então uma finalidade de anular ou declarar a nulidade de certo ato, fundado na sua invalidade, mas também de fazer com que o tribunal reconheça que a atuação da Administração foi para além dos seus poderes, seja por vícios quanto aos pressupostos do ato, seja por vícios relativos ao seu conteúdo ou por se verificarem factos impeditivos ou extintivos que não permitiam à administração exercer esse poder, como vícios de forma, procedimento,ou poderes discricionários.
Partindo desta concepção, o professor considera que o artigo 95.º/2 do CPTA pode ser interpretado como uma imposição ao tribunal de se pronunciar sobre todos os vícios que tenham sido invocados contra o ato impugnado e, assim, porventura reconhecer a procedência de vários deles, evitando que a administração renove ato impugnado invocando um argumento que já tinha sido invocado da primeira vez e cuja ilegalidade o interessado já da primeira vez tinha contestado mas sem que o tribunal se tivesse pronunciado. Nega-se à Administração o poder para praticar esse acto.
A interpretação da parte da norma que estatui que o juiz deve identificar a “existência de causas de invalidade diversas das que tenham sido alegadas” não constitui uma mera manifestação do principio iura novit curia mas vai mais além, podendo o juiz identificar, no episódio da vida que foi trazido a juízo, ilegalidades diversas daquelas que foram alegadas pelo autor, pois “quanto maior for o número de vícios que o tribunal identifique, maior a extensão de preclusões que da sentença se projectarão sobre o ulterior exercício do poder por parte da Administração”.
Contrariamente a este pensamento, o professor Vasco Pereira da Silva considera que o que importa na interpretação deste artigo não é a verificação da extensão da pretensão anulatória deduzida no processo em causa como se esta não estivesse aglutinada com a relação jurídica material trazida a juízo. O que está em causa é a lesão dos direitos do particular e não o ato administrativo sem mais. O professor Mário Aroso de Almeida parte do direito processual para o direito substantivo, reconduzindo as posições subjectivas dos particulares às ilegalidades do ato.  Alargar o objecto da causa de pedir ligada com as pretensões das partes não pode separar-se da relação jurídica material, nem dos direitos subjectivos dos particulares que constituem o objecto processual sempre que estão em causa acções para defesa de interesses próprios. Não parece concebível no sistema português um direito subjectivo à anulação, havendo uma confusão entre a relação jurídica substantiva e processual, entre direito de acção e direito subjectivo do particular. Nas palavras do professor Vasco Pereira da Silva, "uma coisa é o direito de acção, que permite a protecção jurídica mediante a actuação dos tribunais, outra coisa são os direitos subjectivos de que os privados são titulares nas relações jurídicas administrativas" - o direito de anulação é meramente instrumental em relação aos direitos subjectivos.
A interpretação livre de traumas do Professor Vasco Pereira da Silva:
Afastando-se totalmente da antiga técnica dos vícios do ato,  interpretação dada ao artigo 95.º/2 CPTA, segunda parte é, para o professor, que esta norma confere ao juiz uma margem para identificar ou individualizar ilegalidades não invocadas pelo autor, limitando-se aos factos por esta apresentados no processo. Reitera-se aqui o princípio da iure novit cura, podendo o juiz qualificar de forma diferente a ilegalidade trazida a juízo pelas partes.
Se esta norma permitisse a identificação de factos novos, poder-se-ia confundir o papel do juiz, podendo ele exercer um poder apenas permitido às partes. Este não pode trazer factos novos para o processo. Posto isto, o artigo em discussão confirma o disposto no artigo 95.º/1 do CPTA, introduzindo um alargamento no poder do juiz, possibilitando a apreciação directa dos direitos dos particulares e dos factos causadores da respectiva lesão.

Analisadas as três visões sobre a interpretação, sigo a tese do professor Vasco Pereira da Silva, sendo que o 95º/2 CPTA reitera o principio do contraditório e do dispositivo, sendo que não se está perante a consagração do principio do inquisitório. Desde que o vício resulte das pretensões das partes, o juiz pode conhecer do direito e qualificar de forma diferentes factos alegados pelas partes. O que importa actualmente para o contencioso administrativo é a defesa dos direitos dos particulares, atacando os factos que lhes causam lesão.
Penso que se possa dizer que, para além do próprio legislador em algumas matérias, também alguma doutrina está agarrada aos resquícios históricos que devem fazer parte do passado do contencioso administrativo. No caso do tema exposto interpreto que o legislador procurou apenas reiterar que o juiz conhece o Direito, não criando uma excepção que dê mais poder ao juiz que aquele que é permitido na regra estabelecida no artigo 95.º/1 CPTA. Mas o mesmo não acontece com parte da doutrina, este “trauma” leva a interpretações da lei que podem pôr em causa a protecção plena e efectiva dos direitos dos particulares e leva o juiz a transformar-se numa verdadeira parte processual, querendo regressar à perspectiva objectivista .

Joana de Castilho Duarte Gato, nº 22134

Bibliografia:
Almeida, Mário Aroso deManual de Processo AdministrativoAlmedina, 2010;
Silva, Vasco Pereira daO Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise2ª edição, Almedina, 2009.


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