quarta-feira, 29 de outubro de 2014


LEGITIMIDADE ACTIVA NO CONTENCIOSO ADMINISTRATIVO: CASO ESPECIAL DA IMPUGNAÇÃO DE ACTOS ADMINISTRATIVOS PELOS TITULARES DE DIREITOS OU INTERESSES LEGALMENTE PROTEGIDOS


            A legitimidade processual é um dos pressupostos processuais relativos às partes a par de outros como, personalidade judiciária, capacidade judiciária e patrocínio judiciário. Amplamente, pode afirmar-se que a legitimidade processual reporta-se à relação entre as partes em litígio e o objecto determinado, levando então a divisão entre legitimidade activa isto é, do lado do autor quem alegue ser titular dum direito ou interesse em causa, e legitimidade passiva ou seja, do lado oposto, o demandado, contra quem é formulado o pedido.

            Esclarecida desta forma a legitimidade activa poderia dizer-se que o autor é parte legitima sempre que alegue ser parte na relação material convertida, como refere o artigo 9º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos. Todavia, este artigo é apenas uma regra residual, uma vez que os artigos 40º, 55º, 68º e 73º do código referido são preceitos especiais que vem alargar a legitimidade activa podendo então concluir-se que só quando a legitimidade activa não se encontra preenchida nos termos destes artigos é que podemos encontrar fundamento para a mesma com basse no artigo 9º.

            Uma das regras especiais acerca da legitimidade activa no âmbito de processos cujo objecto é a impugnação do acto administrativo encontra-se no artigo 55º/1 alínea a) do CPTA em que o pressuposto para a legitimidade do autor estar preenchida é a existência de um interesse directo e pessoal. Ora, para uma melhor compreensão do sistema actual e nomeadamente do artigo em análise cabe agora uma breve exposição sobre a evolução do contencioso administrativo quanto às partes no processo.

            A fórmula actual sobre as partes no contencioso administrativo nem sempre foi tão clara e evidente como hoje a encontramos na lei, podemos até avaliar a evolução deste pressuposto da seguinte forma sintética e resumida em três fases: inicialmente, as partes não têm existência como pressuposto processual, com a evolução para o Estado Social encontra-se um período de reconstrução da dogmática em que há uma enorme complexidade no relacionamento das partes no processo e, por fim a consagração constitucional das partes como pressuposto processual.

            A primeira fase encontra-se imediatamente após Revolução Francesa em que o panorama era a consagração dum Estado Liberal tendo em conta o compromisso com a separação de poderes levada ao seu extremo no que toca à fase inicial do contencioso administrativo uma vez que os juízes eram entendidos como as bocas que pronunciam as palavras da lei devido a uma maior confiança na lei elaborada por órgãos com representação popular por contraposição a uma desconfiança no poder judicial. Assim, o contencioso administrativo tinha como fim único a verificação da legalidade da actuação administrativa na medida em que o princípio da legalidade obriga a Administração a não actuar sem força de lei emanada do poder legislativo; esta verificação da legalidade tinha que ser no entanto harmonizada com a missão da Administração Pública em fazer desaparecer as distinções entre as classes sociais, e por isso em vez de Administração Publica e o particular serem partes no processo eram colaboradores da defesa da legalidade, estamos perante um dos traumas da infância difícil do contencioso administrativo, como denomina o Professor Vasco Pereira da Silva.

            Analisando a segunda e terceira fase de forma sumária, o caminho em sentido para o Estado Social isto é, um Estado prestador de serviços à comunidade, o quadro altera-se com o abandono da ideia de que já não é apenas a Administração que tem que conduzir a sua actuação de acordo com a lei, como também o particular passa a ser parte interessada e com direitos legalmente protegidos, deste modo consagra-se a relação jurídica administrativa que justifica as partes como pressuposto processual.

            Deste modo podemos fazer a ponte com a actualidade, observando os números 4 e 5 do artigo 268º da Constituição da Republica Portuguesa e 2º do CPTA que concretiza o direito de acesso a justiça pelos particulares no que diz respeito a actuação da Administração pública e o artigo 6º do CPTA que refere-se a igualdade das partes.

            Regressando ao artigo 55º/1 alínea a) podemos dar-lhe então uma justificação triangular do seu significado ou seja, a Administração Pública tem como fim a prossecução do interesse público nos termos do artigo 266º/1 da CRP, no entanto para a realização desse mesmo fim pode entrar em conflito com os interesses dos próprios cidadãos que por sua vez podem agir contra a actuação da Administração através da tutela jurisdicional efectiva constitucionalmente consagrada e, deste modo para dar concretização a este preceito um dos pressupostos para estar auferida a legitimidade processual activa no contencioso administrativo é ser-se titular de um interesse. Cabe agora então problematizar a questão de como se retira na prática se há ou não um interesse que atribua legitimidade ao autor.

            O artigo 55º/1 alínea a) socorre-se de uma das técnicas legislativas que é a utilização de conceitos indeterminados – interesse directo e pessoal - ou seja, conceitos vagos e amplos quanto ao seu conteúdo que na prática precisam de uma concretização, de um preenchimento quanto ao seu significado e quanto às situações que abrange. A doutrina tem vindo a preenche-los da seguinte forma: o conceito pessoal como vantagem ou utilidade que se repercute na esfera jurídica do autor e não de outrem; o conceito de directo como vantagem ou utilidade imediata, ou seja o interesse na impugnação do acto tem por base a lesão do interesse do autor no momento da impugnação; com este preenchimento não acolho a posição do Professor Mário Aroso de Almeida[1] quanto ao facto de o conceito directo não se tratar de um pressuposto de legitimidade processual mas sim com a necessidade ou não de tutela judiciária ou seja referente a um interesse de agir ou optar por outros meios de tutela, respeitando o principio legalidade e visto que o código não refere o interesse directo como um pressuposto processual autónomo, estes dois conceitos servem para limitar a cláusula geral do artigo 55º/1 a) de modo a não dar um “cheque em branco” a todo e qualquer interesse, embora a lógica seja que basta haver interesse na impugnação do acto administrativo para que haja legitimidade activa, esta deve ser moderada por paramentos para que não haja um excesso de extensão da legitimidade do lado do autor, logo estamos ainda no âmbito de verificação de legitimidade activa e então um problema de legitimidade e não outro pressuposto processual autónomo.

            O acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 18 de Maio de 2004, processo nº 269/02 pode servir para melhor ilustrar este preenchimento do que é um interesse pessoal e directo na legitimidade activa, na medida em que o STA considerou haver legitimidade activa no contencioso administrativo o titular de um direito ou de um interesse legalmente protegido vê este direito ou interesse ser prejudicado pela prática do acto impugnado e que, por isso, espera obter com a sua anulação um determinado benefício aqui se verifica os pressupostos artigo 55º/1 alínea a) interesse da parte em causa sustentado por uma lesão ou desvantagem do acto administrativo – directo - na sua esfera jurídica – pessoal. Assim, não se trata de toda e qualquer vantagem pessoal mas sim de vantagens que recaiam na esfera do interessado do ponto de vista jurídico e não meramente moral por exemplo como refere a titulo exemplificativo o artigo 55º/1 a) II parte, "direitos ou interesses legalmente protegidos"; e ainda para se determinar que a vantagem é directa para o interessado temos que ter presente a actualidade da lesão e não meros efeitos hipotéticos e futuros que a procedência da acção lhe possa desencadear.

Numa outra visão encontramos a perspectiva do Professor Vasco Pereira da Silva[2] que tem por base uma ideia de “posição substantiva de vantagem” é o pressuposto que basta para haver legitimidade activa no contencioso administrativo independentemente da sua proveniência isto é, não interessa se estamos a tratar da legitimidade activa auferindo-a de direitos subjectivos, interesses difusos ou legítimos uma vez que todos têm origem em normas jurídicas que protegem os interesses dos particulares quanto mais não sejam as que imponham deveres a Administração Pública, unificando deste modo todo o tipo de interesses que legitimam autor a impugnar o acto administrativo junto dos tribunais. Quanto a esta óptica resta acrescentar o seguinte comentário, a verdade é que o artigo 55º1 aliena a) trata-se de uma cláusula geral ou seja, é uma disposição normativa cujo conteúdo é intencionalmente amplo, não obstante é complementada por dois conceitos indeterminados “pessoal e directo” que vem estabelecer algumas balizas quanto ao âmbito de aplicação da norma. E, sendo a própria lei a fazer distinguir para os mais variados casos os tipos de interesse que são necessários encontrar no caso concreto para que possamos afirmar a existência de legitimidade activa então esta junção de todos os interesses parece ser uma interpretação demasiado extensiva; ainda assim, numa lógica de protecção dos interesses dos particulares não é de excluir esta ideia de “posição substantiva de vantagem” ainda que com a devida limitação encontrada novamente preenchimento daquilo que caberia nesta cláusula.

Em suma, como já se pronunciou o STA o princípio da tutela jurisdicional efectiva não é absoluto nem de aplicação indiscriminada ou irrestrita, não dispensando a necessidade de utilização dos meios e fórmulas processuais adequadas[3] e deste modo conclui-se que a cláusula geral não é aberta a todo e qualquer interesse mas sim limitado critérios aos quais devemos dar concretização na análise do caso concreto fazendo as seguintes questões ao interesse do autor como “Qual a vantagem da procedência para a acção? A vantagem recai somente na sua esfera jurídica? E quanto a vantagem os seus efeitos não serão meramente mediatos ou terão repercussões imediatas e iminentes?”, só assim podemos averiguar correctamente à letra da lei se estamos perante casos em que se verifica preenchido o pressuposto processual da legitimidade activa, sem fazer uma interpretação demasiado extensiva da cláusula geral uma vez que o legislador em certo modo limitou-a de modo a não dar ao juiz uma margem de manobra demasiado vaga que concedesse um conteúdo ainda mais extenso da legitimidade activa. Ainda assim, o preceito em análise não foi objecto de alteração até a data no projecto de revisão do CPTA[4], por isso há-de qualificar-se o titular dum interesse directo e pessoal todo aquele autor que perante a procedência da acção de impugnação do acto administrativo retira uma vantagem material  do ponto de vista jurídico, ou seja não são todas as vantagens que podem vir a ter efeitos na vida do particular, e que se repercutam na esfera jurídica do interessado, ou seja que o efeito jurídico da decisão teve a uma utilidade na esfera jurídica do autor no momento presente.

Marina Augusto
Nº de aluna 22269

           

             




[1] Mário Aroso de Almeida, Manual de Processo Administrativo págs. 235 e seguintes
[2] Vasco Pereira da Silva, O contencioso administrativo no divã da psicanálise, 2º Edição, págs. 254 e seguintes
[3] Ac. Do STA de 18 de Maio de 2004, processo nº 269/02
[4] Projecto de Revisão do Código de Processo dos Tribunais Administrativos:
Artigo 55.º
[…]
1 – […]:
a) […];
b) O Ministério Público, em defesa dos direitos fundamentais dos cidadãos, de
interesses públicos especialmente relevantes ou de algum dos valores ou bens
referidos no n.º 2 do artigo 9.º;
c) Entidades públicas e privadas, quanto aos direitos e interesses que lhes cumpra
defender;
d) Órgãos administrativos, relativamente a atos praticados por outros órgãos da
mesma pessoa coletiva pública que alegadamente comprometam as condições
do exercício de competências legalmente conferidas aos primeiros para a
prossecução de interesses pelos quais esses órgãos sejam directamente
responsáveis;
e) […];
 f) […].
2 - A qualquer eleitor, no gozo dos seus direitos civis e políticos, é permitido impugnar
as decisões e deliberações adoptadas por órgãos das autarquias locais sediadas na
circunscrição onde se encontre recenseado, assim como das entidades instituídas por
autarquias locais ou que destas dependam.
3 – […].

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