“Transeuteando” pelas vielas da acção popular
O transeunte que numa manhã cinzenta ou solarenga se debruçasse pelos insondáveis trilhos que enlaçam o conceito de acção popular, correria o risco de se ver orfão de um referencial que orientasse a sua caminhada. Debruçamo-nos então, qual candeia que ilumina o bréu, e iluminados pela índole filantrópica que caracteriza o ser humano, no ardiloso e nobre ofício de desvendar as brumas que encobrem a tão multifacetada acção popular. Cumpre neste prólogo ressalvar que a exposição será breve e sumária. O tempo urge, há que acompanhar o nosso transeunte na sua caminhada para que esta seja fecunda. Encetemos então a nossa demanda sem mais delongas. Na peugada de qualquer artista, seguimos e abraçamos a afirmação trivial de que os edifícios não se constroem pela cúpula, como tal torna-se necessário que perscrutemos o lastro histórico que alicerça e envolve o tema central deste trabalho. Desvela-se assim a primeira paragem do nosso transeunte- O Panteão(1) da acção popular. Olhando aturadamente para o imponente monumento torna-se possível observar que este é constituído na sua base por 6 alicerces que encerram uma cúpula. Os 6 alicerces são representativos dos 6 momentos cruciais da evolução histórica deste conceito.
1º alicerce: As origens da acção popular remontam à aclamada Grécia antiga, um dos berços da civilização, bem como ao direito Romano. É na na Grécia antiga, mais propriamente, no chamado processo de Sócrates(2), que radica a fase embrionária e onde se gizaram as coordenadas essenciais da acção popular.
Cumpre ainda referir, que também Roma conheceu a figura, inclusive ao nível penal. A actio de dejectis et effusis, dirigida contra quem lançasse objectos e detritos na via pública e a própria provocatio ad populum através da qual qualquer cidadão podia apelar para a "comitia centuriata" (assembleia do povo) contra decisões administrativas e políticas mesmo que tomadas por magistrados (excepto magistrados detentores de "jus imperium") são institutos que se aproximam do desenho deste mecanismo.
2ª alicerce: A Carta Constitucional de 1826. É no leito deste documento que jaz a primeira consagração do instituto da acção popular num texto constitucional, ainda que o seu âmbito de aplicação sofresse uma enorme refracção em virtude de ser apenas aplicada a alguns crimes praticados por juízes ( art.124º).
3ª alicerce: O código administrativo de 1842. Trata-se do primeiro código a consagrar expressamente a acção popular. Cumpre no entanto ressalvar que esta assumia um cariz correctivo,visando o controlo da legalidade de certos actos da Administração, limitando-se numa primeira fase o controlo à matéria eleitoral, sendo este ulteriormente alargado e passado a abranger também outros actos da administração local que se tivessem como contrários ao interesse público e à lei.
4ª alicerce: O código administrativo de 1878. Com a consagração neste código, o instituto da acção popular revestiu-se de uma índole supletiva, pois balizava apenas o suprimento das omissões dos orgãos públicos locais, quando tal se revelasse necessário face a um ataque aos bens e direitos da administração
5ª alicerce: A Constituição de 1976. Esta referência assume contornos de grande aquidade, pois é nela que se encontra insofismavelmente reconhecido o direito fundamental de acção popular, estando esta inserida no capítulo dedicado aos direitos, liberdades e garantias.de participação política. As revisões constitucionais subsequentes ( 1989 e 19997) vieram ainda a alargar das modalidades de acção popular.
6º alicerce: Lei nº 83/95, de 31 Agosto. Com o promulgar desta lei a acção popular vê finalmente o seu “regime jurídico” fixado, esfumando-se as vozes que ululavam que estariamos perante uma inconstitucionalidade por omissão(art. 52º nº 3 da CRP ) . Esta lei tem como substracto os projectos de lei nº21/VI, do Partido Comunista Portugês e nº 41/VI, do Partido Socialista.
Chegado o ocaso desta breve explicação da evolução histórica da acção popular cabe agora dismistificar, o que na nossa óptica, encerra a cúpula do Panteão. Deste modo, mais importante que o conceito dogmático de acção popular e de todas a mundividências que o cercam, é compreender que a cúpula representa uma mudança do paradigma individualista do Direito. Neste quadro fáctico, a cúpula do panteão representa o culminar de um processo de consciencialização secular, sufragando-se hodiernamente que a concepção individualista do Direito se tornou, insuficiente ou inadequada à resolução dos novos conflitos multipolares, atomísticos e pluri-ofensivos. Através da Lei 83/95 de 31 de Agosto, que veio regular o direito de participação procedimental e de acção popular, consagrou-se no ordenamento jurídico português um modo de acesso supra-individual à justiça, a par do que sucede já em outros ordenamentos com os mecanismos de "class action", "substituted action" ou das "citizen suits" do sistema norte-americano e anglo-saxónico, ou ainda da "acção civil pública" do Direito brasileiro, na defesa de interesses de titularidade plural.
Chegado o ocaso desta breve explicação da evolução histórica da acção popular cabe agora dismistificar, o que na nossa óptica, encerra a cúpula do Panteão. Deste modo, mais importante que o conceito dogmático de acção popular e de todas a mundividências que o cercam, é compreender que a cúpula representa uma mudança do paradigma individualista do Direito. Neste quadro fáctico, a cúpula do panteão representa o culminar de um processo de consciencialização secular, sufragando-se hodiernamente que a concepção individualista do Direito se tornou, insuficiente ou inadequada à resolução dos novos conflitos multipolares, atomísticos e pluri-ofensivos. Através da Lei 83/95 de 31 de Agosto, que veio regular o direito de participação procedimental e de acção popular, consagrou-se no ordenamento jurídico português um modo de acesso supra-individual à justiça, a par do que sucede já em outros ordenamentos com os mecanismos de "class action", "substituted action" ou das "citizen suits" do sistema norte-americano e anglo-saxónico, ou ainda da "acção civil pública" do Direito brasileiro, na defesa de interesses de titularidade plural.
Tempus fugit. O nosso transeunte faz eco desde brocardo. Encontramo-nos a meio da fase “ da cabeça de jano”(3). Há que olhar para a frente mas sem perder de vista o passado, por isso segue estrada fora em direcção ao vernáculo ( 4) ( da acção popular. Segundo a pena pessoana(5) e inspirados pela insigne madame blavatsky (6), é a “Hora de retirar a Ísis o seu véu”, explorando e desvelando as pluridimensionalidade de valencias bifurcantes do instituto da acção popular. Cabe agora, na economia da presente exposição definir o conceito de acção popular, além de iluminar o nosso transeunte a atravessar as vielas sinuosas da sua incindível legitimidade. Em Portugal, a acção popular é vista como um direito fundamental de acesso aos tribunais (artigo 20º da Constituição Portuguesa). Esse direito é-o para os membros de uma “certa comunidade”, não sendo possível a apropriação individual do mesmo (falamos por isso de interesses difusos ). Deste modo, concluímos que o autor popular nunca age em seu nome, mas antes em nome da colectividade ou comunidade a que pertence.
A acção popular encontra-se prevista no artigo 52º, nº 3 da Constituição da República Portuguesa. Torna-se agora oportuno e repleto de sentido levantar a bizantina questão : Qual a sua natureza jurídica?
A acção popular, de acordo com a nossa visão não constitui um meio processual per si, mas antes uma forma de alargamento da legitimidade processual
activa a todos os cidadãos. Por não ser uma acção em sentido técnico, a acção popular
comporta qualquer mecanismo útil para a prevenção, cessação ou perseguição judicial
do interesse a que se destina. Teixeira de Sousa defende por isso que a tutela dos interesses difusos pela acção popular se dá de forma concreta e abstracta, uma vez
que compreende qualquer meio de tutela admissível na área civil e administrativa .
Cabe ainda referir que o art. 9º, nº 2 do CPTA constitui um dos momentos objectivistas
de um contencioso administrativo tendencialmente subjectivista, muito à semelhança
do modelo de justiça administrativa alemã.
Têm sido vários os autores nacionais a tentar delimitar o conceito de acção
popular. Procuraremos delimita-lo sem kafkianismos nem esoterismos. Aqui, perfilhamos do sufragado pelo Professor Paulo Otero, entendo este que a acção popular se trata de um verdadeiro direito fundamental que permite a quem não é titular de um interesse pessoal e directo, o acesso aos tribunais, com o propósito de defender interesses da colectividade.
Desde modo, podemos afirmar que a acção popular é a expressão do
direito fundamental de acesso aos tribunais, jazindo a sua maior particularidade,
na amplitude dos critérios determinativos de legitimidade para a
respectiva propositura.
Tal entendimento foi também acolhido no seio da jurisprudência do Supremo
Tribunal Administrativo ( Acórdão: 07/03/2006. Relator: Juiz Edmundo
Moscoso).
Cabe agora abordar uma questão que tem vindo a ser alvo da mais intensa degladiação doutrinária. Trata-se da questão de auferir se a acçao popular é um mero direito de acção judicial. Referiremos as correntes doutrinárias em clivagem, tentando, se a isso ajudar o “engenho e a arte”, tomar posição nesta contenda. A caminhada já vai longa, chega a penumbra, com ela o silêncio e a necessidade de instrospecção, o nosso transeunte chega ao seu lar. No conforto do seu lar e recostado no seu sofá, os pensamentos tornam-se turvos e o mundo onírico invade o seu pensamento. Vislumbra-se uma porta de entrada com a frase” o segredo mais bem guardado de Lisboa”, subitamente à media luz das lamparinas que ornamentam o espaço, um tumulto de vozes invade a sala. Um súbito laivo de compreensão apodera-se do seu pensamento e o espaço torna-se familiar....é o Foxtrot, lugar por excelência de aventuras, desventuras e epopeias de meieutica e retórica. As imagens são agora claras, os ânimos estão exaltados, a discusão acesa em torno do tema supra mencionado havia começado. De um lado, situa-se a barricada tradicional, albergando no seu âmago, nomes de relevo como Professor Paulo Otero e o Professor Miguel Teixeira de Sousa, com vozes que bramavam que este este instituto seria um direito de acção judicial que se consubstancia na faculdade do seu titular desencadear o exercício da função jurisdicional do Estado, com vista à tutela de um interesse material. De acordo com o
O insigne Professor Paulo Otero, com a eloquência que lhe é fiel irmã clama que existe um alargamento da legitimidade processual activa na
medida em que se prescinde da exigência de que o actor popular tenha um interesse
pessoal e directo. Nas palavras do próprio “A acção popular consubstancia, deste
modo, um meio que permite a um maior número de administrados exercerem uma
função de controlo da Administração, libertos que estão dos estreitos critérios
aferidores da legitimidade existentes ao nível tradicional do recurso contencioso”.
Do outro lado da barricada, encontramos o Professor Vasco Pereira da Silva e o Professor Nuno Marques Antunes, sendo estes os grandes paladinos da
visão subjectiva do contencioso administrativo, exultavam por isso que, em caso de
uma agressão a um direito fundamental, a acção popular não é somente um direito de
acção judicial, mas antes um direito subjectivo público que é contraposto ao dever .
jurídico-constitucional de abstenção que a Administração violou. Assim, passaria também
a haver uma protecção dos interesses difusos que são conduzidos à posição de
interesse legítimo dos cidadãos. A razão parece estar com Paulo Otero pois é a posição por este sufragada, aquela que permite pragmatizar o conceito em apreço e fazes face aos problemas de ordem prática. Antes que nos seja feita a acusação de querer fazer o contencioso administrativo gravitar em torno de apetites vorazes boémios cumpre ressalvar que as grandes revoluções e mudanças de paradigma da humanidade têm como antecâmara espaços de convívio farrista.
Chega ao epílogo esta exposição, esperemos que a caminhada não tenha sido longa demais para o leitor.
Em findo, há apenas que ressalvar que a matéria da acção popular não foi exaustivamente tratada em sede desta pequena exposição( cingimo-nos apenas à sua evolução histórica, definição e legitimidade), fica um sentimento acre de quem tem plena noção que a pena ainda teria uma série de linhas para escrever, mas o tempo escasseia. Mostra-se importante abordar todo o substracto dogmático que esta matéria encerra, no entanto o que deverá ficar na retina do leitor é que acção popular é o anticristo da visão atomicista e individual do Direito, constituindo-se como um mecanismo cine qua non para o erigir de uma democracia verdadeiramente participativa. Resta apenas combater a atitude amorfa e ataráxica dos cidadãos no que à defesa dos seus direitos concerne, pois o legislador já trilhou o caminho que terá de ser percorrido.
1.Actualmente, "panteão" é o termo designado para um mausoléu que abriga os restos mortais de diversas pessoas notáveis., por nossa interpretação extensiva “ acontecimentos notáveis”
2.Sob a forma de acção popular, sob impulso de três concidadãos, Meleto, Ânito e Lícon, acusam sócrates perante o tribunal dos Heliastas de não reconhecer os deuses oficiais e introduzir divindades novas, bem como de corromper a juventude, onde se concluia com o pedido de morte daquele.
3.Com duas cabeças olhando para direções opostas,Jano é o deus romano das entradas, portões e começos. Era o porteiro celestial - toda porta tem dois lados -, representando os términos e começos, passado e futuro.
4. Vernáculo é aqui entendido num sentido figurado, isto é, “aquilo que conserva a genuinidade ou pureza.
5. Alusão ao poema Nevoeiro de Fernando Pessoa na sua obra Mensagem
6. Helena Blavatsky: Grande impulsionadora do esoterismo ocidental e herdeira do hermetismo. “Ísis sem véu” e a doutrina secreta são as suas obras de destaque.
Bibliografia
ALMEIDA, Mário Aroso de,Manual de Processo Administrativo,Almedina, Coimbra, 2012, 1º edição.
DIAS, Vera Elisa Marques,A acção popular civil para a tutela de interesses difusos, 2009. 46f. Relatório de estágio de mestrado para a cadeira de Direito intelectual – Faculdade de DireitoUniversidade de Lisboa, 2009
OTERO, Paulo,A acção popular: configuração e valor no actual Direito Português, in Revista da Ordem dos Advogados, ano 59, Dezembro de 1999. SILVA, Vasco Pereira da,O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise, Almedina, Coimbra, 2009, 2ªedição
SOUSA, Miguel Teixeira de,A legitimidade popular na tutela de interesses difusos, Lex, Lisboa, 2003.
FABRICA, Luís; A Acção Popular no Projecto do Código de Processo nos Tribunais
Administrativos, in “Reforma do Contencioso Administrativo”, Ministério Da Justiça.
Coimbra: Coimbra Editora, 2003
SILVEIRA, Luís Lingnau; A Acção Popular, in “Boletim do Ministério da Ivstiça”, nº 448,
Julho de 1995
ANDRADE, José Robin; A Acção Popular no Direito Administrativo Português, Coimbra:
Coimbra Editora, 1967
Ricardo Moniz, subturma 4
19831
Ricardo Moniz, subturma 4
19831
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