sexta-feira, 31 de outubro de 2014


“Transeuteando” pelas vielas da acção popular

O transeunte que numa manhã cinzenta ou solarenga se debruçasse pelos insondáveis trilhos que enlaçam o conceito de acção popular, correria o risco de se ver orfão de um referencial que orientasse a sua caminhada. Debruçamo-nos então, qual candeia que ilumina o bréu, e iluminados pela índole filantrópica que caracteriza o ser humano, no ardiloso e nobre ofício   de desvendar as brumas que encobrem a tão multifacetada acção popular. Cumpre neste prólogo ressalvar que a exposição será breve e sumária. O tempo urge, há que acompanhar o nosso transeunte na sua caminhada para que esta seja fecunda. Encetemos então a nossa demanda sem mais delongas. Na peugada de qualquer artista, seguimos e  abraçamos a afirmação trivial de que os edifícios não se constroem pela cúpula, como tal torna-se necessário que perscrutemos o lastro histórico que alicerça e envolve  o tema central deste trabalho. Desvela-se assim  a primeira paragem  do nosso transeunte- O Panteão(1) da acção popular.  Olhando aturadamente para o imponente monumento torna-se possível observar que este é constituído na sua base por 6 alicerces que encerram uma cúpula. Os 6 alicerces são representativos dos 6 momentos cruciais da evolução histórica deste conceito. 
1º alicerce: As origens da acção popular  remontam à aclamada Grécia antiga, um dos berços da civilização, bem como ao direito Romano. É na  na Grécia antiga, mais propriamente, no chamado processo de Sócrates(2), que radica a fase embrionária e onde se gizaram as coordenadas essenciais da acção popular. 
Cumpre ainda referir, que  também Roma conheceu a figura, inclusive ao nível penal. A actio de dejectis et effusis, dirigida contra quem lançasse objectos e detritos na via pública e a própria provocatio ad populum através da qual qualquer cidadão podia apelar para a "comitia centuriata" (assembleia do povo) contra decisões administrativas e políticas mesmo que tomadas por magistrados (excepto magistrados detentores de "jus imperium") são institutos que se aproximam do desenho deste mecanismo.
2ª alicerce: A Carta Constitucional de 1826. É no leito deste documento que jaz a primeira consagração do instituto da acção popular num texto constitucional, ainda que o seu âmbito de aplicação sofresse uma enorme refracção em virtude de ser apenas aplicada a alguns crimes praticados por juízes ( art.124º).

3ª alicerce:  O código administrativo de 1842.  Trata-se do primeiro código a consagrar expressamente a acção popular. Cumpre no entanto ressalvar que esta assumia um cariz correctivo,visando o controlo da legalidade de certos actos da Administração, limitando-se numa primeira fase o controlo à matéria eleitoral, sendo este ulteriormente alargado e passado a abranger também outros actos da administração local que se tivessem como contrários ao interesse público e à lei.
4ª alicerce: O código administrativo de 1878. Com a consagração neste código, o instituto da acção popular revestiu-se de uma índole supletiva, pois balizava apenas o suprimento das omissões dos orgãos públicos locais, quando tal se revelasse necessário face a um ataque aos bens e direitos da administração
5ª alicerce: A Constituição de 1976.  Esta referência assume contornos de grande aquidade, pois é nela que se encontra insofismavelmente reconhecido o direito fundamental de acção popular, estando esta inserida no capítulo dedicado aos direitos, liberdades e garantias.de participação política. As revisões constitucionais subsequentes ( 1989 e 19997) vieram ainda a alargar das modalidades de acção popular.
6º alicerce: Lei nº 83/95, de 31 Agosto. Com o promulgar desta lei a acção popular vê finalmente o seu “regime jurídico” fixado, esfumando-se as vozes que ululavam que estariamos perante uma inconstitucionalidade por omissão(art. 52º nº 3 da CRP )  . Esta lei tem como substracto os projectos de lei nº21/VI, do Partido Comunista Portugês e nº 41/VI, do Partido Socialista. 
Chegado o ocaso desta breve explicação da evolução histórica da acção popular cabe agora dismistificar, o que na nossa óptica, encerra a cúpula do Panteão. Deste modo, mais importante que o conceito dogmático de acção popular e de  todas a mundividências que o cercam, é compreender que a cúpula representa uma mudança do paradigma individualista do Direito. Neste quadro fáctico, a cúpula do panteão representa o culminar de um processo de consciencialização secular, sufragando-se hodiernamente que  a concepção individualista do Direito se tornou, insuficiente ou inadequada à resolução dos novos conflitos multipolares, atomísticos e pluri-ofensivos. Através da Lei 83/95 de 31 de Agosto, que veio regular o direito de participação procedimental e de acção popular, consagrou-se no ordenamento jurídico português um modo de acesso supra-individual à justiça, a par do que sucede já em outros ordenamentos com os mecanismos de "class action", "substituted action" ou das "citizen suits" do sistema norte-americano e anglo-saxónico, ou ainda da "acção civil pública" do Direito brasileiro, na defesa de interesses de titularidade plural. 
Tempus fugit. O nosso transeunte faz eco desde brocardo. Encontramo-nos a meio da fase “ da cabeça de jano”(3). Há que olhar para a frente mas sem perder de vista o passado, por isso segue estrada fora em direcção ao vernáculo ( 4) ( da acção popular. Segundo a pena pessoana(5) e inspirados pela insigne madame blavatsky (6), é a “Hora de retirar a Ísis o seu véu”, explorando e desvelando as pluridimensionalidade de valencias bifurcantes do instituto da acção popular. Cabe agora, na economia da presente exposição definir o conceito de acção popular, além de iluminar o nosso transeunte a atravessar as vielas sinuosas da sua incindível legitimidade. Em Portugal, a acção popular é vista como um direito fundamental de acesso aos  tribunais  (artigo  20º  da  Constituição  Portuguesa).  Esse  direito  é-o  para  os membros de uma “certa comunidade”, não sendo possível a apropriação individual do mesmo (falamos por isso de interesses difusos ). Deste modo, concluímos  que o autor popular nunca age em seu nome, mas antes em nome da colectividade ou comunidade a  que  pertence.  
A  acção  popular  encontra-se  prevista  no  artigo  52º,  nº  3  da Constituição da República Portuguesa. Torna-se agora oportuno e repleto de sentido levantar a bizantina questão : Qual a sua natureza jurídica?
A  acção  popular, de acordo com a nossa visão    não  constitui  um meio processual  per  si,  mas  antes  uma  forma  de  alargamento  da  legitimidade  processual 
activa a todos os cidadãos. Por não ser uma acção em sentido técnico, a acção popular 
comporta qualquer mecanismo útil para a prevenção, cessação ou perseguição judicial 
do  interesse  a  que  se  destina.  Teixeira  de  Sousa  defende  por  isso  que  a  tutela  dos interesses difusos pela acção popular se dá de forma concreta e abstracta, uma vez 
que  compreende  qualquer  meio  de tutela  admissível  na  área  civil  e  administrativa  . 
Cabe ainda referir que o art. 9º, nº 2 do CPTA constitui um dos momentos objectivistas 
de um contencioso administrativo tendencialmente subjectivista, muito à semelhança 
do modelo de justiça administrativa alemã. 
Têm  sido  vários  os  autores  nacionais  a  tentar  delimitar  o  conceito  de  acção 
popular. Procuraremos delimita-lo sem kafkianismos nem esoterismos.  Aqui, perfilhamos do sufragado pelo  Professor Paulo Otero, entendo  este que a acção popular se trata de  um  verdadeiro  direito  fundamental  que  permite  a  quem  não  é  titular  de  um  interesse  pessoal  e  directo,  o  acesso  aos  tribunais,  com  o  propósito  de  defender interesses  da  colectividade. 
Desde modo, podemos afirmar que a acção popular é a  expressão do 
direito  fundamental  de  acesso  aos  tribunais,  jazindo a sua maior particularidade,
 na amplitude dos critérios determinativos de legitimidade para a 
respectiva propositura.  
 Tal  entendimento  foi  também   acolhido  no seio da  jurisprudência  do  Supremo 
Tribunal Administrativo ( Acórdão:  07/03/2006.  Relator:  Juiz  Edmundo 
Moscoso).
Cabe agora abordar uma questão que tem vindo a ser alvo da mais intensa degladiação doutrinária. Trata-se da questão de auferir se a acçao popular é um mero direito de acção judicial. Referiremos as correntes doutrinárias em clivagem, tentando, se a isso ajudar o “engenho e a arte”, tomar posição nesta contenda. A caminhada já vai longa, chega a penumbra, com ela o silêncio e  a necessidade de instrospecção, o nosso transeunte chega ao seu lar. No conforto do seu lar e recostado no seu sofá, os pensamentos tornam-se turvos e o mundo onírico invade o seu pensamento. Vislumbra-se uma porta de entrada com a frase” o segredo mais bem guardado de Lisboa”, subitamente à media luz das lamparinas que ornamentam o espaço, um tumulto de vozes invade a sala. Um súbito laivo de compreensão apodera-se do seu pensamento e o espaço torna-se familiar....é o Foxtrot, lugar por excelência de aventuras, desventuras e epopeias de meieutica e retórica. As imagens são agora claras, os ânimos estão exaltados, a discusão acesa em torno do tema supra mencionado havia começado. De um lado, situa-se a barricada tradicional, albergando no seu âmago, nomes de relevo como  Professor Paulo Otero e o Professor Miguel Teixeira de Sousa, com vozes que bramavam que este  este instituto seria  um direito de acção judicial que  se  consubstancia  na  faculdade  do  seu  titular desencadear  o  exercício  da  função jurisdicional do Estado, com vista à tutela de um interesse material. De acordo com o 
O  insigne Professor  Paulo  Otero, com a eloquência que lhe é fiel irmã clama que   existe  um  alargamento  da  legitimidade  processual  activa  na 
medida em que se prescinde da exigência de que o actor popular tenha um interesse 
pessoal  e  directo.  Nas  palavras  do  próprio  “A  acção  popular  consubstancia,  deste 
modo, um meio que permite a um maior número de administrados exercerem uma 
função  de  controlo  da  Administração,  libertos  que  estão  dos  estreitos  critérios 
aferidores da legitimidade existentes ao nível tradicional do recurso contencioso”.  
  Do outro lado da barricada, encontramos  o Professor Vasco Pereira da Silva e o Professor Nuno Marques Antunes, sendo estes os grandes paladinos da 
visão subjectiva do contencioso administrativo,  exultavam por isso  que, em caso de 
uma agressão a um direito fundamental, a acção popular não é somente um direito de 
acção  judicial,  mas  antes  um  direito  subjectivo  público  que  é  contraposto  ao  dever .
jurídico-constitucional de abstenção que a Administração violou. Assim, passaria também 
a  haver  uma  protecção  dos  interesses  difusos  que  são  conduzidos  à  posição  de 
interesse legítimo dos cidadãos. A razão parece estar com Paulo Otero pois é a posição por este sufragada, aquela que permite pragmatizar o conceito em apreço e fazes face aos problemas de ordem prática.  Antes que nos seja feita a acusação de querer fazer o contencioso administrativo gravitar em torno de apetites vorazes boémios cumpre ressalvar que as grandes revoluções e mudanças de paradigma da humanidade têm como antecâmara espaços de convívio farrista. 
Chega ao epílogo esta exposição, esperemos que a caminhada não tenha sido longa demais para o leitor.
Em findo, há apenas que ressalvar que a matéria da acção popular não foi exaustivamente tratada em sede desta pequena exposição( cingimo-nos apenas à sua evolução histórica, definição e legitimidade), fica um sentimento acre de quem tem plena noção que a pena ainda teria uma série de linhas para escrever, mas o tempo escasseia.  Mostra-se importante abordar todo o substracto dogmático que esta matéria encerra, no entanto o que deverá ficar na retina do leitor é que acção popular é o anticristo da visão atomicista e individual do Direito, constituindo-se como um mecanismo cine qua non para o erigir de uma democracia verdadeiramente participativa. Resta apenas combater a atitude amorfa e ataráxica dos cidadãos no que à defesa dos seus direitos concerne, pois o legislador já trilhou o caminho que terá de ser percorrido.

 1.Actualmente, "panteão" é o termo designado para um mausoléu que abriga os restos mortais de diversas pessoas notáveis., por nossa interpretação extensiva “ acontecimentos notáveis”
2.Sob a forma de  acção popular, sob impulso de três concidadãos, Meleto, Ânito e Lícon, acusam sócrates perante o tribunal dos Heliastas de não reconhecer os deuses oficiais e introduzir divindades novas, bem como de corromper a juventude, onde se concluia com o pedido de morte daquele.
 3.Com duas cabeças olhando para direções opostas,Jano é o deus romano das entradas, portões e começos. Era o porteiro celestial - toda porta tem dois lados -, representando os términos e começos, passado e futuro. 
4. Vernáculo é aqui entendido num sentido figurado, isto é, “aquilo que conserva a genuinidade ou pureza.
5. Alusão ao poema Nevoeiro de Fernando Pessoa na sua obra Mensagem
6. Helena Blavatsky: Grande impulsionadora do esoterismo ocidental e herdeira do hermetismo. “Ísis sem véu” e a doutrina secreta são as suas obras de destaque.

Bibliografia
ALMEIDA, Mário Aroso de,Manual de Processo Administrativo,Almedina, Coimbra, 2012, 1º edição.
DIAS, Vera Elisa Marques,A acção popular civil para a tutela de interesses difusos, 2009. 46f. Relatório de estágio de mestrado para a cadeira de Direito intelectual – Faculdade de DireitoUniversidade de Lisboa, 2009
OTERO, Paulo,A acção popular: configuração e valor no actual Direito Português, in Revista da Ordem dos Advogados, ano 59, Dezembro de 1999. SILVA, Vasco Pereira da,O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise, Almedina, Coimbra, 2009, 2ªedição
SOUSA, Miguel Teixeira de,A legitimidade popular na tutela de interesses difusos, Lex, Lisboa, 2003.
FABRICA,  Luís;  A  Acção  Popular  no  Projecto  do  Código  de  Processo  nos  Tribunais 
    Administrativos,  in  “Reforma  do  Contencioso  Administrativo”,  Ministério  Da  Justiça. 
    Coimbra: Coimbra Editora, 2003 
 SILVEIRA, Luís Lingnau; A Acção Popular, in “Boletim do Ministério da Ivstiça”, nº 448, 
     Julho de 1995 
  ANDRADE, José Robin; A Acção Popular no Direito Administrativo Português, Coimbra: 
     Coimbra Editora, 1967 


Ricardo Moniz, subturma 4
19831









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