sexta-feira, 31 de outubro de 2014

A nova alínea n) do n.º1 do artigo 4º no anteprojecto de revisão ,em especial, do Estatuto Dos Tribunais Administrativos e Fiscais

Uma das alterações ao Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais qualificada como mais significativa na exposição de motivos do projeto de lei de revisão do CPTA e do ETAF  é a relativa à definição do âmbito da jurisdição administrativa, mais concretamente no que diz respeito ao seu artigo 4º, que clarifica e aprofunda o âmbito de jurisdição administrativa.

Com efeito este novo artigo 4º constante do Anteprojecto de Revisão opera um alargamento do âmbito material da jurisdição administrativa. Por entre as várias alíneas que operam o alargamento desse âmbito de jurisdição vamos centrar-nos exclusivamente na nova alínea n) do n.º1 do art. 4.º onde passam a ser objecto de impugnação nos tribunais administrativos as decisões da Administração Pública que apliquem coimas, no âmbito do ilícito de mera ordenação social, por violação de normas de direito administrativo em matéria de ambiente, ordenamento do território, urbanismo, património cultural e bens do Estado.

São apontadas razões históricas para que a reserva de juiz na matéria de ilícito contra-ordenacional fosse atribuída ,em exclusivo, aos tribunais judiciais. Entre várias, a proximidade do direito das contra-ordenações ao direito penal e a influência que este ainda exerce sobre aquele milita a favor da opção pelos tribunais judiciais e muitas das contravenções têm igualmente a sua origem no direito penal. Ora, tratando-se de infracções que já eram familiares aos tribunais comuns, por, na sua génese, serem penais, compreende-se com naturalidade a opção do legislador. Por outro lado, em relação a outras novas sanções que não tinham a sua génese na transformação de sanções existentes e que para além disso, retomariam a  tipificação de contra-ordenações, o legislador também  compreensivelmente, por uma questão de coerência ou de não diferenciação de regimes na orgânica judiciária, optou por seguir a mesma solução de reserva ao juiz dos tribunais comuns. Outra razão histórica, que não tolhe no actual paradigma do processo administrativo, residia nos restritos poderes dos tribunais administrativos limitados ao contencioso de anulação e nos limites impostos pela "reserva de Administração".

 No entanto historicamente também é possível encontrar soluções que apoiam esta nova alínea. No início do séc. XX James Goldschmidt foi o primeiro autor a defender um ilícito penal administrativo que se diferencia do ilícito criminal pelos valores que ofende, pelo modo da ofensa e, consequentemente, pelo regime jurídico dos seus efeitos, quer de direito substantivo, quer de direito processual. Por outro lado Eduardo Correia defendendo a descriminalização das normas tipicamente administrativas  destituídas de fundamentação ético-jurídica, e como tal longe de poderem integrar o direito penal defendia "... uma vez assente que cabe à administração a aplicação de tais reacções, não se vê por que se deva retirar às instâncias administrativas, normalmente competentes, o controlo da sua legalidade. De outro lado, e tratando-se de reacções que têm um sentido eminentemente objectivo por oposição à tendência subjectivadora do direito criminal, a mera apreciação da legalidade da decisão administrativa contém largas virtualidades para permitir controlar o quantum da medida patrimonial imposta, como advertência, pela Administração." .   
 
Atualmente podemos dizer que o alargamento operado pela alínea n) vem na sequência de uma evolução natural da reforma de 2002, quando se reconheceu aos tribunais administrativos a competência para promover a prevenção, cessação e reparação de violações a valores e bens constitucionalmente protegidos, em matéria de saúde pública, ambiente, urbanismo, ordenamento do território, qualidade de vida património cultural e bens do Estado, mas que, no entanto excluí o ilícito contra-ordenacional [actual alínea l)  do n.º 1 do art. 4º do ETAF], mas a significar simultaneamente, a contrario, que todos os outro ilícitos não contra-ordenacionais seriam, por regra, da sua competência.

Este ilícito contra-ordenacional não se integra no direito penal, decorre de uma desjudicialização dos processos sancionatórios, correspondendo-lhe uma transferência para o âmbito da administração e difere das normas tipicamente penais pelo facto do respectivo sistema sancionatório se traduzir apenas na aplicação de coimas (ao contrário do que sucede na multa penal onde há a possibilidade de ser convertida em pena de prisão). Da mesma forma na Constituição só o ilícito penal é da reserva do poder judicial, já o ilícito contra-ordenacional constituirá reserva da Administração no que se refere à aplicação das respectivas sanções. Daqui pode  extrair-se que a decisão aplicativa da sanção contra-ordenacional é sempre uma decisão de um órgão da Administração e que é uma actividade materialmente administrativa, em função do respetivo regime legal. 
As normas violadas como nos diz a própria alínea n) têm natureza administrativa onde muitas delas têm fonte regulamentar. A coima quando aplicada segue nos termos de um procedimento administrativo, que corre exclusivamente no seio da Administração. É a Administração que vigia, controla, previne, constata infracções, instrui os processos sancionatórios e , em função disso, sanciona as infracções cometidas por pessoas singulares e coletivas. Configura-se uma actividade típica da Administração que implica o exercício de poderes discricionários de avaliação, de apreciação e de decisão. É de prever portanto que naturalmente deve ser a jurisdição Administrativa competente a impugnar estas decisões.

Conclui-se alertando para o facto de a generalidade dos litígios relativos a processos de contra-ordenação continuarem fora da esfera da jurisdição administrativa. Como exemplo existe o tribunal da concorrência, regulação e supervisão, que é de competência especializada e territorial alargada, ao qual compete designadamente "conhecer das questões relativas a recurso, revisão e execução das decisões, despachos e demais medidas em processo de contra-ordenação legalmente susceptíveis de impugnação" das entidades administrativas independentes com funções de regulação e supervisão.


    José Beleza dos Santos, “Ilícito penal administrativo e ilícito criminal” in Revista da Ordem dos Advogados, I/II, 1945

Eduardo Correia, “Direito Penal e Direito de mera ordenação social” in Boletim da Faculdade de Direito da U. de Coimbra, A. XLIX, 1973

Licínio Lopes Martins, "Âmbito da jurisdição administrativa no Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais revisto" in Justiça Administrativa, n.º 106, Julho/Agosto 2014

Ana Fernanda Neves, "Alargamento do âmbito da jurisdição administrativa" in O anteprojecto de revisão do código de processo nos tribunais administrativos e do estatuto dos tribunais administrativos e fiscais em debate, aafdl, 2014

Ricardo Estrela
N.º 18374 
4º ano, subturma 4

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