quinta-feira, 18 de dezembro de 2014

A dinâmica e o dilema da declaração de ilegalidade de normas administrativas com e sem força obrigatória geral


            A reflexão que se adianta incide sobre a impugnação de normas no âmbito do contencioso administrativo nos termos do artigo 46º/2 alínea a) do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (doravante CPTA), sendo uma das formas de acção administrativa especial a par da impugnação de actos administrativos artigos 46º/2 alínea a) e 50º e seguintes, e da condenação à prática de acto devido artigos 46º/2 alínea b)66º e seguintes, do respectivo código.
            Previamente à análise do referido dilema sobre a declaração de ilegalidade de normas administrativas concretamente no âmbito da legitimidade e efeitos da decisão, há que expor a sua dinâmica expressa no artigo 73º do CPTA.
            Assim, encontramos três tipos de autores: o particular, as entidades do artigo 9º/2 do referido código, e o Ministério Público. Exceptuando o Ministério Público, as outras entidades encontram certas limitações.[1]
            A impugnação de normas administrativas é caracterizada pela sua dualidade quanto à eficácia da decisão do tribunal, deste modo, a impugnação de normas com eficácia obrigatória geral só pode ser pedida pelo Ministério Público sem qualquer limitação, ou pelo particular cuja norma já teve efeitos lesivos na sua esfera jurídica ou haja uma ameaça real de vir a produzir esses efeitos[2] e, como condição necessária, hajam três casos concretos da sua desaplicação com fundamento na ilegalidade da norma.
Já no caso da impugnação de normas administrativas sem força obrigatória geral pode ser pedida pelo particular e todas as entidades do artigo 9º/2 quando a norma produza os seus efeitos sem ser necessário a emissão de um acto administrativo para a produção dos mesmos. Note-se, partilha-se nesta exposição da perspectiva do professor Vieira de Andrade que as expressões “por quem” e “lesado” ambas do artigo 73º nº1 e 2 respectivamente, trata-se de pessoas independente do seu cariz singular ou colectivo interpretação esta que tutela a jurisdição plena e efectiva nos termos do artigo 2º/1 do CPTA e 268º/5 da Constituição da República Portuguesa (doravante, CRP).
            Ora, o que está em causa é a impugnação de normas administrativas, mais precisamente derivadas de regulamentos no âmbito da competência da Administração Pública. Sendo normas, ainda que regulamentares são dotadas de generalidade ou seja, vão ter aplicação numa categoria de destinatários indeterminados que caibam no seu âmbito de incidência, e de abstracção ou seja regula situações ainda não concretizadas. Poderia aqui colocar-se a questão de como é que as normas gerais e abstractas poderiam causar lesões directas sem a necessidade de um acto administrativo posterior; porém basta-se imaginar o caso de um regulamento de avaliação que determina uma série de formas em que a avaliação é dada ou limites para entrega de avaliações, ou ainda regulamentos cujas normas sejam proibitivas de alguma conduta que tenham imediata interferência na esfera jurídica dos particulares.
            Exposta a dinâmica, passemos agora ao concerne do dilema:
            Perante estes requisitos do artigo 73º, encontramos o autor público sem qualquer tipo de condicionalismos para reagir contra a norma administrativa com o pedido de declaração da ilegalidade com força obrigatória geral uma vez que o Ministério Público é o grande defensor do princípio da legalidade, como consagra o artigo 219º/1 da CRP, sendo implicitamente o defensor do interesse público. A par dele, todos os outros autores encontram o seu acesso à justiça condicionado neste âmbito.
            O autor popular, ou seja todas as entidades do artigo 9º/2 do CPTA, que também defendem interesses públicos designadamente os referidos no artigo acima, a sua legitimidade fica condicionada ao pedido de declaração de ilegalidade sem força obrigatória geral equiparado assim ao particular. Podendo apenas solicitar a intervenção do Ministério público nos termos do número 3 do artigo 73º, algo que é vedado ao particular, podendo ainda constituir-se como assistente no processo, algo novamente vedado aos particulares. [3]
            Acompanhando a perspectiva do Professor Vasco Pereira da Silva, estamos perante um contra senso ao nível da legitimidade e um verdadeiro dilema, uma vez que a lei resolveu fazer uma diferenciação ilógica entre autor público, autor popular e particular.
            Primeiramente, porque é um problema desde logo de confusão com o conceito de norma. As normas podem ser favoráveis para certas pessoas por elas abrangidas e desfavoráveis para outras, mas sendo a normal ilegal, vai sê-lo para toda e qualquer pessoa ou entidade, os vícios decorrentes da norma permanecem independentemente da desaplicação para o caso concreto, num Estado de direito igualitário a desaplicação de normas ilegais devem sê-lo para todos os casos.
            Mais criticável é ainda o facto de os tribunais perante as situações de 73º/2 os tribunais deixarem a norma administrativa considerada ilegal no âmbito da justiça administrativa em que a última palavra é dos tribunais, continuar ilesa na ordem jurídica aguardando ser declarada ilegal por vícios próprios ou pela invalidade de actos decorrentes da norma, mais duas vezes para que haja possibilidade de a eliminar da ordem jurídica pelas mãos do particular. É altamente contraditório e violador do princípio da legalidade, artigo 3º do Código do Procedimento Administrativo consagrado num Estado de Direito Democrático, tanto a dualidade de com ou sem força obrigatória geral, como a legitimidade para propor a acção na medida em que é desfavorável para o particular, podendo mesmo estar em causa o principio da igualdade artigo 13º da CRP e da imparcialidade artigo 6º do CPA, uma vez que o artigo 73º cria restrições que afectam o alcance do artigo 268º/5 da CRP.
            Perante esta exposição resta-nos o dilema de saber se o intérprete do direito deve seguir esta violação aos princípios mencionados e interpretar de acordo com a letra da lei ou fazer uma interpretação correctiva em que afasta-se a norma considerando que o legislador não quereria o resultado que a norma emana em nome da tutela jurisdicional efectiva tanto ambicionada no espirito do sistema além de ser um valor constitucionalmente protegido; e que tal interpretação também é um desvio ao princípio da legalidade sendo uma interpretação altamente criativa que foge no seu todo à letra da lei.
Na proposta de reforma do CPTA[4] este artigo vai sofrer algumas alterações na medida em que a lei passa a permitir ao particular a impugnação de normas imediatamente operativas com força obrigatória geral à excepção dos casos em que o fundamento é a inconstitucionalidade uma vez que, e nome do princípio de separação e interdependência de poderes, artigo 111º da CRP, ficam restritos à desaplicação da norma ilegal com efeitos apenas para o caso concreto que a norma está a afectar. Dando agora possibilidade à impugnação de normas administrativas com força obrigatória geral desencadeada pelo particular. O particular que já foi, na fase do nascimento do contencioso administrativo, ou seja no pós-revolução francesa, um mero auxiliar do tribunal na defesa da legalidade, posição esta que lhe foi retirada pela actual redacção vai lhe ser devolvida, em principio, pela futura redacção.
Todavia, na futura redacção o artigo 73º/3 continua a ter como condição os três casos de desaplicação da norma com fundamente em ilegalidade para o caso concreto, para que o Ministério Público tenha o dever de reagir. Ora, sendo o Ministério Público defensor máximo da legalidade, o dever nasce com a emanação de normas administrativas ilegais, ainda que aguarde chegar um caso de ilegalidade seria possível admitir na medida em que espera pela primeira decisão do tribunal, contudo, ficar na inércia com permissão na lei, até à existência de três casos concretos de desaplicação, leva à permanência do velho dilema da actual redacção, sendo que o fundamento da desaplicação das normas circunscritas ao caso concreto foi com base na inconstitucionalidade, artigos 73º2 e 4 da futura redação, o que parece ainda mais penoso que se aguarde três casos para que passe a ser um dever do Ministério Público reagir para a remoção da norma do ordenamento jurídico.

         Em suma, a redação do artigo 73º como a conhecemos actualmente é susceptivel de criticas graves ainda que a interpretação corretiva não seja a via mais adequada, sendo a opção da reforma vantajosa ainda há que esmiuçar o âmbito do dever do Ministério Público e as condições em que se contitui esse dever.


Marina Augusto
22269



[1] Mário Aroso de Almeida, Manual de Processo Administrativo, Almedina págs. 248 e seguintes.
[2] José Carlos Vieira de Andrade (Lições) A justiça administrativa, Almedina 2012- 12º Edição, págs. 248 e seguintes.
[3] Vasco Pereira da Silva, O contencioso administrativo no divã da psicanálise, Almedina pags. 411 e seguintes.
[4]Artigo 73.º
Pressupostos
1 – A declaração de ilegalidade com força obrigatória geral de norma imediatamente
operativa pode ser pedida por quem seja directamente prejudicado pela vigência da
norma ou possa vir previsivelmente a sê-lo em momento próximo, independentemente
da prática de acto concreto de aplicação, pelo Ministério Público e pelas pessoas e
entidades referidas no n.º 2 do artigo 9.º, assim como pelos presidentes de órgãos
colegiais, em relação a normas emitidas pelos respetivos órgãos.
2 – Quem seja diretamente prejudicado ou possa vir previsivelmente a sê-lo em
momento próximo pela aplicação de norma imediatamente operativa que incorra em
qualquer dos fundamentos de ilegalidade previstos no n.º 1 do artigo 281.º daConstituição da República Portuguesa pode obter a desaplicação da norma, pedindo a
declaração da sua ilegalidade com efeitos circunscritos ao seu caso.
3 – Quando os efeitos de uma norma não se produzam imediatamente, mas só através
de um acto administrativo de aplicação, o lesado, o Ministério Público ou qualquer das
pessoas e entidades referidas no n.º 2 do artigo 9.º podem suscitar a questão da
ilegalidade da norma aplicada no âmbito do processo dirigido contra o acto de
aplicação a título incidental, pedindo a desaplicação da norma.
4 – O Ministério Público tem o dever de pedir a declaração de ilegalidade com força
obrigatória geral quando tenha conhecimento de três decisões de desaplicação de uma
norma com fundamento na sua ilegalidade, bem como de recorrer das decisões de
primeira instância que declarem a ilegalidade com força obrigatória geral.
5 – Para o efeito do disposto no número anterior, a secretaria, após o respectivo trânsito
em julgado, remete ao representante do Ministério Público junto do tribunal certidão
das sentenças que tenham desaplicado, com fundamento em ilegalidade, quaisquer
normas emitidas ao abrigo de disposições de direito administrativo ou que tenham
declarado a respetiva ilegalidade com força obrigatória geral.

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