A reflexão que se adianta incide
sobre a impugnação de normas no âmbito do contencioso administrativo nos termos
do artigo 46º/2 alínea a) do Código de Processo nos Tribunais Administrativos
(doravante CPTA), sendo uma das formas de acção administrativa especial a par
da impugnação de actos administrativos artigos 46º/2 alínea a) e 50º e
seguintes, e da condenação à prática de acto devido artigos 46º/2 alínea b)66º
e seguintes, do respectivo código.
Previamente à análise do referido
dilema sobre a declaração de ilegalidade de normas administrativas concretamente
no âmbito da legitimidade e efeitos da decisão, há que expor a sua dinâmica expressa no artigo 73º do CPTA.
Assim, encontramos três tipos de
autores: o particular, as entidades do artigo 9º/2 do referido código, e o
Ministério Público. Exceptuando o Ministério Público, as outras entidades
encontram certas limitações.[1]
A impugnação de normas
administrativas é caracterizada pela sua dualidade quanto à eficácia da decisão
do tribunal, deste modo, a impugnação de normas com eficácia obrigatória geral
só pode ser pedida pelo Ministério Público sem qualquer limitação, ou pelo particular
cuja norma já teve efeitos lesivos na sua esfera jurídica ou haja uma ameaça
real de vir a produzir esses efeitos[2] e,
como condição necessária, hajam três casos concretos da sua desaplicação com fundamento
na ilegalidade da norma.
Já
no caso da impugnação de normas administrativas sem força obrigatória geral pode
ser pedida pelo particular e todas as entidades do artigo 9º/2 quando a norma
produza os seus efeitos sem ser necessário a emissão de um acto administrativo
para a produção dos mesmos. Note-se, partilha-se nesta exposição da perspectiva
do professor Vieira de Andrade que as expressões “por quem” e “lesado” ambas do
artigo 73º nº1 e 2 respectivamente, trata-se de pessoas independente do seu cariz
singular ou colectivo interpretação esta que tutela a jurisdição plena e
efectiva nos termos do artigo 2º/1 do CPTA e 268º/5 da Constituição da
República Portuguesa (doravante, CRP).
Ora, o que está em causa é a impugnação
de normas administrativas, mais precisamente derivadas de regulamentos no
âmbito da competência da Administração Pública. Sendo normas, ainda que regulamentares
são dotadas de generalidade ou seja, vão ter aplicação numa categoria de destinatários
indeterminados que caibam no seu âmbito de incidência, e de abstracção ou seja regula
situações ainda não concretizadas. Poderia aqui colocar-se a questão de como é
que as normas gerais e abstractas poderiam causar lesões directas sem a
necessidade de um acto administrativo posterior; porém basta-se imaginar o caso
de um regulamento de avaliação que determina uma série de formas em que a
avaliação é dada ou limites para entrega de avaliações, ou ainda regulamentos
cujas normas sejam proibitivas de alguma conduta que tenham imediata interferência
na esfera jurídica dos particulares.
Exposta a dinâmica, passemos agora
ao concerne do dilema:
Perante estes requisitos do artigo
73º, encontramos o autor público sem qualquer tipo de condicionalismos para
reagir contra a norma administrativa com o pedido de declaração da ilegalidade
com força obrigatória geral uma vez que o Ministério Público é o grande
defensor do princípio da legalidade, como consagra o artigo 219º/1 da CRP,
sendo implicitamente o defensor do interesse público. A par dele, todos os
outros autores encontram o seu acesso à justiça condicionado neste âmbito.
O autor popular, ou seja todas as
entidades do artigo 9º/2 do CPTA, que também defendem interesses públicos designadamente
os referidos no artigo acima, a sua legitimidade fica condicionada ao pedido de
declaração de ilegalidade sem força obrigatória geral equiparado assim ao
particular. Podendo apenas solicitar a intervenção do Ministério público nos
termos do número 3 do artigo 73º, algo que é vedado ao particular, podendo
ainda constituir-se como assistente no processo, algo novamente vedado aos
particulares. [3]
Acompanhando a perspectiva do
Professor Vasco Pereira da Silva, estamos perante um contra senso ao nível da
legitimidade e um verdadeiro dilema, uma vez que a lei resolveu fazer uma
diferenciação ilógica entre autor público, autor popular e particular.
Primeiramente, porque é um problema
desde logo de confusão com o conceito de norma. As normas podem ser favoráveis
para certas pessoas por elas abrangidas e desfavoráveis para outras, mas sendo
a normal ilegal, vai sê-lo para toda e qualquer pessoa ou entidade, os vícios decorrentes
da norma permanecem independentemente da desaplicação para o caso concreto, num
Estado de direito igualitário a desaplicação de normas ilegais devem sê-lo para
todos os casos.
Mais criticável é ainda o facto de
os tribunais perante as situações de 73º/2 os tribunais deixarem a norma
administrativa considerada ilegal no âmbito da justiça administrativa em que a
última palavra é dos tribunais, continuar ilesa na ordem jurídica aguardando
ser declarada ilegal por vícios próprios ou pela invalidade de actos
decorrentes da norma, mais duas vezes para que haja possibilidade de a eliminar
da ordem jurídica pelas mãos do particular. É altamente contraditório e violador
do princípio da legalidade, artigo 3º do Código do Procedimento Administrativo consagrado
num Estado de Direito Democrático, tanto a dualidade de com ou sem força
obrigatória geral, como a legitimidade para propor a acção na medida em que é desfavorável
para o particular, podendo mesmo estar em causa o principio da igualdade artigo
13º da CRP e da imparcialidade artigo 6º do CPA, uma vez que o artigo 73º cria restrições
que afectam o alcance do artigo 268º/5 da CRP.
Perante esta exposição resta-nos o dilema
de saber se o intérprete do direito deve seguir esta violação aos princípios mencionados
e interpretar de acordo com a letra da lei ou fazer uma interpretação
correctiva em que afasta-se a norma considerando que o legislador não quereria
o resultado que a norma emana em nome da tutela jurisdicional efectiva tanto
ambicionada no espirito do sistema além de ser um valor constitucionalmente
protegido; e que tal interpretação também é um desvio ao princípio da
legalidade sendo uma interpretação altamente criativa que foge no seu todo à
letra da lei.
Na
proposta de reforma do CPTA[4] este
artigo vai sofrer algumas alterações na medida em que a lei passa a permitir ao
particular a impugnação de normas imediatamente operativas com força
obrigatória geral à excepção dos casos em que o fundamento é a
inconstitucionalidade uma vez que, e nome do princípio de separação e interdependência
de poderes, artigo 111º da CRP, ficam restritos à desaplicação da norma ilegal
com efeitos apenas para o caso concreto que a norma está a afectar. Dando agora
possibilidade à impugnação de normas administrativas com força obrigatória
geral desencadeada pelo particular. O particular que já foi, na fase do
nascimento do contencioso administrativo, ou seja no pós-revolução francesa, um
mero auxiliar do tribunal na defesa da legalidade, posição esta que lhe foi
retirada pela actual redacção vai lhe ser devolvida, em principio, pela futura redacção.
Todavia,
na futura redacção o artigo 73º/3 continua a ter como condição os três casos de
desaplicação da norma com fundamente em ilegalidade para o caso concreto, para
que o Ministério Público tenha o dever de reagir. Ora, sendo o Ministério
Público defensor máximo da legalidade, o dever nasce com a emanação de normas
administrativas ilegais, ainda que aguarde chegar um caso de ilegalidade seria possível
admitir na medida em que espera pela primeira decisão do tribunal, contudo, ficar
na inércia com permissão na lei, até à existência de três casos concretos de desaplicação, leva à permanência
do velho dilema da actual redacção, sendo que o fundamento da desaplicação das
normas circunscritas ao caso concreto foi com base na inconstitucionalidade, artigos 73º2 e 4 da futura redação, o
que parece ainda mais penoso que se aguarde três casos para que passe a ser um
dever do Ministério Público reagir para a remoção da norma do ordenamento jurídico.
Em suma, a redação do artigo 73º como a conhecemos actualmente é susceptivel de criticas graves ainda que a interpretação corretiva não seja a via mais adequada, sendo a opção da reforma vantajosa ainda há que esmiuçar o âmbito do dever do Ministério Público e as condições em que se contitui esse dever.
Marina Augusto
22269
[1] Mário
Aroso de Almeida, Manual de Processo
Administrativo, Almedina págs. 248 e seguintes.
[2] José
Carlos Vieira de Andrade (Lições) A justiça
administrativa, Almedina 2012- 12º Edição, págs. 248 e seguintes.
[3] Vasco
Pereira da Silva, O contencioso
administrativo no divã da psicanálise, Almedina pags. 411 e seguintes.
[4]Artigo 73.º
Pressupostos
1 – A declaração de ilegalidade com força obrigatória
geral de norma imediatamente
operativa pode ser pedida por quem seja directamente
prejudicado pela vigência da
norma ou possa vir previsivelmente a sê-lo em momento
próximo, independentemente
da prática de acto concreto de aplicação, pelo
Ministério Público e pelas pessoas e
entidades referidas no n.º 2 do artigo 9.º, assim como
pelos presidentes de órgãos
colegiais, em relação a normas emitidas pelos
respetivos órgãos.
2 – Quem seja diretamente prejudicado ou possa vir
previsivelmente a sê-lo em
momento próximo pela aplicação de norma imediatamente
operativa que incorra em
qualquer dos fundamentos de ilegalidade previstos no
n.º 1 do artigo 281.º daConstituição da República Portuguesa pode obter a
desaplicação da norma, pedindo a
declaração da sua ilegalidade com efeitos
circunscritos ao seu caso.
3 – Quando os efeitos de uma norma não se produzam
imediatamente, mas só através
de um acto administrativo de aplicação, o lesado, o
Ministério Público ou qualquer das
pessoas e entidades referidas no n.º 2 do artigo 9.º
podem suscitar a questão da
ilegalidade da norma aplicada no âmbito do processo
dirigido contra o acto de
aplicação a título incidental, pedindo a desaplicação
da norma.
4 – O Ministério Público tem o dever de pedir a
declaração de ilegalidade com força
obrigatória geral quando tenha conhecimento de três
decisões de desaplicação de uma
norma com fundamento na sua ilegalidade, bem como de
recorrer das decisões de
primeira instância que declarem a ilegalidade com
força obrigatória geral.
5 – Para o efeito do disposto no número anterior, a
secretaria, após o respectivo trânsito
em julgado, remete ao representante do Ministério
Público junto do tribunal certidão
das sentenças que tenham desaplicado, com fundamento
em ilegalidade, quaisquer
normas emitidas ao abrigo de disposições de direito
administrativo ou que tenham
declarado a respetiva ilegalidade com força
obrigatória geral.
Sem comentários:
Enviar um comentário