terça-feira, 16 de dezembro de 2014


O papel do Ministério Público no contencioso administrativo Português- explanação da sua vida boémia, e dissertações elucubratórias  sobre suas competências, sob a companhia do insigne mestre e camarada johnnie walker black label.


“Uma verdade susceptível de intensificar as energias equivale a qualquer verdade esterilmente virtuosa.”, Thomas Mann.

O espaço é lúgubre, as cadeiras são confortáveis e a média penumbra que o envolve convida á reflexão. Convidamos a o leitor a sentar-se, a libertar-se das correias da mundividência quotidiana que o aprisionam. Anunciamos desde já que embora a tarefa que se nos depara seja madrasta, tudo faremos para a concretizar. Só não venderemos a Alma ao Diabo, não seguimos as pisadas de Leverkhun(1), embora lhe reconheçamos grande mérito nas dissertações filosóficas que enfermam o seu discurso. Apelamos a que se torne uno com o espaço que o circunda, a deixar-se envolver pelo tumulto de vozes que outrora foram a flama de revoluções mas que hodiernamente foram maniquietadas a um mero murmúrio. Aguardamos a qualquer momento pela entrada do vulto que marcará a aurora desta exposição. Agora que o espaço o envolveu e se encontra imbuído da liberdade de espírito incindível a qualquer aprendizagem, manifestamos a nossa profunda concordância a que puxe do “ idiossincrático cigarro”, caso haja idiossincrasia.
A espera chega ao ocaso, o tão aguardado vulto invade a sala, dirige-se com porte altivo e passos largos na nossa direcção, no entanto a altivez com que caminha não esfuma as rugas e cicatrizes que limam e esculpem o seu rosto. Percebemos nós e o leitor que os traços que moldam o rosto do Ministério Público foram forjados na maior Fornalha da humanidade- Os anais da história. Deste modo, urge que conheçamos o lastro histórico da evolução de tão importante figura, para que possamos apreender na totalidade a textura dos trajes que agora o ataviam. Cumpre agora para que esta exposição logre a proficuidade ansiada que se inquira o nosso “anónimo” convidado sobre a sua infância, puberdade e idade adulta, de forma a que se torne límpida a acção “artesanal” da evolução histórica para a moldagem desta figura. O Ministério público, relembra nostalgicamente que este órgão cedo apareceu na órbita no contencioso administrativo português, embora embrionariamente sob uma vertente mais funcional que orgânica. Este órgão foi criado no Contencioso Administrativo pelo Decreto de 1832, balizando-se que o seu funcionamento abrange-se apenas os tribunais comuns. Ao Ministério Público competia expor por escrito uma opinião fundamentada, que seria mencionada no final do processo pelo relator. O olhar do nosso anónimo convidado, perde-se na nuvem de fumo que invade o ar da sala e relembra saudosamente a data de 1869, como a data responsável por uma dupla inovação nos planos orgânico e funcional. O DL com força de Lei de 12 de Novembro de 1869 atribui ao Procurador-Geral da Coroa e de Fazenda o título de chefe do Ministério Público quer na ordem jurídica como na ordem administrativa. 
Nessa altura o Código administrativo de 1869 cria em cada distrito um tribunal administrativo cujo juíz era o auditor, prevendo que as funções de Ministério Púbico fossem aí desempenhadas pelo secretário geral do governo Civil (art. 307 e 308). As competências deste agente do ministério público revestiam-se de uma índole diversa, embora os traços de destrinça entra a miríade de competências fossem evidentes. Ao Ministério cabia responder em todos os processos, mesmo que não tendo o estatuto de parte e neles promover o cumprimento das leis, assim como dispor de acção pública contra deliberações ilegais das câmaras. No que diz respeito ao STA haveria um “poder” de promoção quando tal fosse conveniente aos interesses do Estado. É com pesar na voz rouca que o Ministério Público, anuncia que a fase do “não sentir” pessoano chega ao epílogo. O figurão do MP, traga o John Walker Black Label que ornamenta a nossa mesa, e anuncia que a próxima fase da sua vida- a puberdade, será agora o cerne da fase seguinte do seu discurso. Relembra então, que no término do séc. XIX as funções do Ministério Público já possuíam alguma complexidade. Destarte, assistia-se na referida época, a um dualismo orgânico no desempenho das suas funções: num caso, tratavam-se agentes directamente provindos da administração e no outro, magistrados inseridos num corpo especializado e hierarquizado. Nesta fase reinava uma certa indefinição quando à natureza dos interesses prosseguidos.
Em tão recondito tempo, o interesse na preservação da legalidade administrativa era defendido através da acção pública. O MP ressalva que neste aspecto, está em consonância com as palavras do professor Sérvulo Correia, sufragado o insigne que esta ambiguidade de funções  perdurou até 1984/85, ano em que entramos na idade adulta do contencioso administrativo- Reforma de 2001/2002. Não podemos olvidar-nos porém de olhar para a tela e traçar as pinceladas fundamentais do pré reforma, para que esta exposição não tenha hiatos verdadeiramente perniciosos para a fecundidade da mesma.
O quadro antes da reforma de 2001/2002, do Ministério Público caracterizava-se pela unidade orgânica, a multiplicidade de funções e a diferenciação dos interesses públicos que por ele deveriam ser prosseguidos. No que concerne respeito à unidade orgânica, apenas agem pelo Ministério Público junto dos tribunais administrativos elementos da magistratura assim denominada (art. 4/1 do EMP aprovado pelo Lei nº 60/98).
Navegando agora pelas suas funções, é possível vislumbrarmos que  Ministério Público podia intervir no processo através de a acção pública; podendo coadjuvar o juiz na realização do Direito e cabendo-lhe patrocínio judiciário do Estado e de outras pessoas representadas por imperativo legal.
O tom de voz do MP, sofre uma transmutação drástica, o bravado da rouquidão faz-se sentir quando este afirma com exultação crescente que chegamos à fase da reforma e que esta trouxe alterações de vulto no que ao esboçar dos traços desta figura diz respeito. “ Aqueles jactantes que gizaram a reforma amputaram substancialmente os meus poderes de intervenção e travestiram grande parte das minhas funções!, clama o MP. Apetece de facto cantar o “Oh tempo volta para trás”. 
Com a reforma do Contencioso administrativo, o modelo de intervenção deste órgão sofreu várias alterações. Apesar deste órgão continuar a representar o Estado em juízo (art. 219 da CRP juntamente com o art .51 do ETAF), continua também a ser o titular da acção pública administrativa. Contudo, acabou por sofrer algumas alterações no que diz respeito à tramitação processual e a sua intervenção ficou limitada.
Com a reforma, a função do Ministério Publico no que diz respeito à coadjuvação do tribunal na realização do Direito foi praticamente extinta. O nosso convidado, findo o copo do liquido ébrio, brada agora que neste contexto é de fulcral importância referir a jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem no ac.Lobo Machadoc. Portugal eVermeulenc. Bélgica, na qual, se conclui constituir uma violação do art. 6/1º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem a emissão de parecer escrita pelo MP sem que fosse assegurado o direito de resposta do demandante.
Na mesma linha, a jurisprudência produzida pelo Tribunal Constitucional no ac. 345/99 julgou inconstitucional a norma do art. 15 da LPTA que permitia a intervenção do Ministério Público nas sessões de julgamento do STA, com fundamento na violação do processo equitativo a que refere o art 20/4 da CRP.
Assim, é remetido para a extinção  o parecer final e a presença do agente do Ministério Público na sessão de julgamento mesmo quando agindo apenas na posição deamicus curiae.
Para além disso, o Ministério Público perdeu o papel de promover a regularidade da tramitação processual e deixa, igualmente, de poder zelar pela descoberta da verdade material promovendo diligências de instrução. O artigo 85º do CPTA veio a alterar profundamente o modelo tradicional de intervenção do Ministério Público nos processos em que não figure como parte, e fê-lo quanto ao conteúdo, ao momento e ao modo de intervenção.
O regime anterior do art.85 do CPTA previa poderes mais genéricos ao Ministério Público, visto que, nos processos em que este não era parte, poderia intervir necessariamente em dois momentos: para emissão de um visto inicial e de um visto final, além de poder suscitar questões de índole processual que consubstanciassem óbices à apreciação do mérito da causa dos tribunais.
Actualmente, o art 85/2, ao contrário do que sucedia com o art. 27º, alínea c) da LPT, não fala genericamente da emissão de um “parecer sobre a decisão final a proferir” pelo tribunal. O Ministério Público perde a possibilidade de  intervir em defesa da chamada legalidade processual, para o efeito de suscitar a regularização da petição, excepções, nulidades e quaisquer questões que obstem ao prosseguimento do processo e de se pronunciar sobre questões dessa natureza que não tenham sido suscitadas. A identificação deste tipo de situações e a sua avaliação compete exclusivamente ao Juiz, uma vez ouvidas as partes, sem que o Ministério Público se pronuncie sobre elas.
No que diz respeito à pronúncia sobre o mérito da causa, ao contrário do que anteriormente sucedia, no âmbito das vistas inicial e final (previstas no art 42 e 53 da LPTA), que eram momentos obrigatórios da tramitação do recurso contencioso, a intervenção do Ministério Público não tem, pois, lugar em todos os processos. Deste modo, o Ministério Público só está habilitado a pronunciar-se sobre o mérito da causa quando se verifiquem os pressupostos do art. 85/2 do CPTA, ou seja, para o feito de defender que a solução que ele preconiza para o litígio é aquela que melhor acautela ou satisfaz algum dos bens jurídicos que aquele preceito menciona. A intervenção do Ministério Público passa só a ser possível quando e sentir mobilizado para o efeito pela natureza das questões envolvidas. Tal intervenção não decorre de um dever de ofício mas só nos casos em que, de acordo com o art 85/2 justifiquem que o Ministério Público lhe de atenção.
Cumpre ressalvar que O prof. Sérvulo Correia não concorda com tal solução. Para o professor, eliminar este tipo de intervenção significa que se perdeu de vista o papel instrumental da regularidade da tramitação processual na satisfação do interesse público de correcta concretização do Direito Administrativo substantivo.
Finda a abordagem dos traços evolutivos da vida do MP, cumpre agora deixar para trás as vestes andrajosas do contencioso administrativo, idiossincrasia da sua fase do berço, e abordar a fase de alta costura do novo contencioso administrativo, onde o Ministério Público assume papel de grande relevo, tendo vindo a ser moldados paulatinamente os traços da suas funções e competências pela passagem do vendaval da evolução histórica.
Inquirimos agora veemente o nosso companheiro , o MP, para que com a mestria que lhe é apanágio lance luz sobre a obscuridade que grassa no tema das actuais funções e competências da figura do Ministério Público no “novo ( não tarda velho) contencioso administrativo”. Urge frisar que a metodologia aqui escolhida, será mormente a de perscrutar o que de facto sofreu alterações no novo contencioso e não a de uma enfadonha e trivial enunciação testamentária das competências do MP. A tónica será claramente colocada nos ventos de mudança  e na brisa da continuidade. É aqui que residirá o nó cório desta nova abordagem.
No anterior sistema processual o Ministério Público dispunha de um amplo poder de intervenção que ia desde a defesa da legalidade, mediante recurso contencioso de anulação, até à representação do Estado em juízo. A intervenção centrava-se essencialmente no patrocínio do Estado, na actividade processual de carácter instrutório e no parecer final (obrigatório). Deste modo, na acção pública administrativa a sua actuação era mínima.
 No sistema actual e com a reforma do contencioso administrativo, o modelo de intervenção do Ministério Público foi alterado. Ao nível processual a sua intervenção está agora limitada e tem uma natureza interlocutória. Nos termos do artigo 85º, do CPTA tem um momento processual próprio para intervir, preclusivo, não podendo ultrapassar o prazo de 10 dias após a notificação da junção aos autos do processo administrativo, ou da apresentação das contestações. Cabe ainda destacar que este pode ainda requerer a realização de diligências instrutórias e dar um parecer sobre o mérito da causa, mas apenas em defesa dos direitos fundamentais dos cidadãos, de interesses públicos especialmente relevantes, ou de valores ou bens constitucionalmente protegidos, nos termos do artigo 9º, nº 2, do CPTA (como referido anteriormente).
A possibilidade de intervir no processo em termos instrutórios ou acessórios foi bastante receada, isto se comparada com o anterior regime, mas não é menos certo que a representação do Estado aumentou de uma forma tal que os recursos humanos de que o Ministério Público dispõe só lhe permitem uma intervenção processual mínima e tornam mesmo muito residual o exercício das suas competências em sede de acção pública administrativa.
A intervenção do Ministério Público na jurisdição administrativa e fiscal está subordinada à égide  do estabelecido no artigo 219.º da Constituição da República Portuguesa (CRP) e as atribuições que exerce não são mais do que concretizações, densificações e especialidades dessa modelação geral de base constitucional.
 Burilando um pouco, o novo modelo configura um equilíbrio entre, por um lado, o recorte constitucional e estatutário dos poderes de iniciativa e intervenção processuais do Ministério Público, e, por outro, do respectivo enquadramento num sistema de justiça administrativa que se apresenta hoje, no plano constitucional, marcadamente subjectivista – desde logo por ser esta a dimensão que surge constitucionalmente configurada como um imperativo.
De facto, a dimensão subjectivista da justiça administrativa preceituada no artigo 268.º da C.R.P., foi alicerce primordial da reconfiguração dos poderes processuais do Ministério Público.
Seja qual for o entendimento preconizado sobre os poderes processuais do Ministério Público, a reforma operada não podia, obviamente, tornar árida a função de representação em juízo do Estado, por tal ir contra a consagração constitucional dessa competência.
No âmbito das acções administrativas especiais de iniciativa dos particulares (em que o Ministério Público não é parte formal) o CPTA reequacionou a intervenção processual do Ministério Público na acção impugnatória quanto ao tipo de intervenção, quanto ao conteúdo dessa intervenção (artigo 85.º, n.º 2 a 4 e quanto ao momento em que deverá ser concretizada ( n.º 5).
Ao Ministério Público e aos titulares de interesse directo na anulação do acto, mantém-se um conceito muito vasto de legitimidade para a impugnação de actos, e até se alarga a pessoas e aos órgãos administrativos, bem como, no âmbito da acção popular, a qualquer cidadão e a titulares de interesses difusos, incluindo as autarquias (artigos 55º, n.º 1, alínea a), 9º, nº 2 e 40º, do CPTA).
Mais uma vez chegamos ao ocaso desta exposição, o sentimento de incompletude de novo medra em cada linha que fica por escrever. Esperemos ter tido engenho e arte suficientes para traçar as coordenadas esenciais onde selocaliza o habitáculo do MP, nos temos hodiernos.
O Ministério Público continua a ser o paladino e um lídimo representante da defesa da legalidade, dispondo para esse fim de uma pleiade de poderes importantes de iniciativa e intervenção processual . Cabe-lhe também ser guardião da defesa do interesse público e de bens comunitários ou valores socialmente relevantes, como a saúde pública, o ambiente, o urbanismo, e os bens do Estado, regiões autónomas e das autarquias locais. 
No entanto , a actuação do Ministério Público no domínio da acção pública tem diminuído substancialmente. A intervenção processual acessória e o exercício da acção pública assumem contornos de cariz  residual pois o  leviathan do contencioso estatal deixa pouco espaço para isso. A direcção do Sindicato dos Magistrados do Ministério Público aponta, quando à intervenção acessória que em 2005 foram produzidas apenas 3 intervenções nos termos do art 85 do CPTA e em 2006 apenas uma. No que diz respeito às acções populares foram propostas em 2005 três acções em 2006 somente 2.
Em termos práticos e sem liricismo, conclui-se sem mais delongas que  a actuação do Ministério Público através de acções Públicas é quase inexistente.
No espaço boémio que outrora se encontrava cheio de vida iridescente, apenas o vazio impera, o tumulto tornou-se silêncio, o caos tornou-se ordem a tempestade deu lugar à bonança. O fumo esvoaça e devaneia etereamente pelo ar da sala. O nosso vulto anónimo levanta-se com a sensação de dever cumprido. Dirige-se apressadamente para a porta, ansiando pelo descanso e paz merecida. Com faz parte da “gentlemania” social acompanhamo-lo à saída que encerra o prólogo desta nossa sumária exposição. Chega a penumbra, resta um copo de John Walker pousado habilmente sobre a mesa, órfão de qualquer companhia. No trilho para casa o nosso anónimo convidado lembra-se que deixou um companheiro de anonimato  esquecido. Trata-se de um blend(2) com 12 anos de vida.


1. Adrien Leverkuhn, personagem principal do livro Dr. Fausto de Thomas Mann.

2. Blend, Em contornos simplistas trata-se da mistura de diversos tipos de wiskey.quer sejam mormente compostos por malte quer não.

Bibliografia

Gomes Canotilho/Vital Moreira- Costituição da República Portuguesa notada, vol I, 4 ed,CoimbraEditora,2007

Mário Aroso de Almeida- Manual de Processo administrativo, 2010, Almedina

Mário Aroso de Almeida e Carlos Alberto Fernandes Cadilha, comentário ao Código de Processo nos Tribunais administrativos, Almedina, 2005

Sérvulo CorreiainEstudos de Homenagem a Cunha Rodrigues, Coimbra Editora, 2001

Sérvulo Correia- O recurso Contencioso no projecto de reforma: tópicos esparsos, in CJA,nº20

Vieira de Andrade- A justiça Administrativa, 9ª ed, Almedina, 2008

Vasco Pereira da Silva- O Contencioso Adminsitrativo no Divã da Psicanálise- Ensaio sobre as Acções no Novo Processo administrativo, 2ª ed., 2009, Almedina

Ricardo Moniz
19831
Subturma 4














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