Um dos “traumas da infância” (expressão
usada por Vasco Pereira da Silva) do contencioso administrativo reside no facto
de, em nome do princípio da separação de poderes, na senda do espírito
liberalista que se fazia sentir na época, se proibiu os tribunais de julgarem a
Administração, por se pensar que “julgar era ainda administrar”. Desta forma,
foram criados tribunais específicos para julgar a Administração. Contudo, estes
tribunais funcionavam segundo uma lógica objectivista, em que o processo
centrava-se no acto administrativo, actuado o tribunal para a tutela da
legalidade e do interesse público, através do recurso de anulação do acto
administrativo que enfermava de ilegalidade. A Administração estava inserida no
tribunal, e os particulares apenas actuavam como auxiliares do tribunal para a
salvaguarda do legalidade e do interesse público.
Com evoluir do conceito de Administração agressiva para Administração
prestadora e seguidamente para a Administração infra-estrutural, o contencioso
administrativo adoptou uma lógica de plena jurisdicionalização (separando-se da
Administração, vigorando agora o entendimento que “julgar a Administração é
julgar e não administrar”), o contencioso administrativo adoptou uma lógica
subjectiva em que actua para a tutela das posições jurídico-subjectivas dos
particulares. Deste modo, a Administração assume também a posição de parte no
processo (além de poder intervir como actor público, nos termos previstos para
a acção pública), consagrando-se também vários meios processuais que garantam
ao particular a tutela dos seus direitos subjectivos face à Administração,
segundo um princípio de tutela jurisdicional efectiva, nos termos do artigo
268º, nº4 da Constituição da República Portuguesa (doravante referida por
CRP).
Neste texto iremo-nos focar apenas na
acção administrativa especial de condenação à prática do acto lesivo.[1] Esta acção também constitui um ultrapassar das
“experiências traumáticas”, uma vez que se reconhece que a Administração, que
deixou de ter uma posição privilegiada em função dos seus poderes autoritários
ou privilégios exorbitantes, pode ser condenada, e “pior ainda”,
condenada à prática de acto administrativo em benefício de um particular.
Contudo, a questão da separação de poderes
volta a surgir, em virtude do conteúdo dos poderes do tribunal na condenação da
Administração, dado o facto que o tribunal se intromete na função
administrativa, dizendo aquilo que a Administração tem o dever de praticar. Ora
vejamos:
Estando a Administração vinculada, por
lei, a comportar-se de uma certa forma (casos de discricionariedade reduzida a
zero), não surgem quaisquer problemas quanto à sua condenação ao cumprimento
dessa vinculação.
Por outro lado, quando à Administração é
deixada pela lei uma margem de livre apreciação, já não é admissível que o
tribunal a condene, pois esta condenação implicaria que o tribunal se
pronunciasse sobre a forma e momento de actuação.
Nestes termos, quando está em causa o
exercício de poderes discricionários por parte da Administração, em que há
espaço para a criatividade administrativa, é a esta que compete preencher,
autonomamente, “os pressupostos de exercício do poder administrativo,
escolhendo, de entre as várias soluções legalmente admissíveis, aquela que – no
seu critério – é a melhor para cada caso”. [2] De
outro modo, quando está em causa o exercício de poderes vinculados, dado que
não há margem de criatividade administrativa, nada impede que, incumprindo a
Administração o dever legal, os tribunais a condenam à prática desse
comportamento vinculado.
Ou seja, uma vez que os tribunais são um
órgão de aplicação do Direito, só podem intervir quando estão em causa questões
de legalidade e não de oportunidade e de mérito, sem que infiram na função
administrativa, estando a “julgar do cumprimento da lei, por parte da
Administração.” [3]
Desta forma, aquilo que limita o poder de condenação
da Administração dos tribunais é a existência de poderes discricionários. Tudo
gira à volta do respeito pela margem de livre decisão administrativa.
Uma vez que a discricionariedade é um modo
de aplicação do direito, o exercício de poderes discricionários comporta
parâmetros que são sindicáveis, devendo então o tribunal, nas acções de
condenação que comportem o exercício destes poderes, determinar qual o âmbito e
limites das vinculações legais que a Administração está adstrita, estabelecendo
também orientações quanto aos parâmetros e critérios de decisão, contribuindo
então para um correcto exercício dos poderes discricionários.
Esta determinação está expressamente
prevista no artigo 71º, nº 2 do CPTA[4], quando refere
que o tribunal deve “explicitar as vinculações a observar pela Administração na
emissão do acto devido”.
Nestes termos, o Professor Vasco Pereira
da Silva constrói uma espécie de “sentenças mistas” para os casos de condenação
à prática do acto devido quanto está em causa o exercício de poderes
discricionários por parte da Administração. A sentença possui um conteúdo
condenatório quanto à prática do acto devido das vinculações legalmente
previstas a observar pela Administração, e um conteúdo declarativo, quanto ao
exercício de elementos discricionários. [5]
O artigo 71º, nº 2 ressalva sempre
impossibilidade da sentença definir o conteúdo do acto devido, deixando sempre
uma margem para que a Administração o defina. Desta maneira, observa-se que as
vinculações a observar pela Administração, definidas pelo tribunal, não podem
ser mais do que o tribunal substituir-se à escolha da Administração, violando o
princípio da separação de poderes, nem menos do que definir as meras
vinculações legais, colocando em causa o princípio da tutela jurisdicioal plena
e efectiva dos particulares.
Refere o Professor Mário Aroso de Almeida que as vinculações que o tribunal
pode explicitar têm apenas um conteúdo negativo, estabelecendo “as modalidades
de actuação que à Administração ficam vedadas”. A condenação só terá um
conteúdo positivo quando disser respeito à condenação à prática de actos
legalmente vinculados. [6]
Contudo, alguma doutrina, nomeadamente Maria Francisca Portocarrero, vem
criticar esta possibilidade do tribunal estabelecer as vinculações que a
Administração tem de observar na prática do acto devido.
Refere a autora que não vê possível que o
tribunal estabeleça as vinculações a observar pela Administração (ou as
“directivas de juridicidade”, referência prevista no projecto do CPTA)
sem que estas impliquem a determinação do conteúdo do acto e, portanto, uma
determinação da própria decisão administrativa quando ao conteúdo essencial do
acto: “... tendo o legislador delegado o poder de decisão (...) na
Administração, a missão de realizar a juridicidade (...) compete à autoridade
administrativa (...) E constitui uma incubência determinada pelo legislador
que, para o efeito, fixou à Administração a competência exclusiva para uma
missão que só pode ser sua; a saber, a de criação do direito do caso concreto
em aplicação da norma de actuação que tenha conseguido encontrar para aquele
caso e, justamente, com o apoio dos princípios jurídicos gerais, segundo a
avaliação que tenha feito das exigências deles decorrentes para aquele caso
concreto de interesse público.”[7]
Doravante, há uma usurpação do exercício
da função administrativa pelos tribunais, dada a “ilimitada confiança”
depositada na função jurisdicional que o artigo 71º, nº2 parece atribuir aos
tribunais, através da consagração dos referidos poderes de pronúncia, em nome
do “império do Direito”, usando falsamente o pretexto de se conseguir uma maior
protecção das posições jurídico-subjectivas dos particulares, segundo o
princípio da tutela jurisdicional efectiva.
A discricionariedade no exercício de
funções administrativas é praticamente eliminada, uma vez que os tribunais
pronunciar-se-ão indirectamente sobre o conteúdo do acto a praticar. Tal foi
justamente o caso do acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 22 de
Abril de 2004, Processo 1276/02, em que o tribunal, “sob a aparência de uma condenação
genérica e abstracta – dirigiu um comando muito concreto”, obrigando a
Administração a construir passeios para a circulação de peões na Avenida
Biatrritz, no Estoril, em condições de segurança, extravasando desta forma o
âmbito dos poderes da função jurisdicional.
Além disso, haveria uma transferência de
autoria do acto administrativo, permanecendo a Administração como responsável
pela sua prática, provocando uma disfunção no sistema da repartição de
competências, uma vez que se decidirá em sede de tribunal, e
responsabilizar-se-á noutra sede, na da Administração. Por outro lado, foi à
Administração que o legislador incumbiu de lidar com questões de
interesse público e não aos tribunais, por esta dispor de uma maior competência
técnica e experiência, melhores condições de organização, de função e de
actuação ou procedimento legitimadoras para decidir, podendo os tribunais
provocar decisões irremediáveis e desastrosas.
Por outro lado, a formulação da decisão
discricionária é formada completando a previsão legal com os pressupostos
adicionais necessários à dedução do resultado jurídico, pressupostos orientados
pelos princípios jurídicos gerais da actividade administrativa, por exemplo o
princípio da imparcialidade, igualdade, justiça e proporcionalidade. Nestes
termos, se o tribunal formular directivas de juridicidade, inerentes ao iter
valorativo que conduz à decisão administrativa discricionária, estará também
ele a decidir discricionariamente o conteúdo do acto. [8]Pelo que, se não fosse a salvaguarda efectuada pelo
artigo 71º, nº2, que o tribunal não pode definir o conteúdo do acto devido,
haveria uma contradição lógica, uma impossibilidade jurídica. Por isso,
refere a autora, que o CPTA optou por uma expressão mais objectiva –
“vinculações a observar” – do que a que constava do seu projecto – “directivas
de juridicidade”.
A autora contesta a posição de Mário Aroso
de Almeida, uma vez que a especificação de limites negativos não traz quaisquer
novidades, dado que já resultava do efeito constitutivo da fundamentação das
sentenças de anulação, além que não consegue evitar que o tribunal se pronuncie
sobre o conteúdo do acto a praticar pela Administração.
Tentando dar um conteúdo útil ao preceito,
a autora vem então, citando o entendimento de Jorge Cortês, propôr uma
configuração legal mista, em que a sentença teria uma vertente condenatória
relativa à emanação do acto administrativo, quando vinculado, e uma vertente
declarativa, de condenação da autoridade administrativa ao reexercício do poder
administrativo, com base na concepção jurídica do tribunal, se se estivesse na
presença de um acto discricionário. A autora não refere a construção do
Professor Vasco Pereira da Silva, mas parece-nos que esta configuração da
sentença é semelhante àquela.
Bibliografia:
- Vasco
Pereira da Silva, O contencioso administrativo no divã da psicanálise, 2ª
edição, Coimbra, 2009;
- Maria Francisca
Portocarrero, Reflexões sobre os poderes de pronúncia do Tribunal num novo meio
contencioso – A acçõa para a determiniação da prática de acto administrativo
legalmente devido -, na sua configuração no artigo 71º do Código de
Processo nos Tribunais Administrativos (CPTA)”, disponível em http://www.oa.pt/Conteudos/Artigos/detalhe_artigo.aspx?idc=30777&idsc=59032&ida=59037 ;
- Rui Machete, A
condenação à prática de acto devido — Algumas questões, in CJA n.° 50, pp. 3 e
ss;
- Tiago Antunes, Um
«passeio» pelos poderes condenatórios dos tribunais administrativos, in
CJA n.° 51, pp. 26 e ss;
- Mário Aroso de Almeida,
Manual de Processo Administrativo, Coimbra, 2013;
- Mário Esteves de
Oliveira e Rodrigo Esteves de Oliveira, Código de Processo nos Tribunais
Administrativos, Vol. I, 2004
[1] Esta acção administrativa especial
encontra-se prevista nos artigos 68º e seguintes do CPTA, e 268º, nº4 CRP
[2] Tiago
Antunes, Um «passeio» pelos poderes condenatórios dos tribunais
administrativos, in CJA n.° 51, pp. 26 e ss., p. 35 in fine.
[3] Acima referido, p. 36
[4] O artigo dispõe: “2 - Quando a
emissão do acto pretendido envolva a formulação de valorações róprias do
exercício da função administrativa e a apreciação do caso concreto não permita
identificar apenas uma solução como legalmente possível, o tribunal não pode
determinar o conteúdo do acto a praticar, mas deve explicitar as vinculações a
observar pela Administração na emissão do acto devido.”
[5] Vasco
Pereira da Silva, O contencioso administrativo no divã da psicanálise, Coimbra,
2ª edição, 2009, pp. 377 e ss, p. 394.
[6] Mário
Aroso de Almeida, Manual de Processo Administrativo, Coimbra, 2013; pp. 94 e
seguintes, p. 99
[7] Maria Francisca Portocarrero,
Reflexões sobre os poderes de pronúncia do Tribunal num novo meio contencioso –
A acçõa para a determiniação da prática de acto administrativo legalmente
devido -, na sua configuração no artigo 71º do Código de Processo nos
Tribunais Administrativos (CPTA)”
[8] Contra esta posição, Rui Machete
refere o contrário, entendendo que não se poderiam controlar a incidência
destes princípios nos casos concretos se não fosse dada possibilidade ao
tribunal de conhecimento de conceitos indeterminados - Rui Machete, A condenação à prática de acto devido —
Algumas questões, in CJA n.° 50, pp. 3 e ss., p. 5.
Duarte Filipe Silva Rodrigues, nº
22035
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