quinta-feira, 18 de dezembro de 2014

A discricionariedade como limite à condenação da Administração à prática do acto devido


           Um dos “traumas da infância” (expressão usada por Vasco Pereira da Silva) do contencioso administrativo reside no facto de, em nome do princípio da separação de poderes, na senda do espírito liberalista que se fazia sentir na época, se proibiu os tribunais de julgarem a Administração, por se pensar que “julgar era ainda administrar”. Desta forma, foram criados tribunais específicos para julgar a Administração. Contudo, estes tribunais funcionavam segundo uma lógica objectivista, em que o processo centrava-se no acto administrativo, actuado o tribunal para a tutela da legalidade e do interesse público, através do recurso de anulação do acto administrativo que enfermava de ilegalidade. A Administração estava inserida no tribunal, e os particulares apenas actuavam como auxiliares do tribunal para a salvaguarda do legalidade e do interesse público.         

            Com evoluir do conceito de Administração agressiva para Administração prestadora e  seguidamente para a Administração infra-estrutural, o contencioso administrativo adoptou uma lógica de plena jurisdicionalização (separando-se da Administração, vigorando agora o entendimento que “julgar a Administração é julgar e não administrar”), o contencioso administrativo adoptou uma lógica subjectiva em que actua para a tutela das posições jurídico-subjectivas dos particulares. Deste modo, a Administração assume também a posição de parte no processo (além de poder intervir como actor público, nos termos previstos para a acção pública), consagrando-se também vários meios processuais que garantam ao particular a tutela dos seus direitos subjectivos face à Administração, segundo um princípio de tutela jurisdicional efectiva, nos termos do artigo 268º, nº4 da Constituição da República Portuguesa (doravante referida por CRP). 

Neste texto iremo-nos focar apenas na acção administrativa especial de condenação à prática do acto lesivo.[1] Esta acção também constitui um ultrapassar das “experiências traumáticas”, uma vez que se reconhece que a Administração, que deixou de ter uma posição privilegiada em função dos seus poderes autoritários ou privilégios  exorbitantes, pode ser condenada, e “pior ainda”, condenada à prática de acto administrativo em benefício de um particular.

Contudo, a questão da separação de poderes volta a surgir, em virtude do conteúdo dos poderes do tribunal na condenação da Administração, dado o facto que o tribunal se intromete na função administrativa, dizendo aquilo que a Administração tem o dever de praticar. Ora vejamos:

Estando a Administração vinculada, por lei, a comportar-se de uma certa forma (casos de discricionariedade reduzida a zero), não surgem quaisquer problemas quanto à sua condenação ao cumprimento dessa vinculação.

Por outro lado, quando à Administração é deixada pela lei uma margem de livre apreciação, já não é admissível que o tribunal a condene, pois esta condenação implicaria que o tribunal se pronunciasse sobre a forma e momento de actuação.

Nestes termos, quando está em causa o exercício de poderes discricionários por parte da Administração, em que há espaço para a criatividade administrativa, é a esta que compete preencher, autonomamente, “os pressupostos de exercício do poder administrativo, escolhendo, de entre as várias soluções legalmente admissíveis, aquela que – no seu critério – é a melhor para cada caso”. [2] De outro modo, quando está em causa o exercício de poderes vinculados, dado que não há margem de criatividade administrativa, nada impede que, incumprindo a Administração o dever legal, os tribunais a condenam à prática desse comportamento vinculado.

Ou seja, uma vez que os tribunais são um órgão de aplicação do Direito, só podem intervir quando estão em causa questões de legalidade e não de oportunidade e de mérito, sem que infiram na função administrativa, estando a “julgar do cumprimento da lei, por parte da Administração.” [3]

Desta forma, aquilo que limita o poder de condenação da Administração dos tribunais é a existência de poderes discricionários. Tudo gira à volta do respeito pela margem de livre decisão administrativa.

Uma vez que a discricionariedade é um modo de aplicação do direito, o exercício de poderes discricionários comporta parâmetros que são sindicáveis, devendo então o tribunal, nas acções de condenação que comportem o exercício destes poderes, determinar qual o âmbito e limites das vinculações legais que a Administração está adstrita, estabelecendo também orientações quanto aos parâmetros e critérios de decisão, contribuindo então para um correcto exercício dos poderes discricionários.

Esta determinação está expressamente prevista no artigo 71º, nº 2 do CPTA[4], quando refere que o tribunal deve “explicitar as vinculações a observar pela Administração na emissão do acto devido”.

Nestes termos, o Professor Vasco Pereira da Silva constrói uma espécie de “sentenças mistas” para os casos de condenação à prática do acto devido quanto está em causa o exercício de poderes discricionários por parte da Administração. A sentença possui um conteúdo condenatório quanto à prática do acto devido das vinculações legalmente previstas a observar pela Administração, e um conteúdo declarativo, quanto ao exercício de elementos discricionários. [5]

O artigo 71º, nº 2 ressalva sempre impossibilidade da sentença definir o conteúdo do acto devido, deixando sempre uma margem para que a Administração o defina. Desta maneira, observa-se que as vinculações a observar pela Administração, definidas pelo tribunal, não podem ser mais do que o tribunal substituir-se à escolha da Administração, violando o princípio da separação de poderes, nem menos do que definir as meras vinculações legais, colocando em causa o princípio da tutela jurisdicioal plena e efectiva dos particulares.

            Refere o Professor Mário Aroso de Almeida que as vinculações que o tribunal pode explicitar têm apenas um conteúdo negativo, estabelecendo “as modalidades de actuação que à Administração ficam vedadas”. A condenação só terá um conteúdo positivo quando disser respeito à condenação à prática de actos legalmente vinculados. [6]

             Contudo, alguma doutrina, nomeadamente Maria Francisca Portocarrero, vem criticar esta possibilidade do tribunal estabelecer as vinculações que a Administração tem de observar na prática do acto devido.

Refere a autora que não vê possível que o tribunal estabeleça as vinculações a observar pela Administração (ou as “directivas de juridicidade”, referência prevista no projecto do CPTA)  sem que estas impliquem a determinação do conteúdo do acto e, portanto, uma determinação da própria decisão administrativa quando ao conteúdo essencial do acto: “... tendo o legislador delegado o poder de decisão (...) na Administração, a missão de realizar a juridicidade (...) compete à autoridade administrativa (...) E constitui uma incubência determinada pelo legislador que, para o efeito, fixou à Administração a competência exclusiva para uma missão que só pode ser sua; a saber, a de criação do direito do caso concreto em aplicação da norma de actuação que tenha conseguido encontrar para aquele caso e, justamente, com o apoio dos princípios jurídicos gerais, segundo a avaliação que tenha feito das exigências deles decorrentes para aquele caso concreto de interesse público.”[7] 

Doravante, há uma usurpação do exercício da função administrativa pelos tribunais, dada a “ilimitada confiança” depositada na função jurisdicional que o artigo 71º, nº2 parece atribuir aos tribunais, através da consagração dos referidos poderes de pronúncia, em nome do “império do Direito”, usando falsamente o pretexto de se conseguir uma maior protecção das posições jurídico-subjectivas dos particulares, segundo o princípio da tutela jurisdicional efectiva.

A discricionariedade no exercício de funções administrativas é praticamente eliminada, uma vez que os tribunais pronunciar-se-ão indirectamente sobre o conteúdo do acto a praticar. Tal foi justamente o caso do acórdão do Supremo Tribunal Administrativo  de 22 de Abril de 2004, Processo 1276/02, em que o tribunal, “sob a aparência de uma condenação genérica e abstracta – dirigiu um comando muito concreto”, obrigando a Administração a construir passeios para a circulação de peões na Avenida Biatrritz, no Estoril, em condições de segurança, extravasando desta forma o âmbito dos poderes da função jurisdicional.

Além disso, haveria uma transferência de autoria do acto administrativo, permanecendo a Administração como responsável pela sua prática, provocando uma disfunção no sistema da repartição de competências, uma vez que se decidirá em sede de tribunal, e responsabilizar-se-á noutra sede, na da Administração. Por outro lado, foi à Administração que o legislador incumbiu de lidar com questões de interesse público e não aos tribunais, por esta dispor de uma maior competência técnica e experiência,  melhores condições de organização, de função e de actuação ou procedimento legitimadoras para decidir, podendo os tribunais provocar decisões irremediáveis e desastrosas.

Por outro lado, a formulação da decisão discricionária é formada completando a previsão legal com os pressupostos adicionais necessários à dedução do resultado jurídico, pressupostos orientados pelos princípios jurídicos gerais da actividade administrativa, por exemplo o princípio da imparcialidade, igualdade, justiça e proporcionalidade. Nestes termos, se o tribunal formular directivas de juridicidade, inerentes ao iter valorativo que conduz à decisão administrativa discricionária, estará também ele a decidir discricionariamente o conteúdo do acto. [8]Pelo que, se não fosse a salvaguarda efectuada pelo artigo 71º, nº2, que o tribunal não pode definir o conteúdo do acto devido, haveria uma contradição lógica, uma impossibilidade jurídica.  Por isso, refere a autora, que o CPTA optou por uma expressão mais objectiva – “vinculações a observar” – do que a que constava do seu projecto – “directivas de juridicidade”.

A autora contesta a posição de Mário Aroso de Almeida, uma vez que a especificação de limites negativos não traz quaisquer novidades, dado que já resultava do efeito constitutivo da fundamentação das sentenças de anulação, além que não consegue evitar que o tribunal se pronuncie sobre o conteúdo do acto a praticar pela Administração.

Tentando dar um conteúdo útil ao preceito, a autora vem então, citando o entendimento de Jorge Cortês, propôr uma configuração legal mista, em que a sentença teria uma vertente condenatória relativa à emanação do acto administrativo, quando vinculado, e uma vertente declarativa, de condenação da autoridade administrativa ao reexercício do poder administrativo, com base na concepção jurídica do tribunal, se se estivesse na presença de um acto discricionário. A autora não refere a construção do Professor Vasco Pereira da Silva, mas parece-nos que esta configuração da sentença é semelhante àquela.


Bibliografia:
Vasco Pereira da Silva, O contencioso administrativo no divã da psicanálise, 2ª edição, Coimbra, 2009;
Maria Francisca Portocarrero, Reflexões sobre os poderes de pronúncia do Tribunal num novo meio contencioso – A acçõa para a determiniação da prática de acto administrativo legalmente devido -, na sua configuração no artigo  71º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (CPTA)”, disponível em http://www.oa.pt/Conteudos/Artigos/detalhe_artigo.aspx?idc=30777&idsc=59032&ida=59037 ;
- Rui Machete, A condenação à prática de acto devido — Algumas questões, in CJA n.° 50, pp. 3 e ss;
- Tiago Antunes, Um «passeio» pelos poderes condenatórios dos tribunais  administrativos, in CJA n.° 51, pp. 26 e ss;
- Mário Aroso de Almeida, Manual de Processo Administrativo, Coimbra, 2013;
- Mário Esteves de Oliveira e Rodrigo Esteves de Oliveira, Código de Processo nos Tribunais Administrativos, Vol. I, 2004







[1] Esta acção administrativa especial encontra-se prevista nos artigos 68º e seguintes do CPTA, e 268º, nº4 CRP
[2] Tiago Antunes, Um «passeio» pelos poderes condenatórios dos tribunais  administrativos, in CJA n.° 51, pp. 26 e ss., p. 35 in fine.
[3] Acima referido, p. 36
[4] O artigo dispõe: “2 - Quando a emissão do acto pretendido envolva a formulação de valorações  róprias do exercício da função administrativa e a apreciação do caso concreto não permita identificar apenas uma solução como legalmente possível, o tribunal não pode determinar o conteúdo do acto a praticar, mas deve explicitar as vinculações a observar pela Administração na emissão do acto devido.”
[5] Vasco Pereira da Silva, O contencioso administrativo no divã da psicanálise, Coimbra, 2ª edição, 2009, pp. 377 e ss, p. 394.
[6] Mário Aroso de Almeida, Manual de Processo Administrativo, Coimbra, 2013; pp. 94 e seguintes, p. 99
[7] Maria Francisca Portocarrero, Reflexões sobre os poderes de pronúncia do Tribunal num novo meio contencioso – A acçõa para a determiniação da prática de acto administrativo legalmente devido -, na sua configuração no artigo  71º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (CPTA)”
[8] Contra esta posição, Rui Machete refere o contrário, entendendo que não se poderiam controlar a incidência destes princípios nos casos concretos se não fosse dada possibilidade ao tribunal de conhecimento de conceitos indeterminados - Rui Machete, A condenação à prática de acto devido — Algumas questões, in CJA n.° 50, pp. 3 e ss., p. 5.

Duarte Filipe Silva Rodrigues, nº 22035

Sem comentários:

Enviar um comentário