I.
Antecedentes dos Sistemas
Administrativos Modernos: O Sistema Administrativo Tradicional
As
revoluções liberais constituem um marco fundamental no âmbito da evolução
histórica dos sistemas administrativos, pois é a partir do seu surgimento que
começamos a assistir a um novo paradigma do âmbito do Direito Administrativo,
bem como do Contencioso Administrativo.
Podemos
então distinguir os sistemas administrativos vigentes em momento anterior às
revoluções liberais e aqueles que foram implementados em momento posterior: até
às revoluções liberais vigora o designado Sistema Administrativo Tradicional e
a partir desse momento, estabelecem-se os Sistemas Administrativos Modernos,
entre os quais cumpre destacar o Sistema Administrativo Francês e os Sistema
Administrativo Britânico.
O
Sistema Administrativo Tradicional era o sistema característico da monarquia
tradicional europeia e vigorou na Europa até aos séculos XVII e XVIII[1].
Verificava-se uma indiferenciação entre a função administrativa e a função
jurisdicional. Efectivamente, o Rei podia exercer tanto a função administrativa
como a função judicial, sendo encarado como supremo administrador e supremo
juiz. No mesmo indivíduo eram acumuladas funções incompatíveis entre si, não se
vislumbrando qualquer manifestação do princípio da separação de poderes.
Verificava-se também a inexistência de uma subordinação rigorosa da
Administração à lei, pois eram escassas as normas reguladoras do comportamento
da Administração, sendo que, esta situação acarretava consigo uma consequente
insuficiência do sistema de garantias jurídicas dos particulares face à
Administração.
Com o surgimento dos
Sistemas Modernos o paradigma vai mudar.
II.
O Sistema Administrativo Francês
A
construção do Sistema Administrativo Francês remonta à Revolução Francesa,
coincidindo – de acordo com o Professor Vasco Pereira da Silva – com o
designado período do “Pecado Original”[2].
Verifica-se
o desenvolvimento do Princípio da Separação de Poderes, através da sua expressa
consagração. De acordo com o artigo 13º da Lei de 16/24 de Agosto de 1790, “as
funções judiciais são distintas e permanecerão sempre separadas das funções
administrativas. Os juízes não poderão, sob pena de alta traição (forfaiture) perturbar de qualquer
maneira as operações dos corpos administrativos, nem convocar perante si os
agentes da Administração por motivo atinente às funções destes”[3]. Parece que deste modo,
poderíamos então declarar que foi a partir deste momento que a Administração
ficou separada da Justiça, não podendo os juízes interferir nas actividades das
entidades administrativas. Contudo, o que está aqui em causa é uma visão
distorcida do princípio da separação de poderes[4]. Afinal de contas,
adoptava-se a máxima segundo a qual “julgar a Administração é ainda
administrar” em vez de reconhecer que “julgar a Administração é ainda julgar”[5]. De acordo com o Professor
Sérvulo Correia, o que estava em causa era uma organização da separação de
poderes estabelecendo uma derrogação à regra da separação de funções e
autorizando órgãos administrativos a exercer uma função materialmente
jurisdicional[6].
De
acordo com o Professor Vasco Pereira da Silva, aquilo que se criou não foi a
separação entre entidades administrativas e judiciais, mas antes a confusão
entre poder administrativo e poder judicial, no âmbito do designado sistema do
“administrador-juiz”[7]-[8]. O
próprio entendimento de Montesquieu
determinava que os litígios em matéria administrativa não pertenciam à órbitra
dos tribunais[9]. Pode dizer-se que sob as
vestes da separação de poderes, verificava-se a manutenção da confusão entre
administrar e julgar, o que só começa a ser ultrapassado paulatinamente na fase
do “Baptismo”, na qual a Justiça Administrativa começa a adquirir a natureza de
jurisdição autónoma.
Cabe
também referir a sujeição da Administração aos Tribunais Administrativos.
Em
1799 são criados os tribunais administrativos, que não são verdadeiros tribunais,
mas órgãos da Administração, em regra independentes e imparciais – incumbidos
de fiscalizar a legalidade dos actos da Administração e de julgar o contencioso
dos seus contratos e da sua responsabilidade civil[10]-[11]. Contudo, estando estes
tribunais inseridos na própria organização administrativa, não se chegava a
verificar um efectivo julgamento da Administração. O Conseil d’État considerou, ao longo do século XIX, que os órgãos e
agentes administrativos não estavam na mesma posição que os particulares.
Entendia-se que, uma vez que a Administração tinha de prosseguir o interesse
público, visando a satisfação de necessidades colectivas, seria imprescindível
que pudesse sobrepor-se aos interesses particulares que colidissem com a
realização do interesse geral, dispondo para o efeito de poderes de autoridade.
Começa aqui a vislumbrar-se o surgimento de um novo ramo do Direito: o Direito
Administrativo[12].
Neste contexto, cumpre
salientar a existência do privilégio da execução prévia. Esta prerrogativa
conferia força obrigatória às decisões administrativas através da dispensa da
fase declaratória do processo jurisdicional e a possibilidade de execução
material da decisão administrativa – com recurso a meios coactivos - sem necessidade
de recorrer previamente aos tribunais[13]-[14].
Quanto
às garantias dos particulares, estas são (ou tentam ser) efectivadas através
dos tribunais administrativos e não por intermédio dos tribunais comuns. No
entanto nem mesmo os tribunais administrativos gozam de plena jurisdição face à
Administração. Efectivamente, sendo o principal meio processual, nesta época, o
recurso de anulação[15],
na maioria dos casos os tribunais só podiam anular os actos praticados se
fossem ilegais, não podendo declarar as consequências dessa anulação nem
pressionar a Administração a adoptar determinado comportamento ou proibi-la de
proceder de dada forma.
Se
os tribunais são independentes perante a Administração, esta também é
independente perante aqueles, sendo as autoridades administrativas que decidem
como e quando executar as sentenças que hajam anulado actos seus. O Professor
Freitas do Amaral afirma que as garantias dos particulares face à Administração
são aqui menores do que no sistema britânico.
De referir, ainda, a centralização
administrativa operada por Napoleão. Os funcionários da Administração Central
passam a submeter-se ao princípio da hierarquia, é formada uma poderosa administration locale de l’État, por via
da repartição do território francês em departamentos. Nesta época, as
autarquias locais mais não são do que meros instrumentos administrativos do
poder central.
Do exposto, resulta que não existia
ainda uma verdadeira jurisdicionalização do Contencioso Administrativo. O
paradigma só foi sendo alterado – como já referido – na fase do “Baptismo”,
quando se verifica a transformação de um “quase-tribunal” para um verdadeiro
tribunal: o Conselho de Estado, instituído inicialmente com competências
meramente consultivas, cabendo-lhe pronunciar-se sobre questões contenciosas
previamente submetidas aos ministros, começa a ganhar prestígio e a
autonomizar-se do Chefe de Estado. De um órgão consultivo passa-se para um
órgão jurisdicional, verificando-se um afastamento cada vez mais nítido do
“Pecado Original”.
É
na fase do “Crisma” que se verifica uma natureza plenamente jurisdicionalizada
do contencioso administrativo, pois não só o juiz goza de independência e
plenos poderes face à administração como se consagra uma dimensão subjectiva
dos direitos dos particulares[16].
De salientar que “a jurisdicionalização plena do contencioso administrativo não
se produz num único momento, antes resulta de um processo duradouro de
transformação (...)”[17].
III.
O
Sistema Administrativo Britânico
A
evolução do sistema administrativo britânico ou de administração judiciária –
devido ao papel preponderante exercido pelos tribunais - decorre essencialmente
das conquistas do povo contra os privilégios e autoridade da Coroa inglesa.
Como
já foi referido, antes das revoluções liberais, o poder de administrar e julgar
concentrava-se no rei, sendo este a fonte de toda a justiça, o que contribuía
para a insegurança do povo, visto que este se encontrava dependente daquilo que
o rei decidisse, sendo inquestionável a sua autoridade.
No
contexto do Sistema Britânico é com a Grande Revolução em Inglaterra, em 1688,
que o paradigma é alterado. De acordo com Vasco Pereira da Silva, o Reino Unido
não experienciou uma “infância difícil” como aquela que se verificou em França[18].
Uma
das características a evidenciar quanto a este sistema corresponde ao princípio
da separação de poderes. O Rei foi impedido de resolver por si ou por
funcionários da sua confiança questões contenciosas, por força da lei de
abolição Star Chamber (1641), através
da qual se passou do Tribunal do Rei para a Câmara da Estrela.
Também
o Act of Stlement (1701) teve grande
importância neste âmbito, pelo facto de ter proibido o Rei de dar ordens aos
juízes, transferi-los ou demiti-los. Foi conservada aos juízes competência para
questões comuns e administrativas.
Na
sequência da tradição iniciada pela Magna Carta, surge o Bill of Rights (1689) que, para além de consagrar os direitos,
liberdades e garantias dos cidadãos britânicos, veio determinar que o direito
comum seria aplicável a todos os ingleses sem excepção, o que significava que
tanto o Rei como os seus funcionários se regem pelo mesmo Direito que os
particulares, ou seja, pela common law of
the land. Todos os órgãos da Administração Pública estão sujeitos ao
direito comum, não gozando, regra geral, de direitos especiais ou privilégios
Do
que fica dito, decorre que a a Administração passa a submeter-se à jurisdição
dos tribunais comuns, ou seja, os litígios que surjam entre entidades
administrativas e particulares são resolvidos por via dos tribunais comuns. Se
a lei é a mesma para todos, havendo, nas palavras do Professor Marcelo Caetano
“um só sistema para o Estado e para os particulares”, não faz sentido, neste
conjectura, recorrer a tribunais especiais. São então, aplicados os mesmos
meios processuais às relações dos particulares entre si e às relações da
Administração com os particulares, procurando-se para os problemas da
Administração Pública soluções jurídicas idênticas às da vida privada.
Quanto
à execução das decisões administrativas, verifica-se uma grande diferença face
ao sistema francês: no sistema britânico, os actos administrativos não são
exequíveis por si próprios, ou seja, as decisões unilaterais da Administração
Pública não podem ser impostas pela coacção sem prévia intervenção do poder judicial.
Tem de haver ordem para a execução do acto ou seja, uma sentença que torne
imperativa tal decisão. Por exemplo: Se um órgão da Administração toma uma
decisão desfavorável a um particular (como no caso de uma ordem de demolição ou
expulsão) e este não a acata voluntariamente, esse órgão não poderá, por si só,
empregar meios coactivos – por exemplo a polícia – para impor o respeito pela
sua decisão. Terá, pelo contrário, de ir a tribunal (como já foi visto
anteriormente, a um tribunal comum) obter deste, segundo o due process of law, uma sentença que torne imperativa aquela
decisão[19].
No que concerne às
garantias dos particulares, em Inglaterra, os particulares dispõem de um
sistema de garantias contra os abusos e ilegalidades da Administração Pública. Os
tribunais comuns gozam de plena jurisdição face à Administração.
Contudo, de acordo com o
Professor Vasco Pereira da Silva, este sistema sem “sombra de pecado”,
apresenta um conjunto de limitações que põem em causa a sua eficácia, pois
apesar da jurisdição única, existem regras processuais diferentes para os
litígios administrativos[20].
É do reconhecimento desta ineficiência que surgem os administrative tribunals. Estes órgãos desempenhavam funções
administrativas e jurisdicionais de controlo da actividade administrativa. Esta
situação levou, à semelhança do que aconteceu em França, à confusão entre
Administração e Justiça. É por este motivo que o Professor Vasco Pereira da
Silva afirma que apesar de não ter sido afectado pelo “Pecado Original”, o sistema
britânico “sofre agora de uma espécie de «delinquência senil precoce»”.
Contudo, não é – de certa
forma – “justo” comparar nesta sede os dois sistemas, pois, apesar de tudo,
estes “tribunais administrativos” estariam sempre numa dependência quanto aos
tribunais comuns, sendo que a última palavra seria sempre destes últimos
tribunais. De facto, somente
após favorável sentença de um tribunal judicial comum podia a Administração
unilateralmente impor as suas decisões e isso consubstancia uma grande diferença,
especialmente ao nível das garantias dos particulares.
Uma nota mais quanto à
organização administrativa – uma vez que que também foi feita esta referência
quanto ao sistema francês. Em Inglaterra a tradição é a do poder local. As
autarquias locais gozavam de uma ampla autonomia perante uma intervenção
central bastante reduzida. As autarquias locais não eram encaradas como meros
instrumentos ao serviço do governo central, mas antes como entidades
independentes. Eram verdadeiros local
governments.
Em síntese, de acordo com o
Professor Vasco Pereira da Silva[21]
são essencialmente cinco os traços distintivos dos dois sistemas: i)
organização administrativa: um sistema é centralizado enquanto o outro é
descentralizado; ii) controlo jurisdicional da Administração: na França há
pluralidade de jurisdições e em Inglaterra há uma unidade de jurisdição; iii)
Direito regulador da Administração: no sistema francês rege o Direito
Administrativo (Direito Público) e em Inglaterra rege o Direito Comum (que é
basicamente Direito Privado); iv) execução das decisões administrativas: em
França rege a prerrogativa da execução prévia e em Inglaterra o sistema de
administração judiciária depende de sentença do tribunal; v) garantias dos
particulares: em França a Administração é independente do poder judicial,
enquanto em Inglaterra os tribunais gozam de amplos poderes de injunção face à
Administração.
Por fim, de referir que
tanto o Professor Freitas do Amaral como o Professor Vasco Pereira da Silva,
entendem que com o passar do tempo tem-se verificado uma aproximação relativa
entre ambos os sistemas[22].
IV.
Bibliografia
Amaral, Freitas do, Curso
de Direito Administrativo, vol. I, 3ª edição, almedina, 2006
Caetano, Marcello, Manual de Direito Administrativo, vol.
II, 9ª edição, Almedina, 1983
Chancerelle de Manchete, Rui, Privilégio da Execução Prévia in: Dicionário Jurídico da Administração Pública, Separata do VI
volume, 1994
Correia, Sérvulo,
Direito do Contencioso Administrativo,
vol.I, Lisboa, 2005
Pereira da Silva, Vasco, O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise, 2ª
edição, Almedina, 2009
Pereira da Silva, Vasco, Portugal, Brasil e o Mundo
do Direito, Coimbra, Almedina, 2008
[2] Pereira da Silva, Vasco, O Contencioso Administrativo no Divã da
Psicanálise, 2ª edição, Almedina, 2009, p.13 ss.
[8] Esta
figura surgiu por resposta à subtracção do órgão da Administração ao controlo
do juiz. Desde modo levantou-se a questão de saber quem poderia velar pelo
respeito da lei nas relações entre o Estado e o administrado. A fiscalização da
legalidade da conduta administrativa teria de caber aos topos das hierarquias
administrativas, cabendo portanto, num primeiro momento ao Rei. Correia, Sérvulo, Direito do Contencioso (...) p.44
[11] Os primeiros tribunais
administrativos foram o Conseil d’État
e os Conseils de Péfecture.
Tratava-se de órgãos consultivos, porém uma das secções recebia funções
jurisdicionais. Não eram tribunais como actualmente os encaramos, mas órgãos da
Administração que julgavam com independência outros órgãos da Administração.
“Le Conseil d’État c’est l’Administration qui se juge” Cfr Caetano, Marcello, Manual de Direito Administrativo, vol. II, 9ª edição, Almedina,
1983, p. 1303
[12] De
salientar que o Professor Vasco Pereira da Silva reconduz o nascimento do
Direito Administrativo mais propriamente ao acórdão Blanco, Pereira da Silva, Vasco, O Contencioso Administrativo (...), p.
53
[13] Para
mais desenvolvimentos, Chancerelle de
Manchete, Rui, Privilégio da
Execução Prévia in: Dicionário
Jurídico da Administração Pública, Separata do VI volume, 1994.
[14] O
Professor Freitas do Amaral exemplifica: se a Administração Pública dá uma
ordem de demolição, o particular ou acata a ordem, ou se não a acata, a
Administração poderá servir-se dos meios ao seus dispor para impor a aplicação
da decisão, isto sem ter necessidade de uma ordem judicial prévia, Amaral, Freitas do, Curso de Direito (...), p. 112.
[22] Pereira
da Silva, Vasco, Portugal, Brasil e (...) p. 139 e ss, Amaral,
Freitas do, Curso de Direito (...), p 124 ss.
Madalena Luís
Nº22111
Madalena Luís
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