terça-feira, 16 de dezembro de 2014

Evolução do Contencioso Administrativo: O Sistema Administrativo Francês e o Sistema Administrativo Britânico

                              
I.             Antecedentes dos Sistemas Administrativos Modernos: O Sistema Administrativo Tradicional

As revoluções liberais constituem um marco fundamental no âmbito da evolução histórica dos sistemas administrativos, pois é a partir do seu surgimento que começamos a assistir a um novo paradigma do âmbito do Direito Administrativo, bem como do Contencioso Administrativo.
Podemos então distinguir os sistemas administrativos vigentes em momento anterior às revoluções liberais e aqueles que foram implementados em momento posterior: até às revoluções liberais vigora o designado Sistema Administrativo Tradicional e a partir desse momento, estabelecem-se os Sistemas Administrativos Modernos, entre os quais cumpre destacar o Sistema Administrativo Francês e os Sistema Administrativo Britânico.
O Sistema Administrativo Tradicional era o sistema característico da monarquia tradicional europeia e vigorou na Europa até aos séculos XVII e XVIII[1]. Verificava-se uma indiferenciação entre a função administrativa e a função jurisdicional. Efectivamente, o Rei podia exercer tanto a função administrativa como a função judicial, sendo encarado como supremo administrador e supremo juiz. No mesmo indivíduo eram acumuladas funções incompatíveis entre si, não se vislumbrando qualquer manifestação do princípio da separação de poderes. Verificava-se também a inexistência de uma subordinação rigorosa da Administração à lei, pois eram escassas as normas reguladoras do comportamento da Administração, sendo que, esta situação acarretava consigo uma consequente insuficiência do sistema de garantias jurídicas dos particulares face à Administração.
Com o surgimento dos Sistemas Modernos o paradigma vai mudar.

II.            O Sistema Administrativo Francês

A construção do Sistema Administrativo Francês remonta à Revolução Francesa, coincidindo – de acordo com o Professor Vasco Pereira da Silva – com o designado período do “Pecado Original”[2].
Verifica-se o desenvolvimento do Princípio da Separação de Poderes, através da sua expressa consagração. De acordo com o artigo 13º da Lei de 16/24 de Agosto de 1790, “as funções judiciais são distintas e permanecerão sempre separadas das funções administrativas. Os juízes não poderão, sob pena de alta traição (forfaiture) perturbar de qualquer maneira as operações dos corpos administrativos, nem convocar perante si os agentes da Administração por motivo atinente às funções destes”[3]. Parece que deste modo, poderíamos então declarar que foi a partir deste momento que a Administração ficou separada da Justiça, não podendo os juízes interferir nas actividades das entidades administrativas. Contudo, o que está aqui em causa é uma visão distorcida do princípio da separação de poderes[4]. Afinal de contas, adoptava-se a máxima segundo a qual “julgar a Administração é ainda administrar” em vez de reconhecer que “julgar a Administração é ainda julgar”[5]. De acordo com o Professor Sérvulo Correia, o que estava em causa era uma organização da separação de poderes estabelecendo uma derrogação à regra da separação de funções e autorizando órgãos administrativos a exercer uma função materialmente jurisdicional[6].
De acordo com o Professor Vasco Pereira da Silva, aquilo que se criou não foi a separação entre entidades administrativas e judiciais, mas antes a confusão entre poder administrativo e poder judicial, no âmbito do designado sistema do “administrador-juiz”[7]-[8]. O próprio entendimento de Montesquieu determinava que os litígios em matéria administrativa não pertenciam à órbitra dos tribunais[9]. Pode dizer-se que sob as vestes da separação de poderes, verificava-se a manutenção da confusão entre administrar e julgar, o que só começa a ser ultrapassado paulatinamente na fase do “Baptismo”, na qual a Justiça Administrativa começa a adquirir a natureza de jurisdição autónoma.
Cabe também referir a sujeição da Administração aos Tribunais Administrativos.
      Em 1799 são criados os tribunais administrativos, que não são verdadeiros tribunais, mas órgãos da Administração, em regra independentes e imparciais – incumbidos de fiscalizar a legalidade dos actos da Administração e de julgar o contencioso dos seus contratos e da sua responsabilidade civil[10]-[11]. Contudo, estando estes tribunais inseridos na própria organização administrativa, não se chegava a verificar um efectivo julgamento da Administração. O Conseil d’État considerou, ao longo do século XIX, que os órgãos e agentes administrativos não estavam na mesma posição que os particulares. Entendia-se que, uma vez que a Administração tinha de prosseguir o interesse público, visando a satisfação de necessidades colectivas, seria imprescindível que pudesse sobrepor-se aos interesses particulares que colidissem com a realização do interesse geral, dispondo para o efeito de poderes de autoridade. Começa aqui a vislumbrar-se o surgimento de um novo ramo do Direito: o Direito Administrativo[12].
Neste contexto, cumpre salientar a existência do privilégio da execução prévia. Esta prerrogativa conferia força obrigatória às decisões administrativas através da dispensa da fase declaratória do processo jurisdicional e a possibilidade de execução material da decisão administrativa – com recurso a meios coactivos - sem necessidade de recorrer previamente aos tribunais[13]-[14].
Quanto às garantias dos particulares, estas são (ou tentam ser) efectivadas através dos tribunais administrativos e não por intermédio dos tribunais comuns. No entanto nem mesmo os tribunais administrativos gozam de plena jurisdição face à Administração. Efectivamente, sendo o principal meio processual, nesta época, o recurso de anulação[15], na maioria dos casos os tribunais só podiam anular os actos praticados se fossem ilegais, não podendo declarar as consequências dessa anulação nem pressionar a Administração a adoptar determinado comportamento ou proibi-la de proceder de dada forma.
Se os tribunais são independentes perante a Administração, esta também é independente perante aqueles, sendo as autoridades administrativas que decidem como e quando executar as sentenças que hajam anulado actos seus. O Professor Freitas do Amaral afirma que as garantias dos particulares face à Administração são aqui menores do que no sistema britânico.
            De referir, ainda, a centralização administrativa operada por Napoleão. Os funcionários da Administração Central passam a submeter-se ao princípio da hierarquia, é formada uma poderosa administration locale de l’État, por via da repartição do território francês em departamentos. Nesta época, as autarquias locais mais não são do que meros instrumentos administrativos do poder central.
            Do exposto, resulta que não existia ainda uma verdadeira jurisdicionalização do Contencioso Administrativo. O paradigma só foi sendo alterado – como já referido – na fase do “Baptismo”, quando se verifica a transformação de um “quase-tribunal” para um verdadeiro tribunal: o Conselho de Estado, instituído inicialmente com competências meramente consultivas, cabendo-lhe pronunciar-se sobre questões contenciosas previamente submetidas aos ministros, começa a ganhar prestígio e a autonomizar-se do Chefe de Estado. De um órgão consultivo passa-se para um órgão jurisdicional, verificando-se um afastamento cada vez mais nítido do “Pecado Original”.
É na fase do “Crisma” que se verifica uma natureza plenamente jurisdicionalizada do contencioso administrativo, pois não só o juiz goza de independência e plenos poderes face à administração como se consagra uma dimensão subjectiva dos direitos dos particulares[16]. De salientar que “a jurisdicionalização plena do contencioso administrativo não se produz num único momento, antes resulta de um processo duradouro de transformação (...)”[17].

III.            O Sistema Administrativo Britânico

A evolução do sistema administrativo britânico ou de administração judiciária – devido ao papel preponderante exercido pelos tribunais - decorre essencialmente das conquistas do povo contra os privilégios e autoridade da Coroa inglesa.
Como já foi referido, antes das revoluções liberais, o poder de administrar e julgar concentrava-se no rei, sendo este a fonte de toda a justiça, o que contribuía para a insegurança do povo, visto que este se encontrava dependente daquilo que o rei decidisse, sendo inquestionável a sua autoridade.
No contexto do Sistema Britânico é com a Grande Revolução em Inglaterra, em 1688, que o paradigma é alterado. De acordo com Vasco Pereira da Silva, o Reino Unido não experienciou uma “infância difícil” como aquela que se verificou em França[18].
Uma das características a evidenciar quanto a este sistema corresponde ao princípio da separação de poderes. O Rei foi impedido de resolver por si ou por funcionários da sua confiança questões contenciosas, por força da lei de abolição Star Chamber (1641), através da qual se passou do Tribunal do Rei para a Câmara da Estrela.
Também o Act of Stlement (1701) teve grande importância neste âmbito, pelo facto de ter proibido o Rei de dar ordens aos juízes, transferi-los ou demiti-los. Foi conservada aos juízes competência para questões comuns e administrativas.
Na sequência da tradição iniciada pela Magna Carta, surge o Bill of Rights (1689) que, para além de consagrar os direitos, liberdades e garantias dos cidadãos britânicos, veio determinar que o direito comum seria aplicável a todos os ingleses sem excepção, o que significava que tanto o Rei como os seus funcionários se regem pelo mesmo Direito que os particulares, ou seja, pela common law of the land. Todos os órgãos da Administração Pública estão sujeitos ao direito comum, não gozando, regra geral, de direitos especiais ou privilégios
Do que fica dito, decorre que a a Administração passa a submeter-se à jurisdição dos tribunais comuns, ou seja, os litígios que surjam entre entidades administrativas e particulares são resolvidos por via dos tribunais comuns. Se a lei é a mesma para todos, havendo, nas palavras do Professor Marcelo Caetano “um só sistema para o Estado e para os particulares”, não faz sentido, neste conjectura, recorrer a tribunais especiais. São então, aplicados os mesmos meios processuais às relações dos particulares entre si e às relações da Administração com os particulares, procurando-se para os problemas da Administração Pública soluções jurídicas idênticas às da vida privada.
Quanto à execução das decisões administrativas, verifica-se uma grande diferença face ao sistema francês: no sistema britânico, os actos administrativos não são exequíveis por si próprios, ou seja, as decisões unilaterais da Administração Pública não podem ser impostas pela coacção sem prévia intervenção do poder judicial. Tem de haver ordem para a execução do acto ou seja, uma sentença que torne imperativa tal decisão. Por exemplo: Se um órgão da Administração toma uma decisão desfavorável a um particular (como no caso de uma ordem de demolição ou expulsão) e este não a acata voluntariamente, esse órgão não poderá, por si só, empregar meios coactivos – por exemplo a polícia – para impor o respeito pela sua decisão. Terá, pelo contrário, de ir a tribunal (como já foi visto anteriormente, a um tribunal comum) obter deste, segundo o due process of law, uma sentença que torne imperativa aquela decisão[19].
No que concerne às garantias dos particulares, em Inglaterra, os particulares dispõem de um sistema de garantias contra os abusos e ilegalidades da Administração Pública. Os tribunais comuns gozam de plena jurisdição face à Administração.
Contudo, de acordo com o Professor Vasco Pereira da Silva, este sistema sem “sombra de pecado”, apresenta um conjunto de limitações que põem em causa a sua eficácia, pois apesar da jurisdição única, existem regras processuais diferentes para os litígios administrativos[20]. É do reconhecimento desta ineficiência que surgem os administrative tribunals. Estes órgãos desempenhavam funções administrativas e jurisdicionais de controlo da actividade administrativa. Esta situação levou, à semelhança do que aconteceu em França, à confusão entre Administração e Justiça. É por este motivo que o Professor Vasco Pereira da Silva afirma que apesar de não ter sido afectado pelo “Pecado Original”, o sistema britânico “sofre agora de uma espécie de «delinquência senil precoce»”.
Contudo, não é – de certa forma – “justo” comparar nesta sede os dois sistemas, pois, apesar de tudo, estes “tribunais administrativos” estariam sempre numa dependência quanto aos tribunais comuns, sendo que a última palavra seria sempre destes últimos tribunais. De facto, somente após favorável sentença de um tribunal judicial comum podia a Administração unilateralmente impor as suas decisões e isso consubstancia uma grande diferença, especialmente ao nível das garantias dos particulares.
Uma nota mais quanto à organização administrativa – uma vez que que também foi feita esta referência quanto ao sistema francês. Em Inglaterra a tradição é a do poder local. As autarquias locais gozavam de uma ampla autonomia perante uma intervenção central bastante reduzida. As autarquias locais não eram encaradas como meros instrumentos ao serviço do governo central, mas antes como entidades independentes. Eram verdadeiros local governments.

Em síntese, de acordo com o Professor Vasco Pereira da Silva[21] são essencialmente cinco os traços distintivos dos dois sistemas: i) organização administrativa: um sistema é centralizado enquanto o outro é descentralizado; ii) controlo jurisdicional da Administração: na França há pluralidade de jurisdições e em Inglaterra há uma unidade de jurisdição; iii) Direito regulador da Administração: no sistema francês rege o Direito Administrativo (Direito Público) e em Inglaterra rege o Direito Comum (que é basicamente Direito Privado); iv) execução das decisões administrativas: em França rege a prerrogativa da execução prévia e em Inglaterra o sistema de administração judiciária depende de sentença do tribunal; v) garantias dos particulares: em França a Administração é independente do poder judicial, enquanto em Inglaterra os tribunais gozam de amplos poderes de injunção face à Administração.
Por fim, de referir que tanto o Professor Freitas do Amaral como o Professor Vasco Pereira da Silva, entendem que com o passar do tempo tem-se verificado uma aproximação relativa entre ambos os sistemas[22].

IV.           Bibliografia

Amaral, Freitas do, Curso de Direito Administrativo, vol. I, 3ª edição, almedina, 2006

Caetano, Marcello, Manual de Direito Administrativo, vol. II, 9ª edição, Almedina, 1983

Chancerelle de Manchete, Rui, Privilégio da Execução Prévia in: Dicionário Jurídico da Administração Pública, Separata do VI volume, 1994

Correia, Sérvulo, Direito do Contencioso Administrativo, vol.I, Lisboa, 2005

Pereira da Silva, Vasco, O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise, 2ª edição, Almedina, 2009

Pereira da Silva, Vasco, Portugal, Brasil e o Mundo do Direito, Coimbra, Almedina, 2008





[1] Amaral, Freitas do, Curso de Direito Administrativo, vol. I, 3ª edição, almedina, 2006, p.99
[2] Pereira da Silva, Vasco, O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise, 2ª edição, Almedina, 2009, p.13 ss.
[3] Correia, Sérvulo, Direito do Contencioso Administrativo, vol.I, Lisboa, 2005, p. 44
[4] Pereira da Silva, Vasco, O Contencioso Administrativo (...), p. 14
[5] Pereira da Silva, Vasco, O Contencioso Administrativo (...), p. 14
[6] Correia, Sérvulo, Direito do Contencioso (...), p. 44
[7] Pereira da Silva, Vasco, O Contencioso Administrativo (...), p. 14
[8] Esta figura surgiu por resposta à subtracção do órgão da Administração ao controlo do juiz. Desde modo levantou-se a questão de saber quem poderia velar pelo respeito da lei nas relações entre o Estado e o administrado. A fiscalização da legalidade da conduta administrativa teria de caber aos topos das hierarquias administrativas, cabendo portanto, num primeiro momento ao Rei. Correia, Sérvulo, Direito do Contencioso (...) p.44
[9] Pereira da Silva, Vasco, O Contencioso Administrativo (...), p. 20
[10] Amaral, Freitas do, Curso de Direito (...), p. 110
[11] Os primeiros tribunais administrativos foram o Conseil d’État e os Conseils de Péfecture. Tratava-se de órgãos consultivos, porém uma das secções recebia funções jurisdicionais. Não eram tribunais como actualmente os encaramos, mas órgãos da Administração que julgavam com independência outros órgãos da Administração. “Le Conseil d’État c’est l’Administration qui se juge” Cfr Caetano, Marcello, Manual de Direito Administrativo, vol. II, 9ª edição, Almedina, 1983, p. 1303
[12] De salientar que o Professor Vasco Pereira da Silva reconduz o nascimento do Direito Administrativo mais propriamente ao acórdão Blanco, Pereira da Silva, Vasco, O Contencioso Administrativo (...), p. 53
[13] Para mais desenvolvimentos, Chancerelle de Manchete, Rui, Privilégio da Execução Prévia in: Dicionário Jurídico da Administração Pública, Separata do VI volume, 1994.
[14] O Professor Freitas do Amaral exemplifica: se a Administração Pública dá uma ordem de demolição, o particular ou acata a ordem, ou se não a acata, a Administração poderá servir-se dos meios ao seus dispor para impor a aplicação da decisão, isto sem ter necessidade de uma ordem judicial prévia, Amaral, Freitas do, Curso de Direito (...), p. 112.
[15] Pereira da Silva, Vasco, O Contencioso Administrativo (...), p.45
[16] Pereira da Silva, Vasco, O Contencioso Administrativo (...), p.85
[17] Pereira da Silva, Vasco, O Contencioso Administrativo (...), p.56
[18] Pereira da Silva, Vasco, O Contencioso Administrativo (...), p. 62
[19] Amaral, Freitas do, Curso de Direito (...), p. 106
[20] Pereira da Silva, Vasco, O Contencioso Administrativo (...), p. 65
[21] Pereira da Silva, Vasco, Portugal, Brasil e o Mundo do Direito, Coimbra, Almedina, 2008, p.138
[22] Pereira da Silva, Vasco, Portugal, Brasil e (...) p. 139 e ss, Amaral, Freitas do, Curso de Direito (...), p 124 ss.


Madalena Luís
Nº22111

Sem comentários:

Enviar um comentário