segunda-feira, 15 de dezembro de 2014

Análise Psicanalítica dos Contra-Interessados no Contencioso Administrativo
1.     
Definição

A figura dos contra-interessados está consagrada pelo legislador no Código de Processo nos Tribunais Administrativos, doravante CPTA, nos artigos 10.º n.º 1, 57.º, e 68.º n.º2. Refere o artigo 10.º n.º1, em termos genéricos, os “titulares de interesses contrapostos aos do autor”. Os restantes dois artigos vêm, na parte especial, concretizar esta noção. O artigo 57.º menciona “ quem o provimento impugnatório possa diretamente prejudicar ou que tenham legítimo interesse na manutenção do ato impugnado”. No mesmo sentido, quanto à Condenação à pática de ato devido, o artigo 68.º nº2 alude “a quem a prática do acto omitido possa diretamente prejudicar ou que tenham legítimo interesse em que ele não seja praticado”. Os contra-interessados são, assim, “sujeitos privados envolvidos no litígio, na medida em que os seus interesses coincidem com os da administração ou, pelo menos, podem ser diretamente afetados na sua consistência jurídica com a procedência da ação”[1].
2.      
Evolução das Relações Administrativas

Com o desenvolvimento das relações administrativas e das funções da administração perdeu-se o paradigma clássico de lógica bilateral, em que as relações assentavam tradicionalmente entre um ente público e um particular. Hoje existe uma lógica multilateral – poligonal ou triangular – das relações administrativas. Uma característica destas situações interrelacionadas é que a satisfação dos interesses de um titular implica tendencialmente o desfavorecimento de outros, ou seja, as posições do sujeito que intenta a ação e as situações dos terceiros – contra-interessados - condicionam-se reciprocamente [2]. Desta forma, surge uma atenuação da noção de “terceiro”, visto que tendem a existir certas atuações administrativas, que dada a sua essência poligonal afetam sujeitos que não são os seus imediatos destinatários[3]. A administração na prossecução do interesse público produz decisões que, em certos casos, produzem efeitos na esfera jurídica de uma pluralidade de destinatários, que tanto podem ser os diretos e imediatos como outros “terceiros”. Ora, dada esta implicação, não são terceiros na verdadeira aceção do termo, são titulares de um conjunto de posições jurídicas merecedoras de tutela jurídica no contencioso administrativo, visto que podem ser alvo dos efeitos do conteúdo das decisões da administração[4]. Assim, nota-se hoje um relevo jurídico acrescido relativamente à figura do contra-interessado, com particular destaque em certos domínios do direito como o urbanismo, a concorrência, o ambiente ou o património.
3.     
O Regime Legal

Anteriormente ao CPTA já a Lei de Processo nos Tribunais Administrativos, doravante LPTA, previa a figura dos contra-interessados no seu artigo 36.º nº1 b), ao referir que deviam ser identificados os “interessados a quem o provimento do recurso possa prejudicar”, sob pena de ilegitimidade passiva. Atualmente, o CPTA, como se disse, também tutela a figura dos contra-interessados. Em primeiro lugar, estabelece o artigo 10.º nº1, que a ação também deve ser proposta “contra as pessoas ou entidades titulares de interesses contra-postos aos do autor”. O legislador faz ainda referência expressa aos contra-interessados nos processos de impugnação de actos administrativos e de condenação à prática de acto devido, o que se justifica pela possibilidade de existência de sujeitos que poderão ser diretamente afetados pela procedência destes tipos de ação. Exemplo, claro, é a impugnação do acto de atribuição de uma licença de construção, visto que ao interesse do vizinho que pretende a impugnação da licença dada pela administração contrapõe-se o interesse do proprietário do imóvel. Prevê o artigo 57.º do CPTA, sob a epígrafe contra-interessados, que “são obrigatoriamente demandados os contra-interessados a quem o provimento do processo impugnatório possa diretamente prejudicar ou que tenham interesse na manutenção do acto”. Quanto à condenação à prática de acto devido, prevê o artigo 68.º nº2 que sejam “obrigatoriamente demandados no processo os contra-interessados a quem a prática do acto omitido possa diretamente prejudicar ou que tenham legítimo interesse em que ele não seja praticado”. Assim sendo, nota-se a existência de uma situação de litisconsórcio necessário passivo[5]. Neste ponto acrescenta PAULO OTERO, com base na jurisprudência[6], que estamos perante uma dupla situação de litisconsórcio necessário passivo: por um lado entre administração e contra-interessado, por outro entre os todos os contra-interessados. É, assim, imposto um ónus ao autor, dado que a falta de citação consubstancia uma situação de ilegitimidade passiva, faltando o requisito imposto para a petição inicial do artigo 72.º nº2 f), e isto terá como consequência o não prosseguimento do processo nos termos do artigo 89.º nº1 f) e a inoponibilidade da decisão judicial que, eventualmente, venha a ser proferida à revelia dos contra-interessados, nos termos do artigo 155º n.º2. Importa ainda referir que, quanto à delimitação dos contra-interessados, o próprio código prevê na parte final dos artigos 57.º e 68.º nº2, referindo aqueles “que possam ser identificados em função da relação material em causa ou dos documentos contidos no processo administrativo”, um critério objetivo que se junta ao critério dos efeitos da sentença e da posição subjetiva tutelável face ao acto. Solução mista adotada pelo legislador no CPTA, que é fortemente criticada por PAES MARQUES.[7]
4.      
Fundamentação

A lei estabelece o ónus de serem demandados os contra-interessados. O fundamento desta intervenção processual encontra-se na sua funcionalidade. Quanto à função subjetivista, os contra-interessados são chamados ao processo por terem a necessidade de garantir interesses próprios; são materialmente titulares de direitos e interesses que justificam a sua intervenção no processo, encontrando o seu fundamento na tutela jurisdicional efetiva, como resulta do artigo 20.º da CRP, que naturalmente abrange a vertente contenciosa. Do ponto de vista constitucional, acrescem ainda, em concretização deste primeiro fundamento, o respeito pelos direitos e interesses legalmente protegidos, como prevê o artigo 266.º nº1 da CRP, e a existência de meios contenciosos idóneos que os garantam, como resulta do artigo 268.º nº4 da CRP. Neste caso particular são merecedores da respetiva tutela, dado que a procedência da ação pode lesar a sua posição jurídica subjetiva. Por outro lado, um segundo fundamento é o princípio do contraditório[8], visto que a atuação processual do autor é passível de lesar a posição jurídica do contra-interessado. Assim, deve ser assegurada a possibilidade de participar no processo para que possa defender os seus direitos e interesses. Quanto à função objetiva, centra-se na oponibilidade dos efeitos da sentença. Decorre também da tutela jurisdicional efetiva que a eficácia subjetiva do caso julgado é limitada a quem teve a possibilidade de participar no processo. Assim, os contra-interessados que não foram demandados na ação não se encontram vinculados pelos efeitos da decisão judicial. Desta feita, pode afirmar-se que também a função objetivista corrobora a exigência legal de intervenção processual dos contra-interessados.[9] Os contra-interessados são assim tutelados pelo contencioso administrativo com fundamento em valores constitucionais, estando vedada a possibilidade do legislador abdicar da sua intervenção processual sob pena de inconstitucionalidade.
5.     
Natureza e Designação  

No desenvolvimento da nossa análise psicanalítica à figura dos contra-interessados, estamos agora em condições de questionar se o legislador não terá incorrido num processo de “troca de nomes”. Será feliz a designação dada pelo legislador aos “titulares de interesses contrapostos aos do autor”? Não serão os contra-interessados verdadeiras partes no processo? Considera VASCO PEREIRA DA SILVA que os contra-interessados são impropriamente chamados de “terceiros”, visto que são titulares de posições de vantagem e são verdadeiros sujeitos de relações jurídicas multilaterais. Acrescenta que foi adotada uma designação tradicional de contra-interessados que é sobretudo marcada pela lógica bilateralista clássica, não definindo concretamente o seu papel no processo, sendo relegado para uma posição passiva secundária face à da administração. Lembra o douto professor que perante o “novo paradigma das relações administrativas multilaterais do Direito Administrativo (substantivo) implica a revalorização dos impropriamente chamados terceiros no Contencioso Administrativo, como sujeitos principais dotados de legitimidade ativa e passiva”. Lamenta, assim, a ausência de tratamento ao nível das regras gerais e o tratamento pouco detalhado na parte especial[10]. Por seu turno, MÁRIO AROSO DE ALMEIDA considera igualmente que os contra-interessados assumem também a qualidade de verdadeiras partes no processo[11]. Sustenta que são os próprios artigos do CPTA que reconhecem esse estatuto, ao imporem o litisconsórcio necessário passivo nos artigos 10.ºnº, 57º e 68.ºnº2. RUI MACHETE no seu estudo também sustenta que há uma separação bem nítida entre contra-interessados e qualquer outro terceiro, dada a participação dos primeiros como parte principal, como confirma o CPTA ao remeter subsidiariamente para o regime do processo civil a intervenção de terceiros por força do artigo 10.º nº8.[12] No mesmo sentido se inclina VIEIRA DE ANDRADE que, depois de ter invertido a sua opinião, também reconhece os contra-interessados como verdadeiras partes, dada a obrigação legal de os citar, constante do CPTA[13]. Face ao exposto, da conjugação das opiniões dos vários professores, podemos concluir que parece justificar-se atribuir a qualidade de parte aos contra-interessados, e que a ser assim, na esteira de VASCO PEREIRA DA SILVA, poderia eventualmente o legislador adoptar uma designação que mais se apropriasse a tal estatuto e que melhor detalhasse o regime legal, assim superando o apego às marcas da ultrapassada lógica bilateral das relações administrativas.
6.      
A Reforma do Contencioso Administrativo

Relativamente à reforma em curso do Contencioso Administrativo, parece que, em princípio, a figura dos contra-interessados não sofrerá qualquer modificação substancial. Das normas em questão, está prevista apenas uma mudança da redação do artigo 68.º nº2 que não modificará o seu conteúdo material, alterando apenas uma palavra do preceito legal. A ser assim, a figura manter-se-á nos mesmos termos. Embora se possa continuar a extrair do regime legal que os contra-interessados são partes principais no processo, parece que o legislador não acatou o diagnóstico psicanalítico feito por VASCO PEREIRA DA SILVA, optando por não detalhar a figura dos contra-interessados nem alterar a sua designação por outro termo que melhor se adequasse ao estatuto de parte.
7.     
Bibliografia
·         
Almeida, Mário AROSO de, Manual de Processo Administrativo, reimpressão, Almedina, 2013.
·         Andrade, José Carlos Vieira de, A Justiça Administrativa (Lições), 11ª edição, Almedina, 2011.
·         Machete, Rui Chancerelle, A Legitimidade dos Contra-interessados nas Ações Administrativas Comuns e Especiais, in Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Marcello Caetano, Vol. II, Faculdade de Direito de Lisboa, 2006.
·         Marques, Francisco Paes, A Efectividade da Tutela de Terceiros no Contencioso Administrativo, Almedina, 2007.
·         Otero, Paulo, Os Contra-interessados em Contencioso Administrativo: fundamento, função e determinação do universo em recurso contencioso de acto final de procedimento concursal, in Estudos em Homenagem ao Professor Rogério Soares, Coimbra Editora, 2001.
·         Silva, Vasco Pereira daO Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise, 2ª edição, atualizada, Almedina, 2009.
·         SILVA, VASCO PEREIRA DA, Em Busca do Acto Administrativo Perdido, Coimbra, 1996.


Emanuel Sousa, 22593, Subturma 4


[1] Mário Aroso de ALMEIDA, Manual de Processo Administrativo, Almedina, 2010, p. 263; Refere ainda que num entendimento mais amplo são contra-interessados os titulares de interesses possivelmente ou potencialmente contrapostos aos do autor fundados em situações jurídicas subjetivas que serão afetadas pela eventual procedência da ação.
[2] RUI MACHETE, A Legitimidade dos Contra-interessados nas Ações Administrativas Comuns e Especiais, in Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Marcello Caetano, Vol. II, 2006, p. 619.
[3] Neste sentido, VASCO PEREIRA DA SILVA, Em Busca do Acto Administrativo Perdido, Coimbra, 1996, p.128 e ss.
[4] Paulo otero, Os Contra-interessados em Contencioso Administrativo: fundamento, função e determinação do universo em recurso contencioso de acto final de procedimento concursal, in Estudos em Homenagem ao Professor Rogério Soares, 2001, 1075 -1076.
[5]Mário Aroso de ALMEIDA, obra supra citada, p.262.
[6] Ainda à luz do anterior regime legal, Acórdão da 1ª Secção do Supremo Tribunal Administrativo de 9 de Março, recurso n.º 35.846 e Acórdão da 1ª Secção do Supremo Tribunal Administrativo, de 28 de Setembro de 1993, recurso n.º 32.026.
[7] FRANCISCO PAES MARQUES, A Efetividade da tutela de Terceiros no Contencioso Administrativo, 2007, p. 98 e ss.
[8] JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADE, A Justiça Administrativa, 2011, p.260.
[9] PAULO OTERO, obra supra citada, p. 1100 e p. 1085 e ss.
[10]VASCO PEREIRA DA SILVA, O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise, 2009, p. 372 e 373.
[11] MÁRIO AROSO DE ALMEIDA, obra supra citada, p. 262.
[12] RUI MACHETE, obra supra citada, p. 623.
[13] VIEIRA DE ANDRADE, obra supra citada, p.259.

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