É
conhecido de todos a relação difícil e volátil entre a Administração e a
Constituição. Importa evidenciar que o Contencioso Administrativo e a Constituição
são indissociáveis, com fundamento nos seguintes factores:
(a)
A Justiça Administrativa tem o seu
fundamento, a sua “razão de viver” na Constituição.
(b)
A efectividade da Constituição depende
igualmente do Contencioso Administrativo, na medida em que as regras e
princípios fundamentais relativos à Administração constituem parte integrante
da constituição material, cabendo aos tribunais garantir a respectiva
aplicação.
Como
se sabe, na fase da “confirmação” do nosso Contencioso Administrativo,
assistimos à reafirmação da sua natureza plenamente jurisdicionalizada, assim
como à ênfase da dimensão subjetiva, atinente à proteção integral e efectiva
dos direitos dos particulares. Esta fase foi realizada ao nível constitucional.
Em Portugal, porém, o “baptismo” e a “confirmação” ocorreram ao mesmo tempo, na
mesma “cerimónia”.
Foram
autores como FRIZT WERNER e GEORGES VEDEL que introduziram a ideia do Direito
Administrativo como “Direito Constitucional concretizado”. Ou seja, de forma
lapidar, a Justiça Administrativa é um ente impassível de ser autónomo, só
podendo ser definido a partir da Constituição. É na Constituição que a Justiça
Administrativa encontra o seu fundamento basilar.
Podemos
reparar que, no decorrer da história entre a Constituição e o Contencioso Administrativo,
este último nem sempre conseguiu concretizar a Constituição.
A
revisão constitucional de 1982 do Contencioso Administrativo veio acentuar a
sua vertente de proteção jurídica individual, aditando a fórmula “direito ou
interesse legalmente protegido” ao preceito do artigo 268.º, n.º 3 da CRP. O
novo ETAF e a LEPTA revistos em 85 não cumpriram expectativas, ficando
incompleto, resultado da deficiência da técnica legislativa adotada, não
procedendo à revogação global da legislação reguladora do CA, mantendo
inclusive várias disposições elaboradas no quadro da antiga ordem
constitucional. Esta tentativa do Contencioso Administrativo se harmonizar com
a Constituição não resultou, culminando em dúvidas e dificuldades, o que levou
a mais sessões de psicanálise. A relação entre a Constituição e o Contencioso
Administrativo não começou da melhor maneira, visto que a legislação ordinária
não se compatibiliza de forma integral e plena com a primeira revisão
constitucional. Mas também ocorreu da mesma forma com as sucessivas revisões
constitucionais.
Segue-se
a revisão constitucional de 1989, que implicou uma radical transformação do
compromisso constitucional acerca do modelo do Contencioso Administrativo,
acentuando a respectiva jurisdicionalização e subjetivação. Todavia, o
Contencioso Administrativo (o legislador ordinário) não concretizou estas
soluções constitucionais, sendo um imperativo que o fizesse.
Face
a toda esta conjuntura, ainda podemos dizer que a Justiça Administrativa é o
“Direito Constitucional concretizado”? Se o for, não é totalmente, mas sim de
forma fragmentária, o que não se coaduna com uma “vida a dois”. Nada poderia
diminuir o fosso entre o modelo constitucional de Contencioso Administrativo e
a sua realização legislativa, verificando-se uma grave omissão por parte do
legislador ordinário, que continuava a resistir a cumprir os ditames
constitucionais em matéria de Contencioso Administrativo.
A
revisão constitucional de 1997 também não foi acompanhada de uma intervenção
activa por parte do legislador ordinário. A situação agravou-se com a entrada
em vigor de legislação que transpunha normas comunitárias relativas a
contratação pública.
Assistimos
a uma discrepância intolerável entre o texto e a prática constitucional no que
respeitava ao Contencioso Administrativo. Depois de tantos anos de terapia
intensiva, conclui-se que estávamos perante uma autêntica esquizofrenia
jurídica que punha em causa a efectividade da Constituição. Com as alterações
constitucionais que iam na direção de um maior aprofundamento do princípio da
proteção plena e efectiva dos direitos dos particulares, assim como a
instauração de um sistema de plena jurisdição, cabe ao Contencioso
Administrativo “agonizar-se” com tais mudanças e também proceder ele mesmo a
alterações.
Finalmente,
em 2000 inicia-se um longo e atribulado procedimento legislativo que iria
conduzir à reforma do Processo Administrativo.
Podemos
desde já antecipar que a Constituição consagrou um modelo de Justiça
Administrativa plenamente jurisdicionalizado, em que os tribunais
administrativos constituem uma jurisdição autónoma dentro do poder judicial.
Todavia, até 2000 esse modelo não tinha encontrado concretização legislativa. É
da minha humilde opinião, face ao fosso entre os comandos constitucionais e a
lei, ao longo do historial entre ambos, que o Contencioso Administrativo não
era direito constitucional concretizado, mas sim a concretizar. Este problema
foi resolvido em parte pela grande reforma de 2004.
Importa
acrescentar que todas as Constituições pressupõem uma ordem de valores. O Vasco
Pereira da Silva afirma que a jurisprudência é muito “agarrada à lei”,
esquecendo-se que a nossa Constituição possui uma “identidade axiológica”, pelo
que a Justiça Administrativa ainda é, em parte, Direito Constitucional por
concretizar. Para além do mais, ao lado da Constituição formal, existe uma
Constituição informal. Isto é, um lado subversivo, que leva à desaplicação do
texto escrito da Constituição “oficial”. Será que o Contencioso Administrativo
consegue acompanhar a Constituição, concretizando os seus valores subjacentes?
Assistimos
atualmente a uma nova reforma do Contencioso Administrativo. Será que a nova
reforma transmutará a Justiça Administrativa num efectivo Direito
Constitucional concretizado? Eis a grande questão.
Rafael Felizardo dos Santos, n.º 22083
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