quarta-feira, 10 de dezembro de 2014

O contencioso administrativo como “Direito Constitucional Concretizado” ou por concretizar?

É conhecido de todos a relação difícil e volátil entre a Administração e a Constituição. Importa evidenciar que o Contencioso Administrativo e a Constituição são indissociáveis, com fundamento nos seguintes factores:
(a)         A Justiça Administrativa tem o seu fundamento, a sua “razão de viver” na Constituição.
(b)         A efectividade da Constituição depende igualmente do Contencioso Administrativo, na medida em que as regras e princípios fundamentais relativos à Administração constituem parte integrante da constituição material, cabendo aos tribunais garantir a respectiva aplicação.
Como se sabe, na fase da “confirmação” do nosso Contencioso Administrativo, assistimos à reafirmação da sua natureza plenamente jurisdicionalizada, assim como à ênfase da dimensão subjetiva, atinente à proteção integral e efectiva dos direitos dos particulares. Esta fase foi realizada ao nível constitucional. Em Portugal, porém, o “baptismo” e a “confirmação” ocorreram ao mesmo tempo, na mesma “cerimónia”.
Foram autores como FRIZT WERNER e GEORGES VEDEL que introduziram a ideia do Direito Administrativo como “Direito Constitucional concretizado”. Ou seja, de forma lapidar, a Justiça Administrativa é um ente impassível de ser autónomo, só podendo ser definido a partir da Constituição. É na Constituição que a Justiça Administrativa encontra o seu fundamento basilar. 
Podemos reparar que, no decorrer da história entre a Constituição e o Contencioso Administrativo, este último nem sempre conseguiu concretizar a Constituição.
A revisão constitucional de 1982 do Contencioso Administrativo veio acentuar a sua vertente de proteção jurídica individual, aditando a fórmula “direito ou interesse legalmente protegido” ao preceito do artigo 268.º, n.º 3 da CRP. O novo ETAF e a LEPTA revistos em 85 não cumpriram expectativas, ficando incompleto, resultado da deficiência da técnica legislativa adotada, não procedendo à revogação global da legislação reguladora do CA, mantendo inclusive várias disposições elaboradas no quadro da antiga ordem constitucional. Esta tentativa do Contencioso Administrativo se harmonizar com a Constituição não resultou, culminando em dúvidas e dificuldades, o que levou a mais sessões de psicanálise. A relação entre a Constituição e o Contencioso Administrativo não começou da melhor maneira, visto que a legislação ordinária não se compatibiliza de forma integral e plena com a primeira revisão constitucional. Mas também ocorreu da mesma forma com as sucessivas revisões constitucionais.  
Segue-se a revisão constitucional de 1989, que implicou uma radical transformação do compromisso constitucional acerca do modelo do Contencioso Administrativo, acentuando a respectiva jurisdicionalização e subjetivação. Todavia, o Contencioso Administrativo (o legislador ordinário) não concretizou estas soluções constitucionais, sendo um imperativo que o fizesse.
Face a toda esta conjuntura, ainda podemos dizer que a Justiça Administrativa é o “Direito Constitucional concretizado”? Se o for, não é totalmente, mas sim de forma fragmentária, o que não se coaduna com uma “vida a dois”. Nada poderia diminuir o fosso entre o modelo constitucional de Contencioso Administrativo e a sua realização legislativa, verificando-se uma grave omissão por parte do legislador ordinário, que continuava a resistir a cumprir os ditames constitucionais em matéria de Contencioso Administrativo.  
A revisão constitucional de 1997 também não foi acompanhada de uma intervenção activa por parte do legislador ordinário. A situação agravou-se com a entrada em vigor de legislação que transpunha normas comunitárias relativas a contratação pública.
Assistimos a uma discrepância intolerável entre o texto e a prática constitucional no que respeitava ao Contencioso Administrativo. Depois de tantos anos de terapia intensiva, conclui-se que estávamos perante uma autêntica esquizofrenia jurídica que punha em causa a efectividade da Constituição. Com as alterações constitucionais que iam na direção de um maior aprofundamento do princípio da proteção plena e efectiva dos direitos dos particulares, assim como a instauração de um sistema de plena jurisdição, cabe ao Contencioso Administrativo “agonizar-se” com tais mudanças e também proceder ele mesmo a alterações.
Finalmente, em 2000 inicia-se um longo e atribulado procedimento legislativo que iria conduzir à reforma do Processo Administrativo.
Podemos desde já antecipar que a Constituição consagrou um modelo de Justiça Administrativa plenamente jurisdicionalizado, em que os tribunais administrativos constituem uma jurisdição autónoma dentro do poder judicial. Todavia, até 2000 esse modelo não tinha encontrado concretização legislativa. É da minha humilde opinião, face ao fosso entre os comandos constitucionais e a lei, ao longo do historial entre ambos, que o Contencioso Administrativo não era direito constitucional concretizado, mas sim a concretizar. Este problema foi resolvido em parte pela grande reforma de 2004.
Importa acrescentar que todas as Constituições pressupõem uma ordem de valores. O Vasco Pereira da Silva afirma que a jurisprudência é muito “agarrada à lei”, esquecendo-se que a nossa Constituição possui uma “identidade axiológica”, pelo que a Justiça Administrativa ainda é, em parte, Direito Constitucional por concretizar. Para além do mais, ao lado da Constituição formal, existe uma Constituição informal. Isto é, um lado subversivo, que leva à desaplicação do texto escrito da Constituição “oficial”. Será que o Contencioso Administrativo consegue acompanhar a Constituição, concretizando os seus valores subjacentes?
Assistimos atualmente a uma nova reforma do Contencioso Administrativo. Será que a nova reforma transmutará a Justiça Administrativa num efectivo Direito Constitucional concretizado? Eis a grande questão.


Rafael Felizardo dos Santos, n.º 22083

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