terça-feira, 16 de dezembro de 2014

Extensão dos poderes de pronúncia dos Tribunais Administrativos e análise particular do artigo 71.º do CPTA


         Como já sabemos, a relação da Administração Pública e os particulares está envolta em Princípios Constitucionais e Administrativos que visam garantir a conformidade da actividade administrativa com o Direito.
            Um dos Princípios que mais releva neste contexto é o da Separação de Poderes, previsto nos artigos 2.º, 111.º e 288.º/j da Constituição da República Portuguesa e que comporta uma dimensão negativa (que se traduz em pôr fim à concentração e centralização dos diferentes poderes públicos) e uma dimensão positiva (que se traduz numa forma de melhorar e tornar mais eficaz o funcionamento e organização do poder público.
            Não restam dúvidas que há uma clara separação entre administração e jurisdição.
A subordinação jurídica de todos os poderes públicos é essencial num Estado de Direito, em que surge como um dos Princípios primordiais o Princípio da Legalidade (Arts. 2.º e 266.º/2 CRP, e no art. 3.º CPA) que, como refere o Prof. Vasco Pereira da Silva, surgiu no Estado liberal como fundamento democrático e garantístico.
Por imposição constitucional e legal, conforme foi referido, a Administração Pública está subordinada à lei. Mas esta não tem capacidade de regular detalhadamente e com precisão (quer em termos circunstanciais quer em termos técnicos) cada acto praticado pela Administração, prevendo mesmo a própria lei uma regulamentação imprecisa e discricionária consoante a natureza da actividade administrativa.
A CRP não reserva expressamente a função administrativa aos órgãos administrativos e através do art. 202.º/2 da CRP percebe-se que os tribunais também se encontram habilitados a decidir em matéria administrativa que teoricamente caberia à Administração. Cabe salientar que apenas se encontram habilitados a “reprimir a violação da legalidade democrática” e não a fiscalizar o mérito das actuações públicas. Sendo este um importante indício da existência de uma margem de livre decisão da administração, que apenas pode ser controlada pelos tribunais na medida em que tenha havido a violação de um qualquer parâmetro de conformidade jurídica, tal como resulta implicitamente da CRP e como o art. 71.º do CPTA veio reforçar.
Assim, constatamos a existência de actos administrativos judicativos que correspondem a situações em que o exercício de uma função materialmente jurisdicional surge em ligação estreita com o exercício da função administrativa e, portanto, não funciona uma reserva absoluta de jurisdição, mas apenas uma reserva relativa. Nestes casos, órgãos administrativos exercem em primeiro grau poderes materialmente jurisdicionais, sendo que haverá um posterior controlo jurisdicional, necessariamente de plena jurisdição.
A margem de livre decisão administrativa consiste num “espaço de liberdade de actuação administrativa conferido por lei e limitado pelo bloco de legalidade, implicando, portanto, uma pelo menos parcial autodeterminação administrativa.[1] O artigo 71.º do CPTA, a propósito da condenação da Administração à prática de actos legalmente devidos, acolhe expressamente a margem de livre decisão administrativa. Segundo os Profs. Marcelo Rebelo de Sousa e André Salgado de Matos, trata-se de uma originalidade do direito nacional que nada acrescentou ao princípio constitucional da separação de poderes.
Segundo o estabelecido neste artigo, o tribunal deve, por um lado, respeitar a “formulação de valorações próprias do exercício da função administrativa” e, por outro, explicitar os limites e “as vinculações a observar pela Administração na emissão do acto devido” pois torna-se claro que esta margem apresenta limites, quer pelas vinculações legais quer pelos Princípios da nossa ordem jurídica.
            Como refere o Prof. Aroso de Almeida, “questão complexa e decisiva é a de saber qual a extensão dos poderes de pronúncia de que dispõe o Tribunal neste domínio”[2]. Entramos aqui na problemática especial do art. 71.º/2.
Classicamente, entendia-se a diminuição dos poderes do tribunal relativamente ao contencioso de anulação de actos administrativos como um limite funcional da Justiça Administrativa. O tribunal apenas podia anular os actos da Administração, não podendo exercer os seus poderes de plena jurisdição, nomeadamente dando ordens à Administração ou condenando-a (excepto se se tratasse de condenação para pagamento de uma indemnização), sob pena de se colocar em conflito a competência para julgar e a competência para administrar, ideia que se baseava numa visão política francesa do Princípio de Separação de Poderes.
Como é referido pelos Professores Freitas do Amaral e Aroso de Almeida, “Dando satisfação às reivindicações que vinham sendo formuladas na Doutrina, o CPTA pôr termo à dualidade de meios processuais que, sem justificação aparente, a LPTA tinha introduzido no domínio da impugnação de normas emitidas, substituindo-a por uma nova dualidade de regimes quanto ao tipo de pronúncias judiciais que passam a ser proferidas pelos Tribunais Administrativos relativamente a todo o tipo de normas emanadas no exercício da função administrativa.”[3] A revisão constitucional de 1997 consagra no artigo 268.º/4 da CRP um meio contencioso de pronúncia condenatória, passando a prever-se a possibilidade de determinação da prática do acto administrativo legalmente devido. Passamos, assim, da mera possibilidade de anulação para a plena jurisdição em que houve uma mudança de paradigma na lógica do Contencioso Administrativo e, segundo o Prof. Vasco Pereira da Silva, foram superados alguns “traumas de infância[4], superação essa, que se torna ainda mais efectiva com a novidade do artigo 71.º do CPTA, trazida na Reforma de 2004.
A problemática subjacente ao art. 71.º/2 do CPTA relaciona-se com a fronteira entre o poder jurisdicional e os poderes da Administração. É necessário saber delimitar a fronteira entre os poderes de pronúncia do tribunal e o âmbito dos poderes discricionários da Administração, para se identificar o verdadeiro alcance dos artigos 66.º ss. do CPTA, relativos à acção administrativa especial de condenação à prática de acto devido, uma vez que o tribunal não se pode intrometer no espaço próprio de actuação administrativa sob pena de violação do princípio da separação de poderes. A determinação do alcance dos poderes do tribunal é um momento fulcral da acção de condenação da Administração à prática do acto legalmente devido
O Prof. Vieira de Andrade refere que quando a emissão do acto envolva valorações específicas do exercício da função administrativa (ou seja, quando o conteúdo desse acto não seja completamente vinculado, o juiz ter-se-á que limitar a uma condenação geral, sem pôr em causa o a autonomia e poderes de decisão da Administração.
Os tribunais administrativos apenas têm competência para julgar do “cumprimento pela Administração das normas e princípios jurídicos que a vinculam”, nos termos do art. 3.º/1 CPTA  e  não pode intrometer-se no espaço próprio que corresponde ao exercício de poderes discricionários da Administração. Como ensina o Prof. Aroso de Almeida, “O tribunal deve condenar a administração a praticar o acto, traçando em maior ou menor medida, o quadro, de facto e de direito, dentro do qual esses poderes discricionários devem ser (re)exercidos.” [5]
O âmbito dos poderes de pronúncia do tribunal varia consoante a extensão dos poderes discricionários da Administração. Esta nem sempre tem os mesmos poderes, nem estes são necessária e totalmente vinculados e, por isso, o tribunal tem de se adaptar à realidade do caso concreto e agir em conformidade com o pretendido pela lei, nomeadamente dando espaço de liberdade às actuações administrativas quando a lei o determine e não se intrometendo em questões que a lei considerou não serem da sua competência. Deste modo, quanto maior for a liberdade atribuída à Administração, mais comprimidos serão os poderes de pronúncia do tribunal. Assim, o interesse público será prosseguido da melhor forma, uma vez que se consegue alcançar resultados mais favoráveis, respeitando-se o princípio da proporcionalidade nas suas vertentes de adequação (condutas adoptadas são aptas para a prossecução do fim que se pretende concretamente atingir), necessidade (meios usados são os menos lesivos para o interesse público) e razoabilidade (os benefícios superam os custos).
Analisando Jurisprudência concreta sobre esta matéria, escolhemos o Acórdão do Processo 00426/05 de 10 de Maio de 2007, do TAF do Porto, relativa a uma situação passada no I.C.B.A.S, em que depois de uma reunião do Conselho Científico, uma professora Catedrática interpõe um processo contra o Presidente do Conselho Científico pois após essa mesma reunião foi decidido que, por haver falta de docentes, a professora catedrática iria prestar auxílio a uma disciplina que era regida por uma assistente. Foi enviado um ofício à Professora a informá-la e esta sentiu-se inferiorizada e revoltada por ter que coadjuvar uma colega numa categoria profissional inferior à sua. A Professora indignada pede ao reitor que instaure um processo disciplinar ao Presidente do Conselho Científico mas aquele, por decidir que não havia matéria para tal, arquiva, através de um despacho, este processo.
A Professora interpõe uma acção à prática do acto administrativo devido pois considera que o reitor tinha que ter aberto aquele processo. O TAF do Porto e, mais tarde, o Tribunal Central Administrativo do Norte vêm precisamente considerar que se o reitor considerou que não há matéria nem verdadeiro procedimento disciplinar, então os Tribunais não podem interferir na sua espera de poder e decisão. O reitor considerou que os elementos eram insuficientes e o tribunal não pode invadir a sua espera de competência e mandar instaurar um processo, considerando também que se o fizesse, estaria a ultrapassar as linhas balizadoras da sua pronúncia.
            Estamos, portanto, perante processos de “geometria variável”, nas palavras do Prof. Aroso de Almeida, pois a medida da pronúncia judicial condenatória depende de inúmeros factores, de facto e de direito, que podem permitir ao tribunal a condenação à prática de um acto com conteúdo certo e determinado ou, ao invés, podem limitar essa condenação apenas ao cumprimento do dever de decisão ou mesmo à não condenação quando o Tribunal considere que se o fizer, estará a violar a esfera de poder da Administração, conforme acontece no Acórdão citado.


Catarina Enes de Oliveira nº22112




[1] Sousa, Marcelo Rebelo e Matos, André Salgado de, Direito Administrativo Geral, Tomo I, 3.ª Ed., Lisboa: D. Quixote, 2008, p. 159
[2] ALMEIDA, MÁRIO AROSO DE, Manual de Processo Administrativo, reimpressão, Almedina, Coimbra, 2013, p. 94
[3] AMARAL, DIOGO FREITAS DO, MÁRIO AROSO DE ALMEIDA, Grandes Linhas da Reforma do Contencioso Administrativo, 2.ª edição, Almedina, Coimbra, 2003, p.55
[4] SILVA, VASCO PEREIRA DA, O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise – Ensaio sobre as Acções no Novo Processo Administrativo, 2.ª edição, Almedina, Coimbra, 2009, p. 211
[5]  ALMEIDA, MÁRIO AROSO DE, Manual de Processo Administrativo, reimpressão, Almedina, Coimbra, 2013, p.98



ALMEIDA, MÁRIO AROSO DE, Manual de Processo Administrativo, reimpressão, Almedina, Coimbra, 2013
AMARAL, DIOGO FREITAS DO, MÁRIO AROSO DE ALMEIDA, Grandes Linhas da Reforma do Contencioso Administrativo, 2.ª edição, Almedina, Coimbra, 2003
ANDRADE, JOSÉ CARLOS VIEIRA DE, A Justiça Administrativa – Lições, 13.ª edição, Almedina, Coimbra, 2014
SILVA, VASCO PEREIRA DA, O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise – Ensaio sobre as Acções no Novo Processo Administrativo, 2.ª edição, Almedina, Coimbra, 2009
Sousa, Marcelo Rebelo e Matos, André Salgado de, Direito Administrativo Geral, Tomo I, 3.ª Ed., Lisboa: D. Quixote, 2008

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