Extensão dos poderes de pronúncia dos Tribunais Administrativos e análise particular do artigo 71.º do CPTA
Como já sabemos, a relação da Administração Pública e os particulares
está envolta em Princípios Constitucionais e Administrativos que visam garantir
a conformidade da actividade administrativa com o Direito.
Um dos Princípios que mais releva neste contexto é o da
Separação de Poderes, previsto nos artigos 2.º, 111.º e 288.º/j da Constituição
da República Portuguesa e que comporta uma dimensão negativa (que se traduz em
pôr fim à concentração e centralização dos diferentes poderes públicos) e uma
dimensão positiva (que se traduz numa forma de melhorar e tornar mais eficaz o
funcionamento e organização do poder público.
Não restam dúvidas que há uma clara separação entre
administração e jurisdição.
A subordinação
jurídica de todos os poderes públicos é essencial num Estado de Direito, em que
surge como um dos Princípios primordiais o Princípio da Legalidade (Arts. 2.º e
266.º/2 CRP, e no art. 3.º CPA) que, como refere o Prof. Vasco Pereira da
Silva, surgiu no Estado liberal como fundamento democrático e garantístico.
Por imposição
constitucional e legal, conforme foi referido, a Administração Pública está
subordinada à lei. Mas esta não tem capacidade de regular detalhadamente e com
precisão (quer em termos circunstanciais quer em termos técnicos) cada acto praticado
pela Administração, prevendo mesmo a própria lei uma regulamentação imprecisa e
discricionária consoante a natureza da actividade administrativa.
A CRP não reserva
expressamente a função administrativa aos órgãos administrativos e através do
art. 202.º/2 da CRP percebe-se que os tribunais também se encontram habilitados
a decidir em matéria administrativa que teoricamente caberia à Administração.
Cabe salientar que apenas se encontram habilitados a “reprimir a
violação da legalidade democrática” e não a fiscalizar o mérito das
actuações públicas. Sendo este um importante indício da existência de uma
margem de livre decisão da administração, que apenas pode ser controlada pelos
tribunais na medida em que tenha havido a violação de um qualquer parâmetro de
conformidade jurídica, tal como resulta implicitamente da CRP e como o art.
71.º do CPTA veio reforçar.
Assim, constatamos
a existência de actos administrativos judicativos que correspondem a situações
em que o exercício de uma função materialmente jurisdicional surge em ligação
estreita com o exercício da função administrativa e, portanto, não funciona uma
reserva absoluta de jurisdição, mas apenas uma reserva relativa. Nestes casos,
órgãos administrativos exercem em primeiro grau poderes materialmente
jurisdicionais, sendo que haverá um posterior controlo jurisdicional,
necessariamente de plena jurisdição.
A margem de livre decisão
administrativa consiste num “espaço de liberdade de actuação
administrativa conferido por lei e limitado pelo bloco de legalidade,
implicando, portanto, uma pelo menos parcial autodeterminação administrativa.[1]
O artigo 71.º do CPTA, a propósito da condenação da Administração à prática de
actos legalmente devidos, acolhe expressamente a margem de livre decisão
administrativa. Segundo os Profs. Marcelo Rebelo de Sousa e André Salgado de
Matos, trata-se de uma originalidade do direito nacional que nada acrescentou
ao princípio constitucional da separação de poderes.
Segundo o
estabelecido neste artigo, o tribunal deve, por um lado, respeitar a “formulação
de valorações próprias do exercício da função administrativa” e, por
outro, explicitar os limites e “as vinculações a observar pela Administração
na emissão do acto devido” pois
torna-se claro que esta margem apresenta limites, quer pelas vinculações legais
quer pelos Princípios da nossa ordem jurídica.
Como refere o Prof. Aroso de Almeida, “questão complexa e decisiva é a de saber
qual a extensão dos poderes de pronúncia de que dispõe o Tribunal neste
domínio”[2].
Entramos aqui na problemática especial do art. 71.º/2.
Classicamente,
entendia-se a diminuição dos poderes do tribunal relativamente ao contencioso
de anulação de actos administrativos como um limite funcional da Justiça
Administrativa. O tribunal apenas podia anular os actos da Administração, não
podendo exercer os seus poderes de plena jurisdição, nomeadamente dando ordens
à Administração ou condenando-a (excepto se se tratasse de condenação para
pagamento de uma indemnização), sob pena de se colocar em conflito a
competência para julgar e a competência para administrar, ideia que se baseava
numa visão política francesa do Princípio de Separação de Poderes.
Como é referido
pelos Professores Freitas do Amaral e Aroso de Almeida, “Dando satisfação às reivindicações que vinham sendo formuladas na
Doutrina, o CPTA pôr termo à dualidade de meios processuais que, sem
justificação aparente, a LPTA tinha introduzido no domínio da impugnação de
normas emitidas, substituindo-a por uma nova dualidade de regimes quanto ao
tipo de pronúncias judiciais que passam a ser proferidas pelos Tribunais
Administrativos relativamente a todo o tipo de normas emanadas no exercício da
função administrativa.”[3]
A revisão constitucional de 1997 consagra no artigo 268.º/4 da CRP um meio
contencioso de pronúncia condenatória, passando a prever-se a possibilidade de
determinação da prática do acto administrativo legalmente devido. Passamos,
assim, da mera possibilidade de anulação para a plena jurisdição em que houve
uma mudança de paradigma na lógica do Contencioso Administrativo e, segundo o
Prof. Vasco Pereira da Silva, foram superados alguns “traumas de infância”[4],
superação essa, que se torna ainda mais efectiva com a novidade do artigo 71.º
do CPTA, trazida na Reforma de 2004.
A problemática
subjacente ao art. 71.º/2 do CPTA relaciona-se com a fronteira entre o poder
jurisdicional e os poderes da Administração. É necessário saber delimitar a
fronteira entre os poderes de pronúncia do tribunal e o âmbito dos poderes
discricionários da Administração, para se identificar o verdadeiro alcance dos
artigos 66.º ss. do CPTA, relativos à acção administrativa especial de
condenação à prática de acto devido, uma vez que o tribunal não se pode
intrometer no espaço próprio de actuação administrativa sob pena de violação do
princípio da separação de poderes. A determinação do alcance dos poderes do
tribunal é um momento fulcral da acção de condenação da Administração à prática
do acto legalmente devido
O Prof. Vieira de
Andrade refere que quando a emissão do acto envolva valorações específicas do
exercício da função administrativa (ou seja, quando o conteúdo desse acto não
seja completamente vinculado, o juiz ter-se-á que limitar a uma condenação
geral, sem pôr em causa o a autonomia e poderes de decisão da Administração.
Os tribunais administrativos
apenas têm competência para julgar do “cumprimento pela Administração
das normas e princípios jurídicos que a vinculam”, nos termos do art. 3.º/1
CPTA e não pode intrometer-se no espaço próprio que
corresponde ao exercício de poderes discricionários da Administração. Como
ensina o Prof. Aroso de Almeida, “O tribunal deve condenar a administração a praticar o
acto, traçando em maior ou menor medida, o quadro, de facto e de direito, dentro
do qual esses poderes discricionários devem ser (re)exercidos.” [5]
O âmbito dos
poderes de pronúncia do tribunal varia consoante a extensão dos poderes
discricionários da Administração. Esta nem sempre tem os mesmos poderes, nem
estes são necessária e totalmente vinculados e, por isso, o tribunal tem de se
adaptar à realidade do caso concreto e agir em conformidade com o pretendido pela
lei, nomeadamente dando espaço de liberdade às actuações administrativas quando
a lei o determine e não se intrometendo em questões que a lei considerou não
serem da sua competência. Deste modo, quanto maior for a liberdade atribuída à
Administração, mais comprimidos serão os poderes de pronúncia do tribunal.
Assim, o interesse público será prosseguido da melhor forma, uma vez que se
consegue alcançar resultados mais favoráveis,
respeitando-se o princípio da proporcionalidade nas suas vertentes de adequação
(condutas adoptadas são aptas para a prossecução do fim que se pretende
concretamente atingir), necessidade (meios usados são os menos lesivos para o
interesse público) e razoabilidade (os benefícios superam os custos).
Analisando
Jurisprudência concreta sobre esta matéria, escolhemos o Acórdão do Processo
00426/05 de 10 de Maio de 2007, do TAF do Porto, relativa a uma situação
passada no I.C.B.A.S, em que depois de uma reunião do Conselho Científico, uma
professora Catedrática interpõe um processo contra o Presidente do Conselho
Científico pois após essa mesma reunião foi decidido que, por haver falta de
docentes, a professora catedrática iria prestar auxílio a uma disciplina que
era regida por uma assistente. Foi enviado um ofício à Professora a informá-la
e esta sentiu-se inferiorizada e revoltada por ter que coadjuvar uma colega
numa categoria profissional inferior à sua. A Professora indignada pede ao
reitor que instaure um processo disciplinar ao Presidente do Conselho
Científico mas aquele, por decidir que não havia matéria para tal, arquiva,
através de um despacho, este processo.
A Professora
interpõe uma acção à prática do acto administrativo devido pois considera que o
reitor tinha que ter aberto aquele processo. O TAF do Porto e, mais tarde, o
Tribunal Central Administrativo do Norte vêm precisamente considerar que se o
reitor considerou que não há matéria nem verdadeiro procedimento disciplinar, então os Tribunais não podem
interferir na sua espera de poder e decisão. O reitor considerou que os
elementos eram insuficientes e o tribunal não pode invadir a sua espera de
competência e mandar instaurar um processo, considerando também que se o
fizesse, estaria a ultrapassar as linhas balizadoras da sua pronúncia.
Estamos, portanto,
perante processos de “geometria variável”, nas palavras do Prof. Aroso de Almeida, pois a medida da pronúncia judicial condenatória depende de
inúmeros factores, de facto e de direito, que podem permitir ao tribunal a
condenação à prática de um acto com conteúdo certo e determinado ou, ao invés,
podem limitar essa condenação apenas ao cumprimento do dever de decisão ou
mesmo à não condenação quando o Tribunal considere que se o fizer, estará a
violar a esfera de poder da Administração, conforme acontece no Acórdão citado.
Catarina Enes de Oliveira nº22112
[1] Sousa, Marcelo Rebelo
e Matos, André Salgado de, Direito
Administrativo Geral, Tomo I, 3.ª Ed., Lisboa: D. Quixote, 2008, p. 159
[2]
ALMEIDA,
MÁRIO AROSO DE, Manual de Processo Administrativo, reimpressão, Almedina,
Coimbra, 2013, p. 94
[3] AMARAL, DIOGO FREITAS
DO, MÁRIO AROSO DE ALMEIDA, Grandes
Linhas da Reforma do Contencioso Administrativo, 2.ª edição, Almedina,
Coimbra, 2003, p.55
[4]
SILVA, VASCO PEREIRA DA, O
Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise – Ensaio sobre as Acções no
Novo Processo Administrativo, 2.ª edição, Almedina, Coimbra, 2009, p. 211
[5] ALMEIDA,
MÁRIO AROSO DE, Manual
de Processo Administrativo, reimpressão, Almedina, Coimbra, 2013, p.98
ALMEIDA,
MÁRIO AROSO DE, Manual
de Processo Administrativo, reimpressão, Almedina, Coimbra, 2013
AMARAL,
DIOGO FREITAS DO, MÁRIO AROSO DE ALMEIDA, Grandes
Linhas da Reforma do Contencioso Administrativo, 2.ª edição, Almedina,
Coimbra, 2003
ANDRADE,
JOSÉ CARLOS VIEIRA DE, A
Justiça Administrativa – Lições, 13.ª edição, Almedina, Coimbra, 2014
SILVA,
VASCO PEREIRA DA, O
Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise – Ensaio sobre as Acções no
Novo Processo Administrativo, 2.ª edição, Almedina, Coimbra, 2009
Sousa,
Marcelo Rebelo e Matos, André Salgado de, Direito
Administrativo Geral, Tomo I, 3.ª Ed., Lisboa: D. Quixote, 2008
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