quinta-feira, 18 de dezembro de 2014

Massificação Processual

Com a reforma do contencioso em 2004, surgiu um mecanismo inovador, a que o Código do Processo nos Tribunais Administrativos (CPTA), no seu artigo 48º, dá o nome de “Processos em massa”. O surgimento deste mecanismo teve com principal objetivo promover a redução do número de litígios a apreciar pelos tribunais e uniformizar as decisões de questões idênticas a serem proferidas pela justiça administrativa. Desta forma, encontrou-se uma solução capaz de resolver o problema da celeridade da justiça administrativa, com a maior economia processual possível, mas também com segurança e eficácia e sem por em causa os direitos individuais e a efetiva tutela jurisdicional.

Tratando-se de uma solução muito ambiciosa e que poderá à primeira vista por em causa o Princípio da Tutela Jurisdicional Efectiva, uma vez que suspende e reduz uma série de processos à decisão dada a alguns escolhidos, o legislador teve a preocupação de estabelecer pressuposto muito fixos de qualificação da massificação processual administrativa. Pela análise do nº1 do artigo 48º do CPTA, é possível chegar a quatro pressupostos: o número mínimo de pendências, a mesma entidade administrativa, a identidade da relação jurídica material controvertida e a aplicação das mesmas normas jurídicas.

O primeiro pressuposto é condição indispensável para a verificação dos demais, impondo que existam pelo menos 21 processos pendentes[1] no mesmo tribunal. Várias são as críticas a este pressuposto, conforme escreve o Professor Wladimir Brito, a lei quis restringir a pendência mínima a um único tribunal, pois não estabelece regras de conflito para o caso de existirem vários tribunais. Ainda sobre o mesmo assunto, o Professor Wladimir Brito defende que a pendência dos processos poderia acontecer em tribunais diferentes, bastando que a lei ordenasse que se um tribunal decretasse a existência de uma situação de Processos em Massa tal fosse, de imediato e oficiosamente, comunicado a todos os outro tribunais, para que verificassem se tinham processos com idêntico objecto, em caso afirmativo notificaria-se as partes, para efeitos do nº2 do 48º do CPTA, seguindo os termos do nº5 do mesmo artigo[2]. Esta solução é também defendida pelo Professor Mário Aroso de Almeida, que vê esta exigência como um inconveniente óbvio na medida em que as regras de competência territorial tendem a dispersar processo com objecto idêntico por múltiplos tribunais[3]. Atendo a todas estas críticas, a actual proposta de revisão do CPTA, assim como na anterior, pretende flexibilizar e ampliar o âmbito de aplicação deste mecanismo e, por isso mesmo propõe num futuro nº5 que este regime seja aplicável “a situações de processos em massa existentes em diferentes tribunais (…) é determinada pelo Presidente do Supremo Tribunal Administrativo, a quem compete estabelecer qual ou quais os processos aos quais deve ser dado andamento, com suspensão dos demais, oficiosamente ou mediante proposta dos presidentes dos tribunais envolvidos”[4].

O segundo pressuposto impõe que as pronúncias advenham da mesma entidade administrativa, ou seja, que essa entidade seja a ré em todos os processos idênticos, sendo certo que aqui nos podemos apoiar no direito administrativo substantivo para definir o que se entende por entidade administrativa, isto é, pessoa coletiva de direito público ou pessoa coletiva de direito privado com prerrogativas de direito público.

O terceiro pressuposto extravasa o domínio processual, entrando no domínio das relações substantivas em que o litigio se consubstancia. Do ponto de vista processual, a identidade ou o paralelo da relação jurídica controvertida tem de ser apurada pela causa de pedir e nunca pelo pedido, conforme defende o Professor Wladimir Brito[5].

Por fim, o quarto pressuposto é um requisito de direito que impõe a averiguação da mesmidade das regras de direito a aplicar no caso concreto para o decidir, mas a que o juiz entenda que devam ser aplicadas e não aquelas que as partes alegaram nas suas alegações de direito.

Verificados todos estes pressupostos, o juiz tem a faculdade de declarar a existência de uma situação de massificação processual[6]. Se o escolher fazer, deverá ordenar a audição das partes, por despacho fundamentado, informando o preenchimento dos requisitos e convidando as pronunciarem-se sobre a situação, no prazo de 5 a 20 dias, por serem estes os prazos de pronúncia das partes para os processos urgentes[7], como remete o nº 4 do artigo 48º do CPTA. Decorrido o prazo de pronúncia, o juiz, também por despacho fundamentado, declara a situação de massificação e decide nesse mesmo despacho que processo ou processos classifica com selecionados, para efeitos da apreciação e decisão, os restantes processos serão suspensos até que seja tomada a decisão relativamente aos selecionados. Cumpridas estas exigências, os processos selecionados seguem os trâmites dos processos urgentes, como estabelece o nº 4 do artigo 48º do CPTA. Todavia, coloca-se a questão de saber qual a tramitação dos processo urgente é que deve ser a escolhida, uma vez que a lei nada define quando a essa escolha. Segundo o Professor Wladimir Brito, deve ser escolhido o processo urgente do Contencioso Pré-Contratual, porque os seus prazos são mais longos, não limitando anormalmente o âmbito da instrução, nem condicionando excessivamente a apreciação dos factos e a realização das diligências de prova necessárias para a completa apreciação da verdade, como impõe o nº3 do artigo 48º do CPTA[8].

Para terminar, julgado(s) o(s) processo(s) selecionado(s), se o tribunal entender que a solução de direito pode ser aplicada aos processos suspensos, deverá notificar as partes dos processos suspensos para que estas escolham uma das possibilidades que o nº5 do artigo 48º do CPTA oferece. Com este número, a lei quis, a partir do momento em que o tribunal entenda que a decisão proferida é extensível aos processos suspensos, dar aos autores dos processos urgentes a oportunidade de tomarem uma decisão e de a comunicarem ao tribunal, ao invés de lhes ser aplicado automaticamente, por extensão, a pronúncia judicial já proferida nos processos selecionados. Deste modo, a decisão transitada em julgado só pode ser aplicável aos processos suspensos depois de os respetivos autores tomarem a posição da alínea b) do nº5 do artigo 48º do CPTA, pois as possibilidades de todas as outras alíneas não se coadunam com a extensão da sentença. Vejamos, a alínea a) do nº5 do artigo 48º do CPTA possibilita a desistência do processo[9] que se compreenderá quando a decisão não é favorável aos autores ou quando a opção pela alínea c) do mesmo artigo levaria a uma solução igual à da decisão já proferida, assim, os autores beneficiariam de um não agravamento das custas e despesas processuais; por sua vez, a alínea c) parece ser uma não opção, isto porque o nº4 do mesmo artigo pretende assegurar que a decisão, que nos processos selecionados venha a ser proferida, seja assumida por todos os juízes, diminuindo a possibilidade de qualquer deles vir a decidir em sentido diferente nos processos suspensos quando os autores escolham esta opção[10]; por fim, a alínea d) do mesmo artigo é aquela que apresenta mais problemas, sendo para alguns autores uma opção incompreensível, pois não se entende como é que alguém possa recorrer de uma decisão que não lhe é aplicável, isto porque antes de os autores dos processos suspensos aceitarem a extensão da decisão já proferida, para os processos selecionados não há sentença, acresce a incompreensão quando a escolhida esta possibilidade com êxito, os efeitos só aproveitaram ao autor que o interpôs, mas não às partes no processo selecionado, porque em relação a estas já se formou caso julgado[11].

Bibliografia:

DIOGO FREITAS DO AMARAL e MÁRIO AROSO DE ALMEIDA, Grandes Linhas da Reforma do Contencioso Administrativo, 2002, Almedina.

MÁRIO AROSO DE ALMEIDA, Manual de Processo Administrativo, 2013, Almedina.

WLADIMIR BRITO, Lições de Direito Processual Administrativo, 2004, Coimbra Editora.






[1] Na proposta de Revisão do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, propõe-se a alteração do número mínimo de processo para 11.
[2] WLADIMIR BRITO, Lições de Direito Processual Administrativo, 2004, Coimbra Editora, pp. 174 e 175.
[3]MÁRIO AROSO DE ALMEIDA, Manual de Processo Administrativo, 2013, Almedina, p. 402.
[4] Proposta de Revisão do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, pp. 44 e 45.
[5] WLADIMIR BRITO, Lições de Direito Processual Administrativo, 2004, Coimbra Editora, pp. 174 e 175.
[6] Com a Proposta de Revisão do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, propõe-se que o juiz fique obrigado a declarar a existência de uma situação de massificação processual sempre que se verifiquem os pressupostos: “1 - Quando, num mesmo tribunal, sejam intentados mais de dez processos que, embora referidos a diferentes pronúncias da mesma entidade administrativa, digam respeito à mesma relação jurídica material ou, ainda que respeitantes a diferentes relações jurídicas coexistentes em paralelo, sejam susceptíveis de ser decididos com base na aplicação das mesmas normas a situações de facto do mesmo tipo, o presidente do tribunal deve determinar, ouvidas as partes, que seja dado andamento a apenas um ou alguns deles, que, neste último caso, são apensados num único processo, e se suspenda a tramitação dos demais”, pp. 44 e 45.
[7] Artigo 99º, 102º, 107º e 110º do CPTA.
[8] WLADIMIR BRITO, Lições de Direito Processual Administrativo, 2004, Coimbra Editora, p. 180.
[9] Tecnicamente, estamos perante uma desistência do pedido que tem como efeito a extinção do direito que o autor pretendia fazer valer na acção, conforme estipula o artigo 285º do Código de Processo Civil.
[10] DIOGO FREITAS DO AMARAL e MÁRIO AROSO DE ALMEIDA, Grandes Linhas da Reforma do Contencioso Administrativo, 2002, Almedina, p. 105.
[11] MÁRIO AROSO DE ALMEIDA, Manual de Processo Administrativo, 2013, Almedina, p. 400.

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