terça-feira, 16 de dezembro de 2014

O Grande “Trauma” do Contencioso Administrativo


O Caso Blanco

Recorrendo de certa forma à explicação metafórica do professor VASCO PEREIRA DA SILVA, o Direito Administrativo teve, logo na fase da sua “nascença”, um acontecimento que o marcou profundamente, uma “experiência traumática” como refere o professor, cujas consequências se fizeram sentir ao longo da evolução do Contencioso Administrativo.
            Este “trauma” ilustra bastante bem como foi a primeira fase da história do Contencioso Administrativo, à qual o professor chama de “fase do pecado original”, bastante marcada pela promiscuidade entre as tarefas de administrar e de julgar. O Contencioso Administrativo nasceu com a Revolução Francesa, sendo concebido como privilégio de foro da Administração, o seu objectivo primordial era a defesa dos poderes públicos da Administração, que prevaleciam plenamente sobre os direitos dos particulares. Em nome do princípio da separação de poderes era proibido aos juízes perturbar as operações dos órgãos administrativos, os quais estavam imunes a qualquer intervenção jurisdicional na sua actuação. Foi neste clima que se deu a ocorrência do “grande trauma” do Contencioso Administrativo, um clima marcado pelo poder desmesurado da Administração, pela prevalência dos direitos públicos sobre os direitos dos particulares e da não responsabilização dos órgãos administrativos face à violação de posições subjectivas.
            Esta decisão marca também o nascimento do Contencioso Administrativo porque foi a primeira sentença de Direito Administrativo, consagrando a sua autonomia como ramo da ciência jurídica. Até então nunca tinha sido desaplicada a lei civil por estar em causa uma relação entre um particular e o Estado, sendo este o momento de viragem e de consciencialização da necessidade de criação de uma ordem jurídica autónoma que tivesse em consideração as especificidades da relação entre entes públicos e entes privados.
            No dia 3 de Novembro de 1871, em França, Agnes Blanco, uma criança de cinco anos, ao passar em frente a uma fábrica de processamento de tabaco foi atropelada e ferida gravemente por um vagão que saiu subitamente de dentro do estabelecimento, este vagão pertencia a uma empresa estatal de manufactura de tabaco de Bordéus. A menina circulava pelo passeio quando o vagão a atropelou e a colisão deu-se por culpa de quatro condutores da mesma empresa que não viram a criança. Agnes sofreu graves ferimentos no fémur, o que ditou a amputação da perna.
O pai da criança, Jean Blanco, propôs no tribunal judicial de Bordéus uma acção de indemnização contra o Estado, alegando a responsabilidade civil pela falta cometida pelos seus quatro empregados. Foi pedido que o tribunal condenasse ao pagamento de uma indemnização os empregados e o Estado, de forma solidária, segundo as seguintes disposições do Código Civil Francês:
• Art. 1382º - dever de indemnização baseado na responsabilidade extracontratual e determinada pelos danos sofridos;
• Art. 1383º - estende esse dever aos casos de negligência e imprudência;
• Art. 1384º - estipula um dever de indemnização objectiva, quando o culpado é alguém pelo qual outrem deve responder.
O tribunal de primeira instância apesar de atribuir razão aos pedidos de Jean Blanco, absolve o Estado dos pedidos porque esta questão, dadas as particularidades da relação com a Administração, não podia ser decidida pelo Direito Civil. A condenação ao pagamento da indemnização foi recusada pelo Tribunal de Bordéus porque se considerou incompetente para decidir uma questão em que intervinha a Administração.
O Conselho de Estado, face à falta de uma ordem jurídica administrativa autónoma, considerou que, devido ao “estatuto de privilégio” da Administração, havia certas particularidades a que o tribunal deveria atender, nomeadamente: a responsabilidade estatal não é a mesma que ocorre nas relações entre particulares; o regime especial é justificado pelo serviço público prestado, a competência jurisdicional teria de ser dos tribunais administrativos, cumprindo a lei de 16 e 24 de Agosto de 1790, que dizia ser interdito aos tribunais judicias: “troubler, de quelque manière que ce soit, les opérations des corps administratifs” (perturbar, de qualquer forma que seja, as operações dos corpos administrativos); o serviço público deveria servir como critério principal para a decisão entre uma competência judicial ou administrativa.
Surgiu então um conflito entre a jurisdição judicial e a jurisdição Administrativa. Foi chamado a resolver esta questão o Tribunal de Conflitos, responsável por decidir de quem era a competência para julgar a causa. Este tribunal era composto por quatro membros de cada jurisdição, pelo que houve um empate (4 x 4). O Ministro da Justiça, Jules Dufaure, presidente do Tribunal de Conflitos, denominado Guardião dos Selos, desempatou, usando a prerrogativa do Voto de Minerva, em favor do Conselho do Estado.
O Conselho de Estado concedeu uma pensão vitalícia à vítima, consagrando pela primeira vez na História do Direito a responsabilidade extracontratual da Administração Pública face aos particulares. No entanto, esta indemnização é condicionada em função das “necessidades do serviço”. O critério das necessidades da administração pública prevaleceu sobre o critério das necessidades de uma criança de 5 anos, o que revela uma clara subordinação dos interesses dos particulares face aos interesses públicos.
Com esta decisão, o nascimento do Direito Administrativo fica marcado pela necessidade de estabelecer um “estatuto de privilégio” da administração, cirando uma limitação à sua responsabilidade que nega os direitos dos particulares. Esta “experiência traumática” está na génese das “esquizofrenias” e “complexos” de que o Contencioso Administrativo sofreu ao longo da sua evolução.
Em primeiro lugar esta decisão marcou a promiscuidade entre as tarefas de administrar e julgar, visto que o caso foi decidido pelo Conselho de Estado que não deve ter quaisquer funções jurisdicionais. O princípio da separação de poderes deve funcionar de modo a que a autoridade administrativa seja independente da judiciária, para assegurar a imparcialidade no julgamento das questões em que a administração é parte. Neste caso esse mesmo princípio foi utilizado para produzir o efeito inverso, os tribunais, que são os órgãos dotados de imparcialidade por excelência, foram proibidos sob pena de delito de perturbar as operações dos corpos administrativos. Esta interpretação do princípio da separação de poderes é a designada “concepção francesa”, segundo a qual “em vez de se reconhecer que julgar a Administração é ainda julgar, preferia-se considerar que julgar a Administração é ainda administrar”. Em nome deste princípio dá-se uma indiferenciação entre a função de administrar e julgar, é este o “pecado original” do Contencioso Administrativo que o professor Vasco Pereira da Silva considera ainda resquício de muitos dos traumas actuais do seu regime.
Em segundo lugar, quando a indemnização é condicionada, no seu valor, em função das necessidades dos serviços públicos existe uma clara prevalência dos valores públicos sobre os valores individuais. A função do Contencioso Administrativo deve ser a defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos dos particulares, que são um valor absoluto e aos quais não pode ser sobreposto qualquer interesse público, a jurisdição administrativa serve assim uma função de defesa dos administrados face ao poder da Administração Pública que pode muitas vezes ir além dos seus limites e lesar posições subjectivas. Neste triste acórdão são subvertidos todos os valores do Contencioso Administrativo ao colocar os direitos subjectivos num segundo plano. São prosseguidas as finalidades de protecção das entidades administrativas devido ao seu estatuto de privilégio e é desconsiderada a posição de uma criança que foi gravemente prejudicada devido à negligência dos funcionários públicos.
Este acórdão marca o nascimento do Direito Administrativo, pois é reconhecida a necessidade de criação de um Direito com especiais particularidades, que tomasse em conta as relações estabelecidas entre a Administração e os particulares. Mas esta necessidade não surge, como seria de esperar, para proteger a parte mais fraca nessas relações, que são, sem dúvida, os particulares. A necessidade de uma ordem jurídica especial surge sim de forma a limitar a responsabilidade da Administração que, para além de se encontrar numa posição de poder nas relações com os particulares, deveria ainda ter um estatuto de privilégio no que toca à sua responsabilização por lesão de direitos subjectivos.

VASCO PEREIRA DA SILVA, “O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise”, 2ª Edição, Almedina, 2009;
ACORDÃO BLANCO, de 8 de Fevereiro de 1873.


Manuel Minas, nº 22784

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