O Caso Blanco
Recorrendo de certa forma à
explicação metafórica do professor VASCO PEREIRA DA SILVA, o Direito
Administrativo teve, logo na fase da sua “nascença”, um acontecimento que o
marcou profundamente, uma “experiência traumática” como refere o professor,
cujas consequências se fizeram sentir ao longo da evolução do Contencioso
Administrativo.
Este
“trauma” ilustra bastante bem como foi a primeira fase da história do
Contencioso Administrativo, à qual o professor chama de “fase do pecado
original”, bastante marcada pela promiscuidade entre as tarefas de administrar
e de julgar. O Contencioso Administrativo nasceu com a Revolução Francesa,
sendo concebido como privilégio de foro da Administração, o seu objectivo
primordial era a defesa dos poderes públicos da Administração, que prevaleciam
plenamente sobre os direitos dos particulares. Em nome do princípio da
separação de poderes era proibido aos juízes perturbar as operações dos órgãos
administrativos, os quais estavam imunes a qualquer intervenção jurisdicional
na sua actuação. Foi neste clima que se deu a ocorrência do “grande trauma” do
Contencioso Administrativo, um clima marcado pelo poder desmesurado da
Administração, pela prevalência dos direitos públicos sobre os direitos dos
particulares e da não responsabilização dos órgãos administrativos face à
violação de posições subjectivas.
Esta decisão
marca também o nascimento do Contencioso Administrativo porque foi a primeira
sentença de Direito Administrativo, consagrando a sua autonomia como ramo da
ciência jurídica. Até então nunca tinha sido desaplicada a lei civil por estar
em causa uma relação entre um particular e o Estado, sendo este o momento de
viragem e de consciencialização da necessidade de criação de uma ordem jurídica
autónoma que tivesse em consideração as especificidades da relação entre entes
públicos e entes privados.
No dia 3 de
Novembro de 1871, em França, Agnes Blanco, uma criança de cinco anos, ao passar
em frente a uma fábrica de processamento de tabaco foi atropelada e ferida
gravemente por um vagão que saiu subitamente de dentro do estabelecimento, este
vagão pertencia a uma empresa estatal de manufactura de tabaco de Bordéus. A
menina circulava pelo passeio quando o vagão a atropelou e a colisão deu-se por
culpa de quatro condutores da mesma empresa que não viram a criança. Agnes sofreu graves ferimentos no
fémur, o que ditou a amputação da perna.
O pai da criança, Jean Blanco, propôs
no tribunal judicial de Bordéus uma acção de indemnização contra o Estado,
alegando a responsabilidade civil pela falta cometida pelos seus quatro
empregados. Foi pedido que o tribunal condenasse ao pagamento de uma
indemnização os empregados e o Estado, de forma solidária, segundo as seguintes
disposições do Código Civil Francês:
• Art. 1382º - dever de indemnização
baseado na responsabilidade extracontratual e determinada pelos danos sofridos;
• Art. 1383º - estende esse dever aos
casos de negligência e imprudência;
• Art. 1384º - estipula um dever de
indemnização objectiva, quando o culpado é alguém pelo qual outrem deve
responder.
O tribunal de primeira instância apesar
de atribuir razão aos pedidos de Jean Blanco, absolve o Estado dos pedidos
porque esta questão, dadas as particularidades da relação com a Administração,
não podia ser decidida pelo Direito Civil. A condenação ao pagamento da
indemnização foi recusada pelo Tribunal de Bordéus porque se considerou
incompetente para decidir uma questão em que intervinha a Administração.
O Conselho de Estado, face à falta de
uma ordem jurídica administrativa autónoma, considerou que, devido ao “estatuto
de privilégio” da Administração, havia certas particularidades a que o tribunal
deveria atender, nomeadamente: a responsabilidade estatal não é a mesma que
ocorre nas relações entre particulares; o regime especial é justificado pelo
serviço público prestado, a competência jurisdicional teria de ser dos
tribunais administrativos, cumprindo a lei de 16 e 24 de Agosto de 1790, que
dizia ser interdito aos tribunais judicias: “troubler, de quelque manière que
ce soit, les opérations des corps administratifs” (perturbar, de qualquer forma
que seja, as operações dos corpos administrativos); o serviço público deveria
servir como critério principal para a decisão entre uma competência judicial ou
administrativa.
Surgiu então um conflito entre a
jurisdição judicial e a jurisdição Administrativa. Foi chamado a resolver esta
questão o Tribunal de Conflitos, responsável por decidir de quem era a competência para julgar
a causa. Este tribunal era composto por quatro membros de cada jurisdição, pelo
que houve um empate (4 x 4). O Ministro da Justiça, Jules Dufaure, presidente do Tribunal de
Conflitos, denominado Guardião dos Selos, desempatou, usando a prerrogativa do
Voto de Minerva, em favor do Conselho do Estado.
O Conselho de Estado concedeu uma
pensão vitalícia à vítima, consagrando pela primeira vez na História do Direito
a responsabilidade extracontratual da Administração Pública face aos
particulares. No entanto, esta indemnização é condicionada em função das
“necessidades do serviço”. O critério das necessidades da administração pública
prevaleceu sobre o critério das necessidades de uma criança de 5 anos, o que
revela uma clara subordinação dos interesses dos particulares face aos
interesses públicos.
Com esta decisão, o nascimento do
Direito Administrativo fica marcado pela necessidade de estabelecer um
“estatuto de privilégio” da administração, cirando uma limitação à sua
responsabilidade que nega os direitos dos particulares. Esta “experiência
traumática” está na génese das “esquizofrenias” e “complexos” de que o
Contencioso Administrativo sofreu ao longo da sua evolução.
Em primeiro lugar esta decisão marcou
a promiscuidade entre as tarefas de administrar e julgar, visto que o caso foi
decidido pelo Conselho de Estado que não deve ter quaisquer funções
jurisdicionais. O princípio da separação de poderes deve funcionar de modo a que
a autoridade administrativa seja independente da judiciária, para assegurar a
imparcialidade no julgamento das questões em que a administração é parte. Neste
caso esse mesmo princípio foi utilizado para produzir o efeito inverso, os
tribunais, que são os órgãos dotados de imparcialidade por excelência, foram
proibidos sob pena de delito de perturbar as operações dos corpos
administrativos. Esta interpretação do princípio da separação de poderes é a
designada “concepção francesa”, segundo a qual “em vez de se reconhecer que
julgar a Administração é ainda julgar, preferia-se considerar que julgar a
Administração é ainda administrar”. Em nome deste princípio dá-se uma
indiferenciação entre a função de administrar e julgar, é este o “pecado
original” do Contencioso Administrativo que o professor Vasco Pereira da Silva
considera ainda resquício de muitos dos traumas actuais do seu regime.
Em segundo lugar, quando a
indemnização é condicionada, no seu valor, em função das necessidades dos
serviços públicos existe uma clara prevalência dos valores públicos sobre os
valores individuais. A função do Contencioso Administrativo deve ser a defesa
dos direitos e interesses legalmente protegidos dos particulares, que são um
valor absoluto e aos quais não pode ser sobreposto qualquer interesse público,
a jurisdição administrativa serve assim uma função de defesa dos administrados
face ao poder da Administração Pública que pode muitas vezes ir além dos seus
limites e lesar posições subjectivas. Neste triste acórdão são subvertidos todos
os valores do Contencioso Administrativo ao colocar os direitos subjectivos num
segundo plano. São prosseguidas as finalidades de protecção das entidades
administrativas devido ao seu estatuto de privilégio e é desconsiderada a
posição de uma criança que foi gravemente prejudicada devido à negligência dos funcionários
públicos.
Este acórdão marca o nascimento do Direito
Administrativo, pois é reconhecida a necessidade de criação de um Direito com
especiais particularidades, que tomasse em conta as relações estabelecidas
entre a Administração e os particulares. Mas esta necessidade não surge, como
seria de esperar, para proteger a parte mais fraca nessas relações, que são,
sem dúvida, os particulares. A necessidade de uma ordem jurídica especial surge
sim de forma a limitar a responsabilidade da Administração que, para além de se
encontrar numa posição de poder nas relações com os particulares, deveria ainda
ter um estatuto de privilégio no que toca à sua responsabilização por lesão de
direitos subjectivos.
VASCO PEREIRA DA SILVA, “O Contencioso Administrativo no Divã
da Psicanálise”, 2ª Edição, Almedina, 2009;
ACORDÃO BLANCO, de 8 de Fevereiro de 1873.
Manuel Minas, nº 22784
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