Como é sabido a Constituição da República Portuguesa (CRP) de 1976 constitucionalizou o contencioso administrativo, com particular importância em dois pontos. Por um lado garantiu o controlo jurisdicional da administração, estabelecendo os tribunais administrativos como autênticos tribunais – 206.º, 212.º/3 CRP – e por outro lado, consagrou o direito de acesso dos particulares à justiça administrativa para defesa e tutela dos seus direitos (268.º n.º 4 CRP)
Não obstante, esta evolução continuou
aquém das expetativas de qualquer subjetivista que se preze, uma vez que a
única forma de aceder ao contencioso administrativo dependia de uma noção de
recorribilidade intimamente ligada a conceitos plenos de autoritarismo: os atos
definitivos e executórios.
A revisão constitucional de 1989 veio
mudar este entendimento, passando a impugnação dos atos a ficar sujeita ao
critério previsto no 268.º/4 da CRP, o critério do ato lesivo de direitos e
interesses legalmente protegidos dos particulares.
O confronto entre o disposto no artigo
268.º CRP e as regras que impunham a obrigatoriedade de recurso hierárquico
como forma de acesso ao recurso contencioso, dita uma série de divergências que
serão abordadas de seguida.
A
Constituição da República Portuguesa e o Recurso Hierárquico Necessário
De acordo com o Professor Marcelo
Rebelo de Sousa[1],
o recurso hierárquico necessário é um mecanismo que permite ao superior
hierárquico exercer os seus poderes de intervenção sobre o subalterno,
nomeadamente, através de poderes de supervisão e de substituição.
Porém, antes de avançar mais na reflexão,
há que em primeiro lugar distinguir o recurso hierárquico necessário do recurso
hierárquico facultativo, ambos previstos no art.º 167 do Código Procedimento Administrativo
(CPA). A distinção assenta unicamente na questão de saber se o ato administrativo
seria susceptível de recurso contencioso ou não. Desta forma, e nas palavras do
professor Vasco Pereira da Silva “a “necessidade”
do recurso hierárquico não dizia respeito à existência, nem à produção de
efeitos do ato administrativo, mas tão só à respetiva impugnabilidade
contenciosa, constituindo um mero pressuposto processual daquele”[2].
Quer isto dizer, que no recurso hierárquico necessário, a impugnação
administrativa seria um ónus necessário para aceder à impugnação contenciosa.
Assim, só após ser proferida a decisão do recurso hierárquico é que se poderia instaurar
a acção contenciosa. O que significa que no âmbito do recurso hierárquico
necessário não é possível instaurar uma ação nos tribunais administrativos
enquanto o recurso hierárquico não for decidido. A este propósito, refere o
Professor Paulo Otero[3], que seria necessário
percorrer toda a pirâmide hierárquica da Administração até ser tomada uma
decisão final, sendo que só depois de ser proferida a decisão do recurso
hierárquico é que se poderia instaurar a ação administrativa.
Recorde-se que o recurso hierárquico
necessário nasceu como uma solução para aqueles casos em que não era possível a
impugnação jurisdicional do ato, uma vez que apesar da CRP prever a impugnação
de atos lesivos pelo particular, a verdade é que no âmbito do recurso de
anulação (a actual ação impugnação de atos administrativos), o recurso estava
sujeito aos critérios da executoriedade e definitividade do ato. Significa isto
que o ato praticado por um subalterno não cumpriria o requisito da
verticalidade definitiva, logo não era passível de impugnação contenciosa. Por
esse motivo o recurso hierárquico necessário surge como solução, tendo que ser
primeiro impugnado administrativamente o ato do subalterno.
Com a consagração do artigo 268.º/4
CRP, alguns administrativistas defendiam que as normas que obrigavam ao recurso
hierárquico necessário eram inconstitucionais pois violavam o direito dos
administrados a acederem aos tribunais e para além disso constituía uma restrição
desproporcionada dos seus direitos. Acresce ainda que nos recursos
hierárquicos, muitas das vezes a Administração mantinha a sua decisão inicial,
pelo que na realidade o administrado apenas via o seu direito à impugnação
jurisdicional arrastado por mais tempo.
Apenas uma minoria de autores (de onde
se destaca o professor Vasco Pereira da Silva) defende a inconstitucionalidade
do recurso hierárquico necessário. De facto, a maior parte da doutrina defendia
– e ainda defende – que não é inconstitucional a impugnação prévia e que o
acesso ao contencioso administrativo não é negado, nem violado o disposto no
art.º 268.º/4 CRP e que o acesso ao contencioso ficaria apenas sujeito a um
ónus de impugnação administrativa prévia.
Antes da Reforma de 2003, o Professor
Vasco Pereira da Silva defendia a inconstitucionalidade do recurso hierárquico
necessário, invocando a violação dos princípios da plenitude da tutela dos
direitos dos particulares (art.º 268.º/4 CRP), da separação de poderes entre a
administração e a justiça (art.º 114.º, 205.º e ss e 216.º e ss CRP), da
desconcentração administrativa (267.º/2 CRP), da efectividade da tutela
(268.º/4 CRP). Contudo, a sua posição não era defendida nem pela
jurisprudência, nem pela doutrina.
Após
a Reforma de 2003 – de necessário a útil
Depois da Reforma de 2003, o Código de
Processo dos Tribunais Administrativos (CPTA) deixou de exigir a prévia
impugnação administrativa dos actos administrativos para que estes pudessem ser
alvo de impugnação contenciosa. As soluções patentes nos artigos 51.º/1 e 59.º/4/5
CPTA consagram a regra geral da desnecessidade da utilização da impugnação
administrativa para aceder à via contenciosa. Atualmente não existe qualquer dúvida
que o recurso hierárquico necessário foi afastado pelo CPTA e que a regra vigente
é o acesso imediato à apreciação contenciosa.
Esta mudança ocorreu devido a:
·
O
artigo 51.º/1 CPTA termina com a exigência de definitividade vertical, consagrando
a impugnabilidade de qualquer ato capaz de lesar direito o interesses
legalmente protegidos ou, genericamente, atos dotados de com eficácia externa;
·
Os
atos praticados por subalternos passam a estar englobados na previsão do art.º
51.º CPTA;
·
Desaparece
o conceito de recurso hierárquico necessário como pressuposto processual de
acesso ao contencioso administrativo;
·
Nos
termos do artigo 59.º, n.º 4 CPTA o recurso hierárquico suspende a impugnação
contenciosa. Contudo, isto não significa que o interessado não possa impugnar o
ato durante a pendência da impugnação administrativa. Desta forma, não volta a
ser necessário que se esgotem as garantias administrativas como condição de
acesso aos tribunais.
·
O
art.º 59.º/4 ao atribuir efeito suspensivo do prazo de impugnação contenciosa,
revoga o 164.º do CPA e permite que o particular saiba que o prazo de
impugnação contenciosa só voltará a correr após o seu pedido de reapreciação
ser decidido. Podendo o particular esperar pela reapreciação da questão, sem
que com isso, perca a possibilidade de impugnar contenciosamente.
A este propósito o Professor Vasco
Pereira da Silva, afirma ser esta a grande mais-valia do recurso hierárquico necessário:
a possibilidade da Administração reapreciar o problema e satisfazer nessa
oportunidade as pretensões do particular. O professor acredita que para esta
“instância” funcionar convenientemente é preciso que a Administração não se
limite a uma “prática rotineira”, determinada pela lógica da “não-contradição”.
Caso a Administração funcione como um autêntico instrumento de proteção
subjectiva e de tutela objectiva de legalidade, o recurso hierárquico
necessário poderá deixa de ser desnecessário e tornar-se útil[4].
Tese
do afastamento do recurso hierárquico necessário
Certos
autores como o Professor Mário Aroso de Almeida entendem que o CPTA não revogou
o CPA, sendo necessário fazer uma interpretação actualista, que passe a admitir
o recurso hierárquico apenas quando nascer de uma opção consciente do
legislador.
O
Professor Vasco Pereira da Silva, não coloca a dualidade entre CPA e CPTA numa
perspectiva de revogação, mas de caducidade, devido ao desaparecimento das
circunstâncias de direito que justificavam as normas, ou seja, por falta de
objecto. O professor acredita que a única razão de ser do recurso hierárquico
necessário era permitir a impugnação do acto administrativo. Por isso, quer a
regra geral, quer todas as disposições avulsas terão caducado.
O
professor fundamenta a sua posição da seguinte forma:
·
O
recurso hierárquico necessário era pressuposto da impugnação do acto. Como a
impugnação é sempre permitida, a impugnação prévia deixou de ser necessária e
não se vislumbram motivos para que continue a ser exigível em leis especiais;
·
A
distinção entre o recurso hierárquico necessário e facultativo deixou de fazer
sentido, uma vez que a utilidade da distinção perdeu-se no momento em que o
recurso necessário desapareceu o pressuposto processual;
·
As
garantias administrativas passam ser todas “facultativas”, pois o particular
pode aceder de imediato à via contenciosa.
·
O
CPTA revogou o recurso hierárquico necessário, mas não revogou as regras
especiais. A ser assim, então as regras que eram especiais antes da reforma,
confirmavam a regra geral. Portanto, não faria sentido que o CPTA revogasse as
regras gerais e não revogasse as normas especiais que se limitam a reiterar a
regra geral;
·
Da
mesma forma que a regra geral caducou, também as regras especiais caducaram por
falta de objecto. Como já não é obrigatório o recurso necessário como
pressuposto processual de impugnação contenciosa de atos, o objecto extingue-se.
Tese
pela defesa do recurso hierárquico necessário em leis especiais
Alguns autores, onde se contam os
professores Mário Aroso de Almeida, Vieira de Andrade e Marcelo Rebelo de
Sousa, defendem que muito embora a Reforma tenha afastado a regra geral do
recurso hierárquico necessário, que as disposições legais avulsas que estendem
o recurso necessário a certas situações, continuam em vigor, pois não se
verificou a existência de disposição que expressamente as afastasse.
À luz deste entendimento poder-se-ia
equacionar se este regime não contradiz o 268.º/4 da CRP, contudo, os autores
acreditam que o acesso à impugnação contenciosa nunca será colocado em causa,
existindo tão somente um ónus de prévia utilização das garantias
administrativas.
Resumindo, se nada for dito, o ato é
impugnável contenciosamente. Contudo, se o recurso hierárquico necessário se
encontrar previsto em lei especial, e por se entender que estas normas avulsas
estão em vigor, então deverá ser seguido o seu regime.
Bibliografia:
Vasco Pereira da Silva, O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise, 2.ª edição,
Almedina;
Paulo Otero, Cadernos
de Justiça Administrativa, n.º 28 e Aulas Teóricas de Direito
Administrativo 2009/2010, 2.º semestre
Marcelo Rebelo de Sousa, Direito Administrativo Geral – Atividade Administrativa, tomo III,
D. Quixote
Mário Aroso de Almeida, Manual de Processo Administrativo, Almedina
José Carlos Vieira de Andrade, A Justiça Administrativa (lições), Coimbra
Rafaela
Vieira dos Santos
n.º
14940
[1] Marcelo Rebelo de Sousa, Direito Administrativo Geral – Atividade
Administrativa, tomo III, D. Quixote.
[2] Vasco Pereira da Silva,
O Contencioso Administrativo no Divã da
Psicanálise, 2.ª edição, Almedina.
[3] Paulo Otero, Cadernos de Justiça Administrativa, n.º 28 e Aulas Teóricas de
Direito Administrativo 2009/2010, 2.º semestre.
[4] Vasco Pereira da Silva,
O Contencioso Administrativo no Divã da
Psicanálise, 2.ª edição, Almedina.
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